sexta-feira, 8 de março de 2019
Chegaram!
Que satisfação receber pelo correio meus livros recém lançados em Portugal.
O futuro para autores e editores
Uma nova perspectiva
para o mercado do livro na era digital
Confesso, eu me tornei editor de livros por acaso. Quando
entrei na Saraiva, foi para escrever um livro – e não editar livro. Por mais
improvável ainda que pareça, a encomenda era um livro destinado a um único
leitor: o filho do doutor Ruy Mendes Gonçalves, sócio da Saraiva.
Uma criança
que ainda estava por nascer. E que ele, com uma doença em estado avançado,
sabia que não poderia educar. “Preciso que você escreva um livro contando a
minha história ao Ruyzito”, disse. “Porque eu mesmo não poderei contar.”
Como recusar?
Em seis meses de trabalho, escrevi com Ruy O Serelepe, que já foi lido por bastante gente, e um dia o será pelo Ruyzito.
Eu e Ruy nos tornamos amigos e dividimos ideias e projetos. Naquele tempo, Ruy planejava expandir a área de varejo da editora Saraiva. E prepará-la para o futuro, com o prenúncio do fortalecimento do livro digital, supostamente capaz de quebrar muitas editoras e livrarias.
Eu e Ruy nos tornamos amigos e dividimos ideias e projetos. Naquele tempo, Ruy planejava expandir a área de varejo da editora Saraiva. E prepará-la para o futuro, com o prenúncio do fortalecimento do livro digital, supostamente capaz de quebrar muitas editoras e livrarias.
Sabendo do meu passado como executivo e editor de revistas,
e querendo que eu continuasse por perto, me convidou para tocar a área de
ficção e não-ficção da editora, com metas ambiciosas.
Fiquei na Saraiva três anos, dois além do que pude dividir
com Ruy, com quem tive bons momentos, até seu falecimento. Aprendi muito,
com ele, com agentes e livreiros, com acesso a todos os aspectos do negócio.
Fizemos também muito. Na Saraiva, criamos um selo (Benvirá),
promovemos um prêmio literário recordista de inscrições, ganhamos Jabuti de
literatura e outros prêmios, colocamos a Saraiva pela primeira vez na Flip com vários autores e multiplicamos o faturamento por cinco, em três anos de trabalho,
com o lançamento de mais de uma centena de títulos.
Missão e todas as promessas ao Ruy cumpridas, achei que podia sair, para voltar apenas a escrever.
No fim das contas, ele estava certo: a crise veio. A Saraiva vendeu sua editora, que era lucrativa, para sanear a livraria, que nunca melhorou. O modelo de megastores, que antes dera lucros, se tornou pesado demais, num tempo em que todo o varejo é desafiado a trabalhar junto com o meio digital.
Missão e todas as promessas ao Ruy cumpridas, achei que podia sair, para voltar apenas a escrever.
No fim das contas, ele estava certo: a crise veio. A Saraiva vendeu sua editora, que era lucrativa, para sanear a livraria, que nunca melhorou. O modelo de megastores, que antes dera lucros, se tornou pesado demais, num tempo em que todo o varejo é desafiado a trabalhar junto com o meio digital.
Passei um período de clausura, apenas escrevendo, para
retornar ao mercado novamente como autor. Lancei pela editora Planeta A
Conquista do Brasil e A Criação do Brasil, reportagens históricas sobre a colonização
brasileira e a formação do DNA nacional. E um romance, Anita, sobre Anita
Garibaldi, pela editora Record.
Agora sou um autor privilegiado, por conhecer mais gente e
outros aspectos do negócio editorial. Volto a conversar com os compradores das
livrarias e vejo um mercado dentro de um impasse ainda maior do que o existente
no momento em que saí do meu posto como editor.
Enquanto as vendas do livro digital ainda parecem pequenas,
insuficientes para se apostar nisso como negócio, as margens e as vendas do
livro impresso andam cada vez menores. As grandes redes de livrarias -
incluindo a Cultura, além da Saraiva - estão virtualmente falidas. As editoras
não dedicam tempo ao mercado digital, porque este não paga as contas. E torcem
para que as coisas voltem a ser como eram.
Isso não vai acontecer. O processo é irreversível, mesmo no
livro didático. A perspectiva de o governo converter os milhões de livros que
adquire do mercado em material virtual, num futuro próximo, é como uma espada
sobre a cabeça de todos os grandes editores.
No varejo, algumas editoras optaram por se juntar e fazer
volume com um imenso catálogo, mas nem isso parece garantir sua sobrevivência:
seu futuro das editoras não depende apenas a escala de vendas, como também da
mudança do próprio modelo do negócio.
As livrarias que não quebraram, atendo-se a vender livros em
vez de produtos eletrônicos ou outros fora do foco, têm uma oportunidade de
crescer no vácuo de quem está devendo dinheiro na praça. Porém, todos se
perguntam como será o futuro – e como continuar.
Uma das ideias que procurei aplicar como editor é a de que é
preciso explorar as possibilidades do presente, sem
perder a passagem para o futuro. Por experiência própria, sei que é difícil nas
grandes empresas rever processos de trabalho e toda a lógica do negócio, quando
se tem contas imediatas a pagar.
É isso o que acontece com o mundo do livro. É mais fácil
começar um negócio do zero, do que mudar o rumo de uma grande editora. Por
isso, assim que me vi com liberdade para isto, resolvi aplicar um pouco das
ideias que tive a meu favor.
Quando deixei a Saraiva, abri para mim mesmo um selo de
livros digitais, onde coloquei meus títulos de backlist – livros cujos
contratos com as editoras foram vencendo e cujos direitos guardei para mim
mesmo.
Hoje, é preciso levar mais a sério a autopublicação. Não só
para manter ativos títulos que já estavam fora de catálogo. Já é algo a se
considerar para a venda de livros novos. Sobretudo digitais e em papel, sob
demanda.
Esse sistema diminui o risco da editora e permite a formação
do catálogo. A editoras têm procurado gastar pouco. Há editoras independentes
que hoje só produzem o livro impresso se tiverem um grupo de leitores que já
pagaram antecipadamente pelo livro. Há pelo menos um caso, a TAG, que inventou
um clube do livro, pelo qual se paga mensalmente e se recebe um livro-surpresa.
Não é um grande negócio. Porem, todos os negócios, no futuro, parecem ser
afixados a algum nicho.
Muitas surpresas hoje estão surgindo da internet. Como
editor, alguns dos livros em que eu mais apostava não vingaram da forma
esperada. Outros, em que acreditava menos, foram sucesso. A internet oferece um
grande espaço para testar o que funciona melhor e conectar-se com redes ou
comunidades de leitores.
Por melhores que sejam, editores não têm bola de cristal. A
realidade é que o público leitor decide o que vai ler. Isos vale tanto para o
grande hit como para a cauda longa – o conjunto de títulos que individualmente
vendem pouco, porque atendem a interesses muito individuais, mas na soma geral
representam um volume de vendas muito maior.
Gastar pouco e apostar mesmo nos livros que venderão pouco,
mas venderão - essa é a razão pela qual acredito que há mais chance de
sobrevivência no futuro de uma editora independente do que nas tradicionais.
Estou absolutamente convencido que no futuro não fará
sentido manter estoque e mandar um livro para Manaus, ao preço de 40 reais,
quando o leitor poderá tê-lo com apenas um clique, pagando 9,90 no formato
digital. Não serão os leitores que irão decidir por esse novo modelo: será a
própria indústria. Assim que as vendas não estiverem mais compensando seus
pesados custos atuais, as empresas terão de mudar.
Imagino que em alguns anos o mercado de livros será um misto
de editoras capazes de fazer obras que um único autor não poderá produzir,
disputando espaço com autores independentes ou lançados por editoras digitais.
Haverá autores que agirão cada vez mais como editores, e
editores que terão de ser cada vez mais autores. Para isso, terão de investir
em conteúdo próprio, ou conteúdo de terceiros num novo modelo, que dispensará
extensas, cansativas, caras e cíclicas renovações de contrato.
Cada um pode ver o futuro como quiser, claro. Essa é apenas
a minha impressão. De uma coisa, porém, ninguém pode duvidar: esperar que nada
vá mudar, sem fazer nada, é a melhor maneira de ver o bonde passar.
terça-feira, 4 de dezembro de 2018
Deus aos 12 anos
Meu filho completou 12 anos. Aos 12, surgem novas dúvidas na vida. Sua maior preocupação, agora, é com a existência de Deus.
Estava interessado em Breves Respostas para Grandes Perguntas, o livro póstumo de Stephen Hawking. Queria saber o que um cientista pensava a respeito dessa questão.
Comprei o livro. Na cama, antes de dormir, ele leu algumas páginas, e fechou-o de repente.
- Deus não existe -, disse.
No dia seguinte, fomos de carro ao Parque Villa Lobos jogar bola. No caminho, perguntei a ele o que Hawking dizia no capítulo sobre Deus.
- Ele diz que a ciência ainda não encontrou respostas para algumas coisas. Mas também não achou provas da existência de Deus [como explicação para essas questões].
Resolvi então aplicar nele o método socrático.
- Você aceita a ideia de que alguém pode acreditar em Deus, simplesmente por acreditar, por ter fé?
- Sim. Mas uma pessoa acreditar não quer dizer que ele exista.
- É verdade. Mas se eu acredito em Deus, por exemplo, e Deus me diz para fazer coisas boas, e isso me faz dar um prato de comida para quem tem fome, essa ação - dar um prato de comida - é algo bem concreto, não?
- Sim.
- Se eu fiz isso por acreditar em Deus, então essa ideia de Deus se tornou um ato real. Podemos dizer então que Deus atuou por nosso intermédio?
-Sim.
- Se fazemos algo que existe por causa de algo que não existe, por nosso intermédio esse algo não passa a existir também?
- Sim. Passa a existir também.
- Então concluímos que Deus existe.
Ele ficou surpreso com a demonstração socrática da existência de Deus. Em batucou. Como pede a filosofia, a dúvida, ao menos, foi instalada.
Às vezes, Sócrates é meu Jesus.
Estava interessado em Breves Respostas para Grandes Perguntas, o livro póstumo de Stephen Hawking. Queria saber o que um cientista pensava a respeito dessa questão.
Comprei o livro. Na cama, antes de dormir, ele leu algumas páginas, e fechou-o de repente.
- Deus não existe -, disse.
No dia seguinte, fomos de carro ao Parque Villa Lobos jogar bola. No caminho, perguntei a ele o que Hawking dizia no capítulo sobre Deus.
- Ele diz que a ciência ainda não encontrou respostas para algumas coisas. Mas também não achou provas da existência de Deus [como explicação para essas questões].
Resolvi então aplicar nele o método socrático.
- Você aceita a ideia de que alguém pode acreditar em Deus, simplesmente por acreditar, por ter fé?
- Sim. Mas uma pessoa acreditar não quer dizer que ele exista.
- É verdade. Mas se eu acredito em Deus, por exemplo, e Deus me diz para fazer coisas boas, e isso me faz dar um prato de comida para quem tem fome, essa ação - dar um prato de comida - é algo bem concreto, não?
- Sim.
- Se eu fiz isso por acreditar em Deus, então essa ideia de Deus se tornou um ato real. Podemos dizer então que Deus atuou por nosso intermédio?
-Sim.
- Se fazemos algo que existe por causa de algo que não existe, por nosso intermédio esse algo não passa a existir também?
- Sim. Passa a existir também.
- Então concluímos que Deus existe.
Ele ficou surpreso com a demonstração socrática da existência de Deus. Em batucou. Como pede a filosofia, a dúvida, ao menos, foi instalada.
Às vezes, Sócrates é meu Jesus.
domingo, 11 de novembro de 2018
Freeman e o verdadeiro fim do racismo
Quando eu era moleque e jogava bola na rua, na Casa Verde, qualquer preto era "Pelé". "Passa a bola, Pelé!" Eu era o "Alemão". "Passa a bola, Alemão!" E ninguém ligava.
Hoje em dia tem movimento contra o racismo e todo tipo de discriminação ou exclusão social, mas o mundo nunca me pareceu tão racista e discriminatório quanto agora. Tem cota para isso e aquilo e, para mim, da gritaria vem mais discriminação sobre uma coisa que nem deveria existir.
É o que diz o Morgan Freeman, um homem livre até no nome, neste vídeo que achei ótimo. O Bolsonaro, por sinal, fala a mesma coisa que ele. Mas é o Bolsonaro. Já o Morgan Freeman, que é americano, preto, rico, famoso e elegante, pode fazer o mesmo discurso e ninguém critica.
Sou a favor da sociedade igualitária, radicalmente igualitária, o que significa que cor, credo, sexo não são discrimináveis por qualquer forma. Acho que a ideia de criar privilégios para essa ou aquela minoria em nome da inclusão não resolve nada. Igualdade se exerce, não se pede. Existe - e ponto final.
O mesmo vale para as mulheres e o feminismo. Em Israel, uma das sociedades mais igualitárias que eu conheço, as mulheres têm não os mesmos privilégios ou vantagens que o homem, e sim os mesmos deveres e obrigações. Servem, por exemplo, igualmente, o Exército. Como resultado, possuem a mesma liberdade - e o mesmo respeito.
Em Israel, as mulheres não se intimidam com uma cantada masculina. Nem reclamam. Muitas vezes tratam os homens como muitas mulheres acham que os homens as tratam na sociedade ocidental.
Numa relação entre iguais, o assédio muda de figura: sequer existe alguém já classificado previamente como vítima. A ideia de que a mulher está mais sujeita ao assédio, a um salário menor e outras injustiças, por ser mais fraca, nem passa pela cabeça dos israelitas - homens e mulheres. Elas são iguais. E ponto.
Eu já sofri assédio de mulheres que em determinada situação eram mais poderosas. Rejeitei, mesmo com a possibilidade de ser prejudicado, e nunca reclamei. Sim, isso acontece com homens também. Posso afirmar de cadeira que o homem branco também sofre discriminação. Mas ora, onde já se viu, um homem branco, macho-machista-chauvinista-dominador do mundo-explorador de tudo, reclamar de assédio?
Temos no Brasil uma sociedade diferente da de Israel, é claro. Nossa raiz portuguesa é essencialmente patriarcalista, vem do tempo em que o português se casava com a índia e o filho tinha de ter o sobrenome do pai para ser cidadão, e não gentio - um semiescravo.
No Século XVIII, porém, como mostro em meu mais recente livro, A Criação do Brasil, isso mudou bastante com a chegada dos espanhóis no período da União Ibérica. Os espanhóis tradicionalmente carregavam o sobrenome da mãe. O governador Salvador Correia de Sá, homem fundamental na história do Brasil e Portugal, sobrinho-neto de Mem de Sá por parte de pai, era espanhol, nascido em Cádiz - e levava o sobrenome da mãe, Benevides.
Israel é uma sociedade militarizada. Nada cria mais igualdade que o Exército - todos os soldados são iguais, como anuncia o uniforme verde. Talvez seja por sua origem militar que Bolsonaro veja os iguais simplesmente como iguais, ou como soldados, ou simples cidadãos. É apresentado como um sujeito retrógrado, em relação à igualdade e ao tratamento das mulheres. Acho que lhe falta elegância, mas, no fundo, o que ele pensa e diz não difere, na essência, do discurso de Morgan Freeman. Bolsonaro defende, apenas, a igualdade, sem o privilégio - ou, como chamou, o "coitadismo".
Ninguém jamais verá um "mês do homem branco" ou um desfile de homens brancos na Avenida Paulista reclamando de assédio ou de seus direitos como homem branco. Parece absurdo. Qualquer outra coisa do gênero, no entanto, devia ser absurda também. Nenhum homem branco quer privilégio ou reserva de qualquer coisa, até porque a mesma sociedade opressora apontada por outros manda que o homem não reclame de nada, nunca.
O homem deve ser o que dá mais, o que se sacrifica pelos outros sem reclamar, e, se ganha alguma coisa, não é mais por mérito, e sim porque está explorando alguma vítima na sua condição de privilegiado histórico-social. Não importa o que faça, está pregada nele desde nascença a pecha do "macho dominante chauvinista".
Claro que há os cafajestes, os ignorantes, os transgressores. Há mulheres, gays, negros e amarelos assim também. Para eles, existe a vergonha, ou, na medida do crime, a lei. Porém, para os homens de verdade, que são a imensa maioria - pais de família, respeitadores das mulheres tanto quanto de quem quer que seja, que tentam obstinadamente ser bons pais, bons maridos, bons cidadãos -, o espetáculo do enxovalhamento do gênero masculino soa como algo meio absurdo. Parece que o homem não é mais cidadão, perdendo seu direito, inclusive, a falar qualquer coisa, a dar opinião, da mesma forma que todos.
Talvez seja tarde demais para voltar o tempo em que ser "Pelé" ou "Alemão" não dava em nada. (Pensando bem, ser "Alemão", na linguagem da rua, era mais pejorativo que ser "Pelé". Ser Pelé, além de preto, queria dizer "craque". E "alemão", além de louro, era ser meio perna de pau.)
Porém, levar a cor e o sexo como bandeiras políticas longe demais é aumentar a discriminação, não terminar com ela. Precisava aparecer o Morgan Freeman para dizer, "somos iguais, não preciso dessas coisas". Que seja ouvido e as coisas sejam realmente assim.
Hoje em dia tem movimento contra o racismo e todo tipo de discriminação ou exclusão social, mas o mundo nunca me pareceu tão racista e discriminatório quanto agora. Tem cota para isso e aquilo e, para mim, da gritaria vem mais discriminação sobre uma coisa que nem deveria existir.
É o que diz o Morgan Freeman, um homem livre até no nome, neste vídeo que achei ótimo. O Bolsonaro, por sinal, fala a mesma coisa que ele. Mas é o Bolsonaro. Já o Morgan Freeman, que é americano, preto, rico, famoso e elegante, pode fazer o mesmo discurso e ninguém critica.
Sou a favor da sociedade igualitária, radicalmente igualitária, o que significa que cor, credo, sexo não são discrimináveis por qualquer forma. Acho que a ideia de criar privilégios para essa ou aquela minoria em nome da inclusão não resolve nada. Igualdade se exerce, não se pede. Existe - e ponto final.
O mesmo vale para as mulheres e o feminismo. Em Israel, uma das sociedades mais igualitárias que eu conheço, as mulheres têm não os mesmos privilégios ou vantagens que o homem, e sim os mesmos deveres e obrigações. Servem, por exemplo, igualmente, o Exército. Como resultado, possuem a mesma liberdade - e o mesmo respeito.
Em Israel, as mulheres não se intimidam com uma cantada masculina. Nem reclamam. Muitas vezes tratam os homens como muitas mulheres acham que os homens as tratam na sociedade ocidental.
Numa relação entre iguais, o assédio muda de figura: sequer existe alguém já classificado previamente como vítima. A ideia de que a mulher está mais sujeita ao assédio, a um salário menor e outras injustiças, por ser mais fraca, nem passa pela cabeça dos israelitas - homens e mulheres. Elas são iguais. E ponto.
Eu já sofri assédio de mulheres que em determinada situação eram mais poderosas. Rejeitei, mesmo com a possibilidade de ser prejudicado, e nunca reclamei. Sim, isso acontece com homens também. Posso afirmar de cadeira que o homem branco também sofre discriminação. Mas ora, onde já se viu, um homem branco, macho-machista-chauvinista-dominador do mundo-explorador de tudo, reclamar de assédio?
Temos no Brasil uma sociedade diferente da de Israel, é claro. Nossa raiz portuguesa é essencialmente patriarcalista, vem do tempo em que o português se casava com a índia e o filho tinha de ter o sobrenome do pai para ser cidadão, e não gentio - um semiescravo.
No Século XVIII, porém, como mostro em meu mais recente livro, A Criação do Brasil, isso mudou bastante com a chegada dos espanhóis no período da União Ibérica. Os espanhóis tradicionalmente carregavam o sobrenome da mãe. O governador Salvador Correia de Sá, homem fundamental na história do Brasil e Portugal, sobrinho-neto de Mem de Sá por parte de pai, era espanhol, nascido em Cádiz - e levava o sobrenome da mãe, Benevides.
Israel é uma sociedade militarizada. Nada cria mais igualdade que o Exército - todos os soldados são iguais, como anuncia o uniforme verde. Talvez seja por sua origem militar que Bolsonaro veja os iguais simplesmente como iguais, ou como soldados, ou simples cidadãos. É apresentado como um sujeito retrógrado, em relação à igualdade e ao tratamento das mulheres. Acho que lhe falta elegância, mas, no fundo, o que ele pensa e diz não difere, na essência, do discurso de Morgan Freeman. Bolsonaro defende, apenas, a igualdade, sem o privilégio - ou, como chamou, o "coitadismo".
Ninguém jamais verá um "mês do homem branco" ou um desfile de homens brancos na Avenida Paulista reclamando de assédio ou de seus direitos como homem branco. Parece absurdo. Qualquer outra coisa do gênero, no entanto, devia ser absurda também. Nenhum homem branco quer privilégio ou reserva de qualquer coisa, até porque a mesma sociedade opressora apontada por outros manda que o homem não reclame de nada, nunca.
O homem deve ser o que dá mais, o que se sacrifica pelos outros sem reclamar, e, se ganha alguma coisa, não é mais por mérito, e sim porque está explorando alguma vítima na sua condição de privilegiado histórico-social. Não importa o que faça, está pregada nele desde nascença a pecha do "macho dominante chauvinista".
Claro que há os cafajestes, os ignorantes, os transgressores. Há mulheres, gays, negros e amarelos assim também. Para eles, existe a vergonha, ou, na medida do crime, a lei. Porém, para os homens de verdade, que são a imensa maioria - pais de família, respeitadores das mulheres tanto quanto de quem quer que seja, que tentam obstinadamente ser bons pais, bons maridos, bons cidadãos -, o espetáculo do enxovalhamento do gênero masculino soa como algo meio absurdo. Parece que o homem não é mais cidadão, perdendo seu direito, inclusive, a falar qualquer coisa, a dar opinião, da mesma forma que todos.
Talvez seja tarde demais para voltar o tempo em que ser "Pelé" ou "Alemão" não dava em nada. (Pensando bem, ser "Alemão", na linguagem da rua, era mais pejorativo que ser "Pelé". Ser Pelé, além de preto, queria dizer "craque". E "alemão", além de louro, era ser meio perna de pau.)
Porém, levar a cor e o sexo como bandeiras políticas longe demais é aumentar a discriminação, não terminar com ela. Precisava aparecer o Morgan Freeman para dizer, "somos iguais, não preciso dessas coisas". Que seja ouvido e as coisas sejam realmente assim.
terça-feira, 6 de novembro de 2018
A crise do mercado do livro e o futuro da literatura
Nas últimas semanas, começaram a surgir as primeiras notícias mais concretas da queda anunciada do mercado editorial brasileiro, pelo menos da forma como o conhecemos.
A Livraria Cultura, segunda maior rede de livros do país, pediu concordata e entrou no período judicial em que precisa apresentar uma proposta de pagamento aos credores para não ser liquidada.
A Saraiva, que já vinha renegociando pagamentos com as editoras, depois de um período de inadimplência, cortou 20 da sua centena de lojas num processo de reestruturação que deve estar longe de terminar.
A Companhia das Letras, editora com um dos maiores catálogos do país, teve seu capital vendido para a Penguin Random House, que já era sócia minoritária e tem mais cacife para segurar as contas.
É o fim do livro? Não, é um novo começo. Entre as editoras, existe a tendência da concentração, para que as empresas possam ganhar com a chamada cauda longa - vendas de muitos títulos, agregadas, dão alguma receita. E aumenta a importância da publicação digital, ou da autopublicação, que deixa de ser a alternativa de quem foi rejeitado pelas editoras, para aos poucos tomar o lugar do mainstream.
Isso vale tanto para os livros de não ficção, aí incluída a autoajuda, que já tem grande força no livro digital, quanto na literatura. Ela, que assim como o cinema já teve seus arautos do apocalipse, não está acabando. Pelo contrário. Muda o processo de criação, de divulgação e comercialização, mas a literatura nunca foi tão importante e ativa quanto agora.
O romance sempre teve um papel fundamental no desenvolvimento humano. A literatura é a vanguarda das ideias, que são o começo da ação e, portanto, das grandes mudanças. Basta dar alguns exemplos do passado, como 1984, em que George Orwell já imaginava um mundo em que todos eram vigiados em tempo real. Ou Viagem à Lua, de Júlio Verne, que já previa no século XIX o disparo de um bólido tripulado ao satélite da Terra, para voltar com auxílio da gravidade lunar.
Tudo aquilo que se imagina hoje é o primeiro passo da realidade de amanhã. A literatura tem ainda o poder de penetrar na alma humana, formar o indivíduo, que nela pode recolhee a mais profunda e verdadeira fonte de ensinamentos: a experiência humana.
Em vez de perder com a crise do mercado editorial e do livro impresso, a literatura ganha força inaudita com o advento da internet. Ela permite que hoje qualquer um escreva em qualquer lugar do mundo - e seja lido.
Como atividade profissional, isso exige também uma adaptação aos novos tempos: a formação de redes de leitores e o uso de mecanismos de venda também virtuais. Mas isso não é o fim da literatura ou do livro. É, pelo contrário, sua renovação mais impactante desde Gutenberg.
quinta-feira, 30 de agosto de 2018
A Criação do Brasil: para entender e mudar o país
A Criação do Brasil (1600-1700), meu novo livro, revela o lado pouco conhecido, violento e surpreendente da expansão brasileira continente adentro, no nosso segundo século de colonização. E mostra a formação da sociedade brasileira, cujas raízes se estendem até os dias de hoje. (À venda na Amazon neste link)
Quando comecei a pesquisa, acreditei que já sabia bastante sobre esse período da história. O começo do bandeirantismo, as invasões holandesas - aquilo que se ensina nas escolas, episódios sem relação entre si. Imaginei um ano de trabalho e foi o que prometi à editora Planeta.
Como estava enganado! Em tudo - incluindo o tempo que levaria para concluir o trabalho, que foi três vezes maior.
A pesquisa me levou a uma barafunda de documentos antigos, atas perdidas, a maior parte dela em papel. À vastidão dos sermões e a míriade de cartas pessoais do padre Antônio Vieira. A obras de historiadores de língua espanhola, relatos de jesuítas e muitas outras fontes que revelaram uma história muito mais profunda e bastante diferente do que lemos nos livros escolares.
Fui também a campo, descobrindo às vezes lugares perdidos no meio da selva cosmopolita, que revelam grandes histórias. Como o Mont Serrat e o Forte São João, em Santos, para onde fui acompanhado do meu filho André. Assim, além de trabalho, a reportagem virou para mim diversão. E, para ele, também uma forma interessante de aprender história do Brasil ao vivo.
Ao fim e ao cabo, descobri que nada ou pouco sabia sobre o que aconteceu, na realidade. Primeiro, porque esse período da história sempre foi bastante negligenciado pelos historiadores.
Para começar, precisei entender que durante 60 anos o Brasil foi espanhol. A importância desse fato, ignorada pelos livros escolares, sempre foi deixada de lado pelos portugueses, pela vergonha de terem pertencido à Espanha, e pelos espanhóis, por terem perdido Portugal.
Tive que retroceder no tempo e analisar a formação de ambas as Nações, tão próximas na língua, na origem e na trajetória, onde poder .e religião se mesclaram para a afirmação e expansão imperialista com um sentido sagrado, ou missionário.
Aprofundar o que a União Ibérica mudou na realidade daquela época me fez reinterpretar todas as coisas acontecidas nesse século e explica muito do Brasil: o avanço dos bandeirantes pelo sertão, agora sob uma só coroa, embora infringindo os limites administrativos do novo e imenso império; as invasões holandesas, que se deram não apenas por cobiça, mas para enfrentar o poderio espanhol, de quem os Países Baixos tinham se separado na Europa; a perseguição aos portugueses, que se tornaram mais numerosos em Lima e Buenos Aires, por exemplo, que os próprios castelhanos; o papel da Inquisição, mesclada a interesses econômicos.
A volta do Brasil ao domínio de Portugal não foi nada simples, depois de décadas que forjaram toda uma geração nascida sob o signo do "império onde o sol nunca se põe". E a então nascente elite brasileira teve papel fundamental na chamada Restauração portuguesa.
Foi surpreendente descobrir que os holandeses não foram expulsos do Brasil por Portugal, que fomentou a revolta discretamente, por ser aliado da Holanda na Europa contra a Espanha, e sim pelos senhores de engenho radicados no Brasil.
A nascente elite brasileira, que abria caminho para as riquezas espanholas, patrocinava o contrabando, produziu a expulsão dos holandeses e a retomada do império para Portugal, adquirindo um novo poder, nova identidade e influência sobre a própria Metrópole.
Nesse processo foram chave personagens extraordinários, alguns tão desconhecidos quanto fundamentais na formação brasileira, como Salvador Correia de Sá, espanhol de nascimento que foi o grande articulador da retomada do império português para Portugal, a começar pelo Brasil.
E o padre Antonio Vieira, português criado no Brasil, que, muito mais que os Sermões, clássico da literatura barroca luso-brasileira, foi um importante articulador político, colaborador direto do rei. Defensor da liberdade, questionador da escravidão tanto do negro quanto do índio, criou para Dom João IV um plano econômico que visava repatriar judeus portugueses para Portugal. Com sua influência e persuasão, chegou a abolir no país a Inquisição.
Os bandeirantes não eram nem sombra do que eu pensava. Nada dos heróis que viraram estátua. Eram gente que andava na mata de pé no chão, falava tupi e misturava a temeridade sanguinária dos índios canibais com a organização militar portuguesa: a gente mais feroz e inclemente que já existiu na face da terra.
Causam horror os relatos dos jesuítas espanhóis, verdadeiros templários do trópico, que organizaram exércitos para combatê-los, numa guerra cujos detalhes macabros a história brasileira convenientemente varreu para baixo do tapete.
O Brasil, em resumo, não era nada do que eu pensava. E aos poucos as coisas foram se aclarando - não apenas sobre o passado, como sobre o presente.
Como nos enganamos a nós mesmos! Imaginamos, por exemplo, que os índios desapareceram da nossa vida. Hoje vejo, porém, como deixaram para nós muito mais que o nome de ruas e cidades. Estão no nosso DNA, propositalmente esquecido.
E a política? Aos poucos, criou-se aqui uma elite que não tem fidelidade a ninguém. Num século dominado por portugueses, depois espanhóis, holandeses e novamente portugueses, eles aprenderam a viver com as mudanças e enraizaram-se num sistema de poder por meio do qual mandam geração após geração, imunes às mudanças do tempo. Assim passaram por diferentes impérios, regimes, sistemas econômicos e chegaram até aqui.
Assim como a dominação da costa brasileira pelos portugueses, contada no primeiro livro, A Conquista do Brasil (1500-1600), percebi como o segundo século da história brasileira é contado de forma tão superficial pelos livros escolares e pouco entendido de maneira geral.
A Criação do Brasil vai do contexto ao detalhe para a compreensão do vértice de todo o nosso passado, a gênese da nossa sociedade e sobretudo da elite brasileira.
O DNA que persiste no Brasil até hoje está aí, nesse século fundamental para a formação brasileira - como digo no livro, "raiz dos nossos mais monstruosos males e incomparáveis virtudes".
Não é possível entender o Brasil sem entender sua infância, que se manifesta no adulto, ainda que de forma pouco consciente. É o que se descortina com este livro. Meu desejo é que todos possam, com ele, ver, entender e sentir o que vivi.
A volta do Brasil ao domínio de Portugal não foi nada simples, depois de décadas que forjaram toda uma geração nascida sob o signo do "império onde o sol nunca se põe". E a então nascente elite brasileira teve papel fundamental na chamada Restauração portuguesa.
Foi surpreendente descobrir que os holandeses não foram expulsos do Brasil por Portugal, que fomentou a revolta discretamente, por ser aliado da Holanda na Europa contra a Espanha, e sim pelos senhores de engenho radicados no Brasil.
A nascente elite brasileira, que abria caminho para as riquezas espanholas, patrocinava o contrabando, produziu a expulsão dos holandeses e a retomada do império para Portugal, adquirindo um novo poder, nova identidade e influência sobre a própria Metrópole.
Nesse processo foram chave personagens extraordinários, alguns tão desconhecidos quanto fundamentais na formação brasileira, como Salvador Correia de Sá, espanhol de nascimento que foi o grande articulador da retomada do império português para Portugal, a começar pelo Brasil.
E o padre Antonio Vieira, português criado no Brasil, que, muito mais que os Sermões, clássico da literatura barroca luso-brasileira, foi um importante articulador político, colaborador direto do rei. Defensor da liberdade, questionador da escravidão tanto do negro quanto do índio, criou para Dom João IV um plano econômico que visava repatriar judeus portugueses para Portugal. Com sua influência e persuasão, chegou a abolir no país a Inquisição.
Os bandeirantes não eram nem sombra do que eu pensava. Nada dos heróis que viraram estátua. Eram gente que andava na mata de pé no chão, falava tupi e misturava a temeridade sanguinária dos índios canibais com a organização militar portuguesa: a gente mais feroz e inclemente que já existiu na face da terra.
Causam horror os relatos dos jesuítas espanhóis, verdadeiros templários do trópico, que organizaram exércitos para combatê-los, numa guerra cujos detalhes macabros a história brasileira convenientemente varreu para baixo do tapete.
O Brasil, em resumo, não era nada do que eu pensava. E aos poucos as coisas foram se aclarando - não apenas sobre o passado, como sobre o presente.
Como nos enganamos a nós mesmos! Imaginamos, por exemplo, que os índios desapareceram da nossa vida. Hoje vejo, porém, como deixaram para nós muito mais que o nome de ruas e cidades. Estão no nosso DNA, propositalmente esquecido.
E a política? Aos poucos, criou-se aqui uma elite que não tem fidelidade a ninguém. Num século dominado por portugueses, depois espanhóis, holandeses e novamente portugueses, eles aprenderam a viver com as mudanças e enraizaram-se num sistema de poder por meio do qual mandam geração após geração, imunes às mudanças do tempo. Assim passaram por diferentes impérios, regimes, sistemas econômicos e chegaram até aqui.
Assim como a dominação da costa brasileira pelos portugueses, contada no primeiro livro, A Conquista do Brasil (1500-1600), percebi como o segundo século da história brasileira é contado de forma tão superficial pelos livros escolares e pouco entendido de maneira geral.
A Criação do Brasil vai do contexto ao detalhe para a compreensão do vértice de todo o nosso passado, a gênese da nossa sociedade e sobretudo da elite brasileira.
O DNA que persiste no Brasil até hoje está aí, nesse século fundamental para a formação brasileira - como digo no livro, "raiz dos nossos mais monstruosos males e incomparáveis virtudes".
Não é possível entender o Brasil sem entender sua infância, que se manifesta no adulto, ainda que de forma pouco consciente. É o que se descortina com este livro. Meu desejo é que todos possam, com ele, ver, entender e sentir o que vivi.
segunda-feira, 20 de agosto de 2018
Por que vivemos da mão para a boca no Brasil
Depois de escrever A Conquista do Brasil e agora A Criação do Brasil, dois livros que retratam a formação do país, aconteceu comigo uma transformação. Para mim, o Brasil como eu via, o país que achava que conhecia, não existe mais.
Hoje olho as pessoas na rua, os políticos, a fila do supermercado e vejo um outro Brasil, não o que se mostra, e sim a matriz daquilo que somos. Vejo tudo diferente, com se enxergasse o brasileiro nu.
Quando reclamamos de nossos problemas, e não entendemos por que somos assim - um país mergulhado em crises econômicas e institucionais cíclicas, sem projeto para o futuro, com uma classe política e econômica corrompida - não vemos as causas disso tudo. E o quanto isso tudo está dentro da sociedade brasileira. A corrupção, a deseducação, a falta de ética, como se diria nos evangelhos, tudo está no meio de nós.
Existem hoje muitos críticos do determinismo geográfico e histórico, segundo os quais não podemos atribuir nossos males à nossa formação. Seria fugir às nossas responsabilidades e atirar para o passado coisas que devíamos resolver hoje.
Porém, ao estudar a história, não se pode negar que o passado está não apenas no nosso sangue, por força hereditária, como por uma herança atávica no nosso comportamento individual e coletivo.
Atua e influencia o que somos hoje. E como seremos, pois só entendendo esse passado é possível ter mais consciência do que é preciso fazer para mudar.
Escamoeamos o nosso passado, varremos nossas verdades para baixo do tapete. Temos vergonha de muita coisa, preferimos entender. depois, não gostamos nem entendemos o jeito que somos.
Uma dessas verdades que a gente preferiu enterrar é que existe uma grande influência do índio no brasileiro, na nossa sociedade.
Essa simples declaração costuma ser rejeitada por muita gente, porque vive sendo negada desde o início da nossa existência como Nação. Mas é puramente uma constatação histórica e antropológica, da qual não escaparemos sem enfrentar a realidade.
O índio não desapareceu da sociedade brasileira. Não está restrito a tribos isoladas na Amazônia ou a reservas como o parque do Xingu. Ele ainda está no meio de nós, não apenas como nome de rua ou cidade. O índio ainda somos nós.
Tabu
Esse assunto sempre foi tabu, porque o brasileiro sempre tentou varrer o índio do mapa - fisicamente, primeiro, e depois da nossa história. Isso não muda o fato de que ele está no vértice da nossa sociedade. Sem esse elemento, é impossível entender nossos males. E também algumas de nossas virtudes.
Quando chegaram ao Brasil os primeiros portugueses, em 1500, havia cerca de 4 milhões de indígenas na América do Sul. Dois séculos depois, ao fim do período que estudo em A Criação do Brasil, havia 150 mil europeus na colônia brasileira, mas a população havia caído para pouco mais de 2 milhões de pessoas.
Essa redução dramática se deveu a alguns fatores. Primeiro, o genocídio dos índios da costa, que dizimou a nação tupinambá. Segundo, sua escravização, que aconteceu em escala muito maior do que costumam mostrar os livros escolares.
A Criação do Brasil mostra como os bandeirantes chegaram a criar campos de concentração com até 5 mil índios prisioneiros no território das Missões, do Paraguai até o Rio Grande do Sul. Menos de 20% deles chegavam vivos a São Paulo.
Houve também as grandes epidemias de "bexigas", doenças trazidas pelos europeus, especialmente a gripe, o sarampo e a varíola, que dizimaram índios em massa. Porém, a maior parte da população continuou sendo esmagadoramente indígena, parte pura e parte mesclada ao português.
Havia poucas mulheres que migravam de Portugal para a colônia. A matriz do brasileiro tem pai português e mãe índia. O bandeirante paulista era português e mameluco - filho de português e índia.
Andava no sertão descalço, como se vê em A Criação do Brasil, e até meados do Século XVIII sua primeira língua ainda era o tupi.
Fosse português ou mestiço, o bandeirante era um semibárbaro. Não respeitava as leis do império, as mais elementares. O padre Montoya, líder jesuíta das Missões, não citava o nome de Raposo Tavares, por considerá-lo a encarnação do demônio, matador impiedoso de índios.
Os bandeirantes não estavam longe de seus ancestrais antropófagos. Não se importavam de matar os prisioneiros e os tratavam da maneira mais cruel. De campos de concentração, levavam os índios capturados em grupos de oito, presos um ao outro pelo pescoço com gargalheiras de ferro. Quando um não acompanhava a marcha, os paulistas não se davam ao trabalho de soltar os grilhões: cortavam-lhe a cabeça com golpes de terçado.
Montoya, que seguiu uma bandeira de Raposo Tavares ate São Paulo, relatou que o caminho de Assunção a São Paulo, cumprido em 40 dias, era um tapete macabro de pedaços humanos.
Para escapar a sanções, corrompiam as autoridades. O padre Antônio Vieira já denunciava em suas cartas as "barretadas", suborno que os paulistas se gabavam de pagar às autoridades da Metrópole para continuar fazendo o que bem entendiam.
Raça bastarda
Nada disso faz tanto tempo, do ponto de vista histórico. Poucos brasileiros que realizarem exame de DNA, hoje bastante comum, deixarão de encontrar pelo menos uma pequena fração do sangue de algum ancestral indígena.
Apesar disso, o luso-brasileiro sempre ocultou ou negou sua porção índia. Instituiu um patriarcalismo envergonhado, que procurava apagar a origem da mãe.
A raiz indígena permaneceu oculta, esquecida como a nódoa de uma raça bastarda. Porém, muito do nosso comportamento, das nossas práticas, do nosso modo de ser foram transmitidos de geração em geração. Como ocultamos o índio de nós mesmos, não entendemos como vem dele também muito do nosso comportamento, ainda que de forma inconsciente, ou subliminar.
São muitos os sinais do índio em nós. Para começar, o indio não respeita autoridade. Até hoje, em aldeias como as do Xingu, o chefe comanda na base de dar presentes. E isso não é corrupção - é o dever do chefe. Espera-se dele que se dê presentes e se ele não os dá, perde o poder.
Quando imaginamos que a corrupção no Brasil vem do português, esquecemos o índio. O português corrompia o Conselho Ultramarino para continuar burlando as leis no Brasil, mas sabia que isso era crime. O índio não tem essa noção do pecado ou da moralidade no poder.
O índio não não guarda para o futuro. Vive da mão para a boca: caça e pesca quando tem fome. O brasileiro não guarda, pensa nem planeja para o futuro. Trabalha o suficiente para voltar ao ócio. Não faz poupança. Se tem dinheiro hoje, gasta tudo, sem pensar no amanhã. É o oposto dos japoneses, por exemplo, que vivem poupando.
Como resultado, coletivamente o Brasil não faz planos de longo prazo. Faz dívida, e não poupança para investir. Farreia nos bons momentos e depois cai de novo no buraco.
Vive nesses ciclos, com surtos de crescimento e queda, em vez de criar planos consistentes, em que se provê no presente para investir no futuro, base para o crescimento contínuo e sustentável.
Nas tribos indígenas, o chefe é um distribuidor de presentes e favores. Para eles, isso não é corrupção. É apenas como as coisas funcionam. Mantém o poder o chefe que mais dá presentes e pode sustentar mais gente. E as pessoas esperam ser sustentadas por ele.
Como fartamente estudado na antropologia política, é um sistema de trocas, que se pode comprovar nas reservas indígenas, onde as tribos funcionam como sempre. Certa vez em que fui ao Xingu assistir a um quarup, ouvi queixas de Jacalo, terceiro cacique kuikuro, dizendo que trabalhava muito, porque para manter seu status tinha de ar muitos presentes para todo mundo.
Corrupção é normal
No Brasil, os políticos mantém o poder por meio do favorecimento. E não vêem mal na corrupção. Os corrompidos também não. Ao contrário, esperam serem sustentados pelos senhores do poder, permitindo a estes que continuem tendo seus privilégios, por concessão do próprio povo.
O brasileiro reclama da corrupção política, mas não faz nada para mudar isso, nem se importa com ela, desde que esteja ganhando também. Se é ele que recebe, aceita o favor ou a negociata sem importar-se com as consequências ou o efeito multiplicador desse comportamento.
Há muitos outros sinais da presença indígena no brasileiro. O brasileiro adora comprar bugiganga e fazer rolo - trocar coisas. O brasileiro não respeita autoridade. O brasileiro fala mal de todo mundo, incluindo de si mesmo e da corrupção geral, para a qual quotidianamente contribui. Tende para a alacridade. De longe sabemos qual é o portão onde tem voo para o Brasil. É o único onde o pessoal fala alto, gritando uns por cima dos outros.
O índio vivia para matar o inimigo. Para ele, ao ir à guerra, só havia uma opção: ganhar ou morrer. Não havia prisioneiros: os vencidos eram todos mortos, sendo que os prisioneiros mais valorosos eram devorados. Não havia para o índio a opção de perder. Para o brasileiro, também. O brasileiro não gosta de ser vice nem no futebol. Não existe opção, a não ser a vitória.
Com exceção dos tupinambás, que foram dizimados, os índios não eram territorialistas. Eram nômades, que mudavam de lugar conforme rareavam os recursos no lugar onde se encontravam. O brasileiro também não tem apego à terra nem a preserva. fazia suas culturas como o índio, queimando o mato, e depois mudava, deixando para trás a coivara - a terra devastada.
Na falta de amor à terra, o índio combinou-se com o português, que vinha ao Brasil para fazer a vida e voltar à Metrópole. O Brasil sempre foi o lugar para ser explorado. A riqueza, porém, era levada para a Europa. Não importa a destruição que ficar para trás. Hoje, o brasileiro fica rico e pode optar por Miami, mas o princípio é o mesmo.
Atraso permanente
É preciso certa coragem para vencer a vergonha histórica e admitir que o índio somos nós. Ele não desapareceu: vive, incorporado à sociedade. Não é só nome de rua ou de cidade. É o povo brasileiro.
Claro que os portugueses e negros contribuíram - e muito - para o que somos. Assim como os imigrantes alemães, italianos e japoneses que vieram depois. Mas há uma matriz da brasilidade que ainda prevalece, até porque as outras se misturaram com ela.
Prevalece porque é dura, veio de um tempo de sobrevivência num mundo hostil, com um sentido de preservação como talvez não exista em outro lugar do mundo. Serviu à ocupação de uma terra inóspita, contra povos canibais e beligerantes, e que por muito tempo foi apenas e tão somente entreposto para chegar a lugares mais rico - as Índias Orientais e, sertão adentro, as minas da Bolívia e do Peru.
É essa sanha que faz com que o Brasil tenha permanecido em atraso, por séculos em que outras nações se tornaram muito mais desenvolvidas, e de forma mais sustentável, como o Japão, a Austrália, o Canadá e os Estados Unidos, cujo impulso não tem mais que trezentos anos.
Muitos dirão que a Europa só se tornou civilizada com os recursos que trouxe das colônias na América, mas o fato é que nesse tempo os europeus deixaram de ser um conglomerado de feudos bárbaros para se tornar um modelo de democracia social porque sua sociedade mudou.
Enquanto isso, o Brasil permanece um paradigma de subdesenvolvimento, de corrupção, violência e desorganização. Ah, falar mal de si mesmo é outro traço indígena. Neste caso, espero com este texto poder servir para algo construtivo, e não apenas para nos queixarmos, assim como quem cata piolhos.
Hoje olho as pessoas na rua, os políticos, a fila do supermercado e vejo um outro Brasil, não o que se mostra, e sim a matriz daquilo que somos. Vejo tudo diferente, com se enxergasse o brasileiro nu.
Quando reclamamos de nossos problemas, e não entendemos por que somos assim - um país mergulhado em crises econômicas e institucionais cíclicas, sem projeto para o futuro, com uma classe política e econômica corrompida - não vemos as causas disso tudo. E o quanto isso tudo está dentro da sociedade brasileira. A corrupção, a deseducação, a falta de ética, como se diria nos evangelhos, tudo está no meio de nós.
Existem hoje muitos críticos do determinismo geográfico e histórico, segundo os quais não podemos atribuir nossos males à nossa formação. Seria fugir às nossas responsabilidades e atirar para o passado coisas que devíamos resolver hoje.
Porém, ao estudar a história, não se pode negar que o passado está não apenas no nosso sangue, por força hereditária, como por uma herança atávica no nosso comportamento individual e coletivo.
Atua e influencia o que somos hoje. E como seremos, pois só entendendo esse passado é possível ter mais consciência do que é preciso fazer para mudar.
Escamoeamos o nosso passado, varremos nossas verdades para baixo do tapete. Temos vergonha de muita coisa, preferimos entender. depois, não gostamos nem entendemos o jeito que somos.
Uma dessas verdades que a gente preferiu enterrar é que existe uma grande influência do índio no brasileiro, na nossa sociedade.
Essa simples declaração costuma ser rejeitada por muita gente, porque vive sendo negada desde o início da nossa existência como Nação. Mas é puramente uma constatação histórica e antropológica, da qual não escaparemos sem enfrentar a realidade.
O índio não desapareceu da sociedade brasileira. Não está restrito a tribos isoladas na Amazônia ou a reservas como o parque do Xingu. Ele ainda está no meio de nós, não apenas como nome de rua ou cidade. O índio ainda somos nós.
Tabu
Esse assunto sempre foi tabu, porque o brasileiro sempre tentou varrer o índio do mapa - fisicamente, primeiro, e depois da nossa história. Isso não muda o fato de que ele está no vértice da nossa sociedade. Sem esse elemento, é impossível entender nossos males. E também algumas de nossas virtudes.
Quando chegaram ao Brasil os primeiros portugueses, em 1500, havia cerca de 4 milhões de indígenas na América do Sul. Dois séculos depois, ao fim do período que estudo em A Criação do Brasil, havia 150 mil europeus na colônia brasileira, mas a população havia caído para pouco mais de 2 milhões de pessoas.
Essa redução dramática se deveu a alguns fatores. Primeiro, o genocídio dos índios da costa, que dizimou a nação tupinambá. Segundo, sua escravização, que aconteceu em escala muito maior do que costumam mostrar os livros escolares.
A Criação do Brasil mostra como os bandeirantes chegaram a criar campos de concentração com até 5 mil índios prisioneiros no território das Missões, do Paraguai até o Rio Grande do Sul. Menos de 20% deles chegavam vivos a São Paulo.
Houve também as grandes epidemias de "bexigas", doenças trazidas pelos europeus, especialmente a gripe, o sarampo e a varíola, que dizimaram índios em massa. Porém, a maior parte da população continuou sendo esmagadoramente indígena, parte pura e parte mesclada ao português.
Havia poucas mulheres que migravam de Portugal para a colônia. A matriz do brasileiro tem pai português e mãe índia. O bandeirante paulista era português e mameluco - filho de português e índia.
Andava no sertão descalço, como se vê em A Criação do Brasil, e até meados do Século XVIII sua primeira língua ainda era o tupi.
Fosse português ou mestiço, o bandeirante era um semibárbaro. Não respeitava as leis do império, as mais elementares. O padre Montoya, líder jesuíta das Missões, não citava o nome de Raposo Tavares, por considerá-lo a encarnação do demônio, matador impiedoso de índios.
Os bandeirantes não estavam longe de seus ancestrais antropófagos. Não se importavam de matar os prisioneiros e os tratavam da maneira mais cruel. De campos de concentração, levavam os índios capturados em grupos de oito, presos um ao outro pelo pescoço com gargalheiras de ferro. Quando um não acompanhava a marcha, os paulistas não se davam ao trabalho de soltar os grilhões: cortavam-lhe a cabeça com golpes de terçado.
Montoya, que seguiu uma bandeira de Raposo Tavares ate São Paulo, relatou que o caminho de Assunção a São Paulo, cumprido em 40 dias, era um tapete macabro de pedaços humanos.
Para escapar a sanções, corrompiam as autoridades. O padre Antônio Vieira já denunciava em suas cartas as "barretadas", suborno que os paulistas se gabavam de pagar às autoridades da Metrópole para continuar fazendo o que bem entendiam.
Raça bastarda
Nada disso faz tanto tempo, do ponto de vista histórico. Poucos brasileiros que realizarem exame de DNA, hoje bastante comum, deixarão de encontrar pelo menos uma pequena fração do sangue de algum ancestral indígena.
Apesar disso, o luso-brasileiro sempre ocultou ou negou sua porção índia. Instituiu um patriarcalismo envergonhado, que procurava apagar a origem da mãe.
A raiz indígena permaneceu oculta, esquecida como a nódoa de uma raça bastarda. Porém, muito do nosso comportamento, das nossas práticas, do nosso modo de ser foram transmitidos de geração em geração. Como ocultamos o índio de nós mesmos, não entendemos como vem dele também muito do nosso comportamento, ainda que de forma inconsciente, ou subliminar.
São muitos os sinais do índio em nós. Para começar, o indio não respeita autoridade. Até hoje, em aldeias como as do Xingu, o chefe comanda na base de dar presentes. E isso não é corrupção - é o dever do chefe. Espera-se dele que se dê presentes e se ele não os dá, perde o poder.
Quando imaginamos que a corrupção no Brasil vem do português, esquecemos o índio. O português corrompia o Conselho Ultramarino para continuar burlando as leis no Brasil, mas sabia que isso era crime. O índio não tem essa noção do pecado ou da moralidade no poder.
O índio não não guarda para o futuro. Vive da mão para a boca: caça e pesca quando tem fome. O brasileiro não guarda, pensa nem planeja para o futuro. Trabalha o suficiente para voltar ao ócio. Não faz poupança. Se tem dinheiro hoje, gasta tudo, sem pensar no amanhã. É o oposto dos japoneses, por exemplo, que vivem poupando.
Como resultado, coletivamente o Brasil não faz planos de longo prazo. Faz dívida, e não poupança para investir. Farreia nos bons momentos e depois cai de novo no buraco.
Vive nesses ciclos, com surtos de crescimento e queda, em vez de criar planos consistentes, em que se provê no presente para investir no futuro, base para o crescimento contínuo e sustentável.
Nas tribos indígenas, o chefe é um distribuidor de presentes e favores. Para eles, isso não é corrupção. É apenas como as coisas funcionam. Mantém o poder o chefe que mais dá presentes e pode sustentar mais gente. E as pessoas esperam ser sustentadas por ele.
Como fartamente estudado na antropologia política, é um sistema de trocas, que se pode comprovar nas reservas indígenas, onde as tribos funcionam como sempre. Certa vez em que fui ao Xingu assistir a um quarup, ouvi queixas de Jacalo, terceiro cacique kuikuro, dizendo que trabalhava muito, porque para manter seu status tinha de ar muitos presentes para todo mundo.
Corrupção é normal
No Brasil, os políticos mantém o poder por meio do favorecimento. E não vêem mal na corrupção. Os corrompidos também não. Ao contrário, esperam serem sustentados pelos senhores do poder, permitindo a estes que continuem tendo seus privilégios, por concessão do próprio povo.
O brasileiro reclama da corrupção política, mas não faz nada para mudar isso, nem se importa com ela, desde que esteja ganhando também. Se é ele que recebe, aceita o favor ou a negociata sem importar-se com as consequências ou o efeito multiplicador desse comportamento.
Há muitos outros sinais da presença indígena no brasileiro. O brasileiro adora comprar bugiganga e fazer rolo - trocar coisas. O brasileiro não respeita autoridade. O brasileiro fala mal de todo mundo, incluindo de si mesmo e da corrupção geral, para a qual quotidianamente contribui. Tende para a alacridade. De longe sabemos qual é o portão onde tem voo para o Brasil. É o único onde o pessoal fala alto, gritando uns por cima dos outros.
O índio vivia para matar o inimigo. Para ele, ao ir à guerra, só havia uma opção: ganhar ou morrer. Não havia prisioneiros: os vencidos eram todos mortos, sendo que os prisioneiros mais valorosos eram devorados. Não havia para o índio a opção de perder. Para o brasileiro, também. O brasileiro não gosta de ser vice nem no futebol. Não existe opção, a não ser a vitória.
Com exceção dos tupinambás, que foram dizimados, os índios não eram territorialistas. Eram nômades, que mudavam de lugar conforme rareavam os recursos no lugar onde se encontravam. O brasileiro também não tem apego à terra nem a preserva. fazia suas culturas como o índio, queimando o mato, e depois mudava, deixando para trás a coivara - a terra devastada.
Na falta de amor à terra, o índio combinou-se com o português, que vinha ao Brasil para fazer a vida e voltar à Metrópole. O Brasil sempre foi o lugar para ser explorado. A riqueza, porém, era levada para a Europa. Não importa a destruição que ficar para trás. Hoje, o brasileiro fica rico e pode optar por Miami, mas o princípio é o mesmo.
Atraso permanente
É preciso certa coragem para vencer a vergonha histórica e admitir que o índio somos nós. Ele não desapareceu: vive, incorporado à sociedade. Não é só nome de rua ou de cidade. É o povo brasileiro.
Claro que os portugueses e negros contribuíram - e muito - para o que somos. Assim como os imigrantes alemães, italianos e japoneses que vieram depois. Mas há uma matriz da brasilidade que ainda prevalece, até porque as outras se misturaram com ela.
Prevalece porque é dura, veio de um tempo de sobrevivência num mundo hostil, com um sentido de preservação como talvez não exista em outro lugar do mundo. Serviu à ocupação de uma terra inóspita, contra povos canibais e beligerantes, e que por muito tempo foi apenas e tão somente entreposto para chegar a lugares mais rico - as Índias Orientais e, sertão adentro, as minas da Bolívia e do Peru.
É essa sanha que faz com que o Brasil tenha permanecido em atraso, por séculos em que outras nações se tornaram muito mais desenvolvidas, e de forma mais sustentável, como o Japão, a Austrália, o Canadá e os Estados Unidos, cujo impulso não tem mais que trezentos anos.
Muitos dirão que a Europa só se tornou civilizada com os recursos que trouxe das colônias na América, mas o fato é que nesse tempo os europeus deixaram de ser um conglomerado de feudos bárbaros para se tornar um modelo de democracia social porque sua sociedade mudou.
Enquanto isso, o Brasil permanece um paradigma de subdesenvolvimento, de corrupção, violência e desorganização. Ah, falar mal de si mesmo é outro traço indígena. Neste caso, espero com este texto poder servir para algo construtivo, e não apenas para nos queixarmos, assim como quem cata piolhos.
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