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quinta-feira, 4 de abril de 2013

Quando o espelho fica feio



Há muitos anos, dei o sinal para a compra de uma casa, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Pertencia a uma viúva, que falecera e a deixara como herança para o filho, radicado nos Estados Unidos. A pessoa com quem eu tratara era o advogado do herdeiro, que recolheu o cheque - algo como 5 mil reais, em dinheiro de hoje, e me passou um recibo. Um levantamento nos cartórios, porém, revelou que havia uma pendência em relação ao imóvel. A empregada da viúva falecida alegava judicialmente que, por ter sido cuidadora nos últimos anos de vida da patroa, tinha direito à casa, que lhe teria sido deixada. Assim, achei melhor não concluir o negócio, que corria risco, e pedi o dinheiro do sinal de volta.

Pedi meu dinheiro de volta - e não o recebi. O advogado do herdeiro, de origem libanesa, alegava que o negócio ainda daria certo. Que eu esperasse para ver a solução do caso na Justiça, o que, como se sabe, pode levar anos. E entrei afinal na Justiça, isso sim, para reaver o dinheiro.

O tempo passou, a Justiça tarda, mas um dia acontece, e acabei por receber o dinheiro de volta, cobrado da pessoa a quem entreguei o cheque - o advogado libanês. Irritado com a demora da Justiça, e agindo como justiceiro, um ímpeto que às vezes me assalta, acatei a sugestão de minha advogada, que entrou com uma ação na OAB para cassar seu registro como advogado. A justificativa era evitar que, no exercício como advogado, ele viesse a lesar outras pessoas. Achava eu, um advogado não podia fazer aquele tipo de coisa.

O advogado foi cassado, uma notícia que me deu uma momentânea satisfação, que era de dever cumprido, talvez um pouco de vingança. E esqueci daquilo.

Cinco anos se passaram. Um dia, no trabalho, minha secretária avisou que uma senhora estava na porta da empresa, sem hora marcada. Era a mulher do advogado libanês e seu filho, que pediam para falar comigo. Concordei em recebê-la.

A senhora entrou na frente; tinha semblante aflito e trazia nas mãos uma pasta cheia de papéis. Atrás, o filho - um rapaz de seus vinte e poucos anos, olhar assustado. Sentaram na minha frente, na sala de reuniões. Então, ela começou a falar. Disse que o marido havia falecido, três anos antes; que ficara doente, porém, mais que tudo, vivera seus últimos anos amargurado por não poder trabalhar, uma vez que tinha perdido sua licença; e, mesmo depois de tanto tempo, e com o marido morto, queria me provar que ele não tivera culpa.

- O cheque estava com o herdeiro, nos Estados Unidos - ela disse. - Meu marido era honesto. Gostaria de lhe mostrar esses documentos, o senhor precisa conhecer a vida dele.

Passaram muitas coisas diante de mim - a figura arqueada do homem, seu nariz pronunciado, de onde saíam pelos escandalosamente longos; do paletó surrado, com cheiro de armário; e de como eu o tratara, com aquela gentileza formal de quem está interessado no negócio, e para isso tem de passar, necessariamente, por aquela pessoa. Pensei que, se fosse mesmo honesto, o advogado teria tentado recuperar o cheque, ou dizer que cobriria o cheque e depois cobraria do herdeiro; poderia ao menos não ter insistido para que eu concluísse o negócio, quando ambos sabíamos que isso seria arriscado e irregular e eu manifestara meu desejo de desfazê-lo. Porém, naquele momento, o que sobrava daquilo tudo era somente a viúva, de coração dilacerado, tentando provar a mim algo que ficara no passado.

Talvez ela quisesse explicar algo a si mesma, mais do que a mim; porém, talvez como uma vingança dos anos ruins que ajudaram a levar embora seu marido, quisesse que eu compreendesse algo sobre mim mesmo. E eu vi - vi o justiceiro, que quando já vencera uma disputa ainda pisoteara aquele que lhe fizera o mal; eu tinha ido longe demais, sem pensar nas consequências do que fazia para um ser humano, e não só a ele, mas aqueles que lhe eram caros.

Para mim, o negócio da casa ficara para trás; para a família do advogado libanês, durava até então; sobrevivera até mesmo à morte dele. E isso pesou.

O mal é feito de muitas formas - por raiva, fraqueza, inveja, soberba, orgulho, preconceito, ou, por vezes, escudado nas necessidades profissionais, por trás das quais está a desculpa da mera necessidade de sobrevivência. Muitas vezes, sim, fazemos o mal sem perceber. Mas outras, o mal passa na nossa frente, o enxergamos, e o cometemos mesmo assim, sem avaliar suas consequências. Mesmo a razão, quando passa das medidas, perde a razão; e a razão nunca pode desprezar o componente humano que há ou deveria haver nas nossas decisões.

Um simples gesto por mudar a vida das pessoas, para o bem ou para o mal. Muitas vezes sou surpreendido por uma pessoa, às vezes a mais inesperada, me agradecendo por algo que fiz de bom ou importante para ela, muito tempo atrás. É estranho, porque não lembro da maior parte dessas boas ações, o que me leva a pensar que na maioria das vezes fazemos o bem sem pensar. São aqueles gestos que nos custam pouco, e para nós são passageiros, mas por uma razão ou outra podem fazer muita diferença para melhor na vida de mais alguém.

Existe também o mal que fazemos sem perceber, mas também acaba, de uma forma ou outra, por se revelar. Assim como o bem que fizemos quase sem querer, ele também se apura com o tempo. Porém, entre o bem que fazemos, e o mal, o mal é o que fica conosco, o mal e que é mais difícil de olhar. De reconhecer. E de consertar.

domingo, 3 de março de 2013

O que é ser especial



André, 6 anos, leva um beijo de uma menina de 12, que vem dormir em casa.

Vem para minha cama, onde espero para lhe contar a história antes de dormir. Deita e, em tom confidente, me diz, na penumbra:

- Ela disse que tenho bochechas lindas. Eu sou um menino especial.

Sorrio. Digo:

- Você é mesmo um menino especial.

Ele esconde o rosto um pouco, se aproxima.

- Sou especial para você.

- Não filho, você é muito especial para mim, porque é meu filho, mas é especial para todo mundo.

O que é ser especial, afinal? Desde criança, sonhamos com muita coisa. Ser piloto de avião faria meu filho ser diferente? Será que a coragem distingue realmente os corajosos? Será que um cientista é especial ou mais especial que os outros porque a inteligência é distintiva. Ser belo é ser especial? Conheço gente corajosa e mesquinha; pessoas muito inteligentes racionalmente que são ignorantes sentimentais; existe beleza em gente feia, e isso pode fazer de pessoas sem grandes atributos físicos pessoais também especiais.

Todos cultivam a ideia de que é preciso ser especial, no sentido de diferente, único, com um talento ou capacidade admiráveis. É preciso ser especial para ser rico. Para conquistar as mulheres ou os homens. Para ganhar um prêmio. Para fica para a posteridade.

Ainda assim, todos são especiais, mesmo quem não tem talento, não se considera vencedor. Todo ser humano tem algo de único e inconfundível. Todo ser o humano tem o maior poder de todos: o poder de ser ele mesmo.

Meu filho me fez pensar sobre o que nos faz sentir especiais. E nessa noite, eu vi claramente o que é ser realmente especial. Ser especial é se sentir especial, por alguém que é especial para nós. Isso é o que faz a verdadeira diferença.