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quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Liberdade e igualdade: o legado para os nossos filhos


A inocência foi perdida, a minha, a do mundo. Não se pode reclamar da extinção daquele tempo que conhecemos, nem dizer que foi o tempo em que honestidade não era qualidade, porque ser desonesto era exceção. Em que ainda se podia brincar na rua, em que as crianças eram mais crianças, porque mal começava a aparecer a televisão e o que tínhamos para viver eram os brinquedos de sempre, a cabra-cega, o pega-pega, a bicicleta, os carrinhos de rolemã, a bola redonda que rolava nas ruas de terra.

Havia cachorros vadios nas ruas, nós os conhecíamos, lhes dávamos nomes e torcíamos contra a carrocinha quando ela aparecia para pegá-los. Dizia-se na época que cachorro apanhado virava sabão e odiávamos os funcionários da prefeitura que os levavam para que se perpetrasse tamanha maldade.

Hoje as crianças amadurecem cedo, a TV lhes dá informação como a adultos, os brinquedos digitais fazem com que pensem rápido, mas o mundo não está melhor. É preciso ainda sair na rua para ver os outros, brincar de cabra-cega, rodar pião, andar de bicicleta, ver o sol, lamber sorvete nas tardes de calor, tomar guaraná escondido, abraçar, beijar.

É preciso viver os tempos inocentes, preservá-los, porque eles não voltarão.

É preciso aprender as coisas do começo, sem pressa, a pressa talvez que eu tive, ao começar a escola antes dos outros, ao conviver com gente mais velha, sempre com pressa, pressa, pressa, para ver que chega a idade em que isso não faz mais sentido, as distâncias entre as pessoas diminuem, o tempo pára e desejamos que parasse de verdade.

É preciso resgatar para os adultos também um pouco dessa antiga inocência, em que não haviam diferenças homofóbicas, regionalistas ou raciais. Na minha infância, nas ruas da Casa Verde de meus avós, o “neguinho” que jogava bola na rua me chamava de “alemão” e brincávamos lado a lado, sem pensar em outras implicações, porque não havia necessidade de brigar pela igualdade.

A igualdade não vem das religiões, não vem do ensinamento dos pais, nem da escola. Antigamente ela vinha da realidade da rua, em que todas as crianças se misturavam, brincavam juntas num mundo onde realmente existia e que eu guardo até hoje como a igualdade fundamental do homem.

O Brasil que espera meu filho aprofundou as diferenças. Elas são sociais, fundadas no abismo criado entre ricos e pobres, são raciais, políticas e também sexuais e religiosas. Dividido vive o mundo entre judeus, católicos, evangélicos, protestantes, muçulmanos. Esqueceram que os homens são iguais, o que torna iguais todas as religiões, pois todas as pessoas precisam de um pouco de fé para viver. Têm de acreditar em algo para lutar contra as dificuldades. Enfim, para serem pessoas melhores.

É preciso não ser ingênuo para acreditar que todos pensam assim. Existem os insensatos, os radicais, os indiferentes, tão perigosos quanto os anteriores, os mal intencionados, os aproveitadores, os difamadores. Porém, quanto mais eles se fazem presentes, mais é necessário insistir, defender os bons princípios.

Não podemos perder nunca a capacidade de nos indignar contra as diferenças, contra a injustiça, contra o roubo, a desonestidade, a preguiça, a maldade, o vício, a intolerância. Sobretudo a intolerância, o maior mal que ameaça o mundo hoje em dia.

É necessário saber que toda violência vem desses pequenos males cotidianos, do pão que falta na mesa do pobre, da raiva originada no preconceito, do abandono da criança pela família, da incompreensão, de tudo aquilo que um homem pode deixar de ser quando deixa de ser criança.

Eu sou de uma geração que pacificou o Brasil, trouxemos a democracia de volta sem violência de qualquer espécie, buscamos a justiça social, criamos meios para alcançar o desenvolvimento econômico sustentado, uma geração voltada para o bem estar do brasileiro, que é dos mais pobres do planeta. Porém o mundo é maior que nós, ou vai sempre mais longe: para cada solução surgiram novos problemas. Temos que enfrentá-los. Para isso é preciso resgatar a coragem, a hombridade, a honradez, a persistência, as qualidades que fazem dos homens verdadeiros homens, perdidas numa era de desespero em que todos se voltam para o individualismo, o egoísmo e a amoralidade.

Nós precisamos ser firmes nas ações e no amor; temos que amar como devem amar os seres humanos, amar os outros acima de nós mesmos, e não negá-lo, porque aquilo que parece fraqueza, como o amor, é em geral a maior força.

Precisamos acreditar no futuro e trabalhar por ele.

Sermos amigos.

Sermos humildes na riqueza e orgulhosos na pobreza.

Sermos fortes na fraqueza e ternos em tempos duros.

Temos de ser parcimoniosos com nós mesmos e generosos com os outros.

Saber dividir e saber agregar.

Precisamos buscar sempre a sabedoria, o que implica em medir as decisões com inteligência e coração. E entender que a sabedoria é algo que nunca se alcança, ela sempre está mais adiante, por mais que caminhemos na sua direção.

Tudo isso digo a meu filho para que leia um dia, como um pequeno legado, e gostaria de estar muito tempo por aqui para guiá-lo nos seus pequenos passos, depois nos maiores, como meus pais fizeram comigo.

Mesmo que eu não tenha sido o melhor possível, esta é a hora em que eu compreendo mais o ciclo da vida e espero que a educação e os valores permitam povoar o mundo com gente melhor, inclusive, do que eu, do que nós.

Penso nisso quando penso em meu filho, e nos outros filhos que estão nascendo, à minha volta e no mundo inteiro, muitos dos quais perecerão em guerras, da fome, vítimas da violência, da intolerância e de tudo aquilo que não é mais possível, fruto de um mundo onde a tecnologia se desenvolveu atrofiando o ser humano.

PS: na foto, tirada na década de 1.960 por meu pai, numa viagem ao Rio Grande do Sul, estou com um grupo de crianças que conheci na roça gaúcha. Se não for possível saber a diferença, eu sou o que segura o gato.