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domingo, 11 de setembro de 2016

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

Em 2003, depois de um período de trabalho que faria de qualquer um a pior pessoa do mundo, eu estava sentado diante da mesa do urologista Eric Wroclavski, que anunciou assim a descoberta casual de um tumor na minha bexiga, com um sorriso no rosto:

- Você teve sorte.

Sorte? Eu, com 36 anos, tinha um tumor. Sorte?

- Teve sorte, porque descbriu por acaso um tumor a tempo de poder se curar - disse ele.

Tumores são assintomáticos, daí que muita gente os descobre quando é tarde demais. Tempo é essencial. Eric marcou a operação para dali alguns dias, apesar de sua agenda estar cheia. "Não vou deixar ele com esse pólipozinho aí", disse a um assistente. Fui operado, fiz o tratamento, duro, e cinco anos de acompanhamento. Foi o mesmo Eric que me deu a notícia da cura. E recomendou que eu ficasse sempre de olho. Para não depender da sorte.

O que eu não sabia é que, na mesma época, Eric tinha descoberto que ele mesmo tinha um tumor. Na próstata. O mal que ele operava. Só que ele, Eric, o tinha descoberto tarde demais. Eric não contou a ninguém. Não contou à família: a mulher, também médica, e os filhos, médicos. Nem mesmo os médicos que trabalhavam em sua equipe sabiam. Conversava com colegas sobre seu caso nos Estados Unidos. E, sendo médico, se automedicava.

Tínhamos, em nossas consultas, longas conversas sobre a  doenaç e a vida. Ele dizia admirar o meu humor - um tanto ácido, é verdade - quando eu falava das fatalidades prosaicas da existência. Eu admirava sua vontade de trabalho. Eric era incansável. Perdi a conta de consultas das quais saí às duas horas da manhã, depois de esperar minha vez, sem reclamar, horas a fio.

Eu o respeitava, porque era um missionário. Atendia o maior número de pacientes que podia, incansavelmente. Horas depois, às seis da manhã, estava já no Einstein, fazendo cirurgia. Parecia numa jornada insana para salvar o maior número de pessoas que pudesse - dar a elas a chance que não tivera para si. Frequentemente tinha os olhos vermelhos: praticamente não dormia. E engordava a olhos vistos. Eu não sabia, mas era por conta dos remédios, com os quais procurava atrasar o progresso inevitável da doença.

Eric me fez viver, e estava morrendo. E só ele sabia disso. Quando um dia não aguentou mais as dores, e entrou no Einstein, dessa vez não como médico, mas para se internar, fiquei estarrecido. Todas as nossas conversas de repente mudaram de sentido. A começar pela frase: "Você teve sorte". Sim, entendi que tivera sorte, a sorte que lhe faltara.

Percebi que as muitas perguntas que ele me fazia não eram somente por minha causa, para saber como eu lidara com a doença. Eram perguntas do interesse dele mesmo, Eric.

Escrevi um romance em que coloquei a história do tratamento ficcionalmente. Em Campo de Estrelas, Eric aparece com o nome de Roger (na verdade, seu nome do meio). Fui visitá-lo no hospital e levei o livro. Eric estava na cama. De ótimo humor. Dali, ele despachava assuntos da associação dos urologistas, que presidia. Mesmo da cama, comandava tudo: seu tratamento, os enfermeiros, seu consultório.

Li para Eric, ao lado da cama, os trechos do romance em que ele aparecia. Primeiro ele fez uma queixa: "Por que você não colocou meu nome de verdade?". (Mais tarde, eu saberia que esse romance já foi muito lido para pacientes internados em hospitais). E eu também fiz uma queixa.

- Por quê você não me contou que estava doente?

Ele disse então que tinha descoberto a doença tarde demais e não queria viver sob o seu signo: os outros olhando para ele como doente. Queria ter uma vida normal, o mais que pudesse. Perguntei também por que ele, sabendo que tinha pouco tempo, trabalhava tanto, e não tinha usado seu dinheiro para viajar, ficar mais com a família ou fazer outra coisa qualquer. Ele me respondeu com uma pergunta.

- Se você soubesse que tem pouco tempo de vida, faria o quê?

Não precisei pensar muito.

- Acho que continuaria escrevendo. O mais que pudesse.

Ele falou, mas eu já sabia o que iria dizer.

- Então. Fiz o máximo o que sempre quis fazer.

Fui embora pesaroso. Foi a última vez em que o vi. Ao me despedir, eu o agradeci. E disse, apontando o livro, com um pouco de raiva:

- Vocês médicos não sabem nada. Eu sou o único que dá a vida eterna.

Eric morreu em 2009 e sua presença ainda não está só nos livros, mas em todas as pessoas que ajudou, seus familiares, amigos e em mim, que ainda estou por aqui. Com frequência penso nele e confiro se estou usando bem o tempo que me resta. É doloroso perder um grande homem e, posso dizer, um inesperado amigo. Acho que devo ainda escrever uma continuação de Campo de Estrelas e contar o resto da história. Afinal, é o que eu faço e farei, como ele, até não poder mais.

E você?  O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

A sabedoria diante do inevitável

Procuro um amigo, proponho tomarmos uma cerveja.

- Podemos nos ver, mas não bebo mais.

Estranhei.

- Mas foi recomendação médica ou decisão própria?

- Decisão própria.

Tenho outros amigos que resolveram levar vida espartana, todos no intuito de viver mais. Uns cortaram o fumo (o mais comum). Outros praticam esportes como loucos. Acreditam que cada vez que fazem algo em 1 segundo a menos estão ficando mais jovens. Desconfio que, depois de certa idade, forçar demais o corpo é que prejudica a saúde. Mas eles contribuem para as hordas que enchem as academias.

Eu não vou a academia. Por temperamento, detesto movimentos repetitivos. E não acho saudável. Fazer ginástica em esteira ou aparelhos de musculação, para mim, é como mascar chiclete - você mastiga e mastiga, mas não está se alimentando. Academia não pode ser vida saudável.

O que eu faço? Quem escreve leva uma vida muito sedentária; por isso, tento o mais possível manter a atividade física (caminhar, cuidar do sítio, fazer trabalhos manuais). Pratico algum esporte (bicicleta, piscina, futebol com o filho), mas como diversão. Acima de tudo, porém, acho que a sabedoria da saúde está em aceitar o envelhecimento.

O avanço da medicina colabora para que vivamos mais. Porém, o homem contemporâneo também rejeita cada vez mais a ideia do envelhecimento e da aproximação da morte. Com medo de morrer, vai se privando das coisas boas da vida. E vai morrendo antes da morte.

O homem difere dos animais porque bebe, fuma, se comunica por símbolos e mantém outros comportamentos que definem a civilização. Só não deixa de ser um animal que morre. Quem tem religião pode aceitar esse fato com mais tranquilidade. Mas não há Deus nas academias. De alguma forma, todos temos de aceitar e lidar com o inevitável, não lutar contra ele. É o caminho da verdadeira sabedoria. E da saúde.

Tenho um amigo, médico, que está acostumado a lidar com doenças graves e a perspectiva da morte, com que lida diariamente no trabalho. Ele tem planejado o resto de sua vida útil, onde cabe desfrutar seus prazeres prediletos. Diz, por exemplo que depois dos 70 anos voltará a fumar. Por que, daí em diante, esse tipo de restrição não faz mais diferença.

Como médico, ele não pode recomendar a pacientes e familiares certas coisas que decidiu para si mesmo. Afirma que, quando ficar seriamente doente, prefere ficar em algum lugar aprazível, onde não exista atendimento médico, ou onde o atendimento seja tão remoto que não haja tempo de hospitalização. Acredita que o pior pesadelo de uma pessoa é justamente não morrer - ficar num estado crítico, sustentada por caros recursos da medicina, que prolongam a vida, mas em condições inumanas ou desumanas. Assim como eu, entende que precisamos, um dia, acabar. Esse limite é até onde temos qualidade de vida.

Eu lembro de minha mãe no leito do hospital, às vésperas da morte, quando como último desejo pediu um sorvete, e com o organismo destroçado pela doença não conseguiu sequer lambê-lo. Ela me disse, meu filho, não se prive de nada na vida, não vale a pena. E me lembrou de Borges, que escreveu da velhice: se pudesse voltar no tempo, tomaria mais sorvete. E cometeria mais erros.

O caminho da sabedoria não é fácil. Estou certo, porém, que ele está muito mais dentro da nossa cabeça que no próprio corpo que agitamos nas esteiras eletrônicas. A paz de espírito é um fator fundamental para o equilíbrio do organismo. Às vezes, a angústia e a ansiedade modernas se manifestam nesssa luta insana pela fonte da eterna juventude. Isso é doença. É preciso envelhecer com tranquilidade e dignidade. Os que aceitam sua idade, estou certo, vivem mais.

terça-feira, 30 de junho de 2009

A aposta que todos perdemos


Morre o homem que salvava vidas

Quando o dr. Eric Wroclawski me disse, em seu consultório, que eu estava curado do tumor que tivera na bexiga – o que significava apenas fazer uma revisão anual dali em diante -, exultei.


- Agora, estamos em iguais condições – eu disse. – Podemos fazer uma aposta. Quem morrer primeiro de nós dois, perde. O único problema dessa aposta é que o vencedor não recebe o dinheiro.


Eu me dava bem com Eric, e vice-versa; durante todo o meu tratamento, ele dizia que achava admirável a maneira com que eu me referia à doença, às dificuldades derivadas dela e a mim mesmo com ironia. O que eu não sabia é que não estávamos em igualdade de condições. Eric descobrira cinco anos antes, mais ou menos ao mesmo tempo que eu, que tinha um tumor na próstata. Mas, ao contrário do meu polipozinho, o tumor dele era incurável.

Entre outros atos de coragem, Eric decidiu não contar nada a ninguém sobre a doença, o que incluía sua família, os médicos que com ele trabalhavam, os amigos e os pacientes – entre eles, eu. Só quem já passou por isso sabe avaliar quanta força é preciso para lidar com tamanho drama sozinho. Vítima da própria doença que tratava, Eric salvou milhares de vidas ao longo de sua carreira – mas sabia que não salvaria a si mesmo.

Ele tinha vontade de morrer em casa, mas as dores o levaram ao hospital onde trabalhava e permaneceu internado por mais de um ano, até falecer, há duas semanas. Quando eu soube da doença, escrevi sobre Eric – especialmente a visita que lhe fiz no hospital, na qual li para ele os trechos do meu romance Campo de Estrelas, em que ele aparece somente como Roger – seu nome do meio (leia nos arquivos de http://www.thalesguaracy.com.br/, com o título “De onde vem a coragem”). Aqui não quero me repetir - somente acrescento minha consternação diante do inevitável.

Algumas pessoas me criticaram, porque naquela coluna eu falava de Eric no passado, quando na realidade ele ainda estava vivo. Eu nunca quis apressar sua morte – apenas me revoltava contra o destino que colhera o homem como eu o havia conhecido.

Durante seu período de internação, de fato Eric continuou, mesmo dentro de suas limitações, a ser o homem ativo que sempre foi. Dirigia o consultório e as instituições que representava, graças ao seu cérebro inesgotável e o caráter de ferro que não obstruía o riso e a generosidade vindos do coração. Tomado pela metástase, só movimentava-se na cama com ajuda, mas ainda sabia rir e ser ele mesmo.


Tinha mais força do que quem estava em pé. Muitos – mesmo médicos – sequer foram visitá-lo no hospital. Para não encará-lo. E encarar seu próprio medo. Mas não se pode fazer juízo – estou certo de Eric também não o faria. Era mesmo difícil. Tanto que fui lá apenas uma vez – fraquejei quando soube que ele havia piorado.

Nunca poderemos nos conformar com o destino, ainda que não possamos fazer nada contra ele. Nesses momentos, um grito de revolta enche o peito e pela minha vontade correria as galáxias até atingir o responsável como um raio olímpico. Para mim, a morte é obra do Diabo, porque não consigo admitir recebê-la das mãos do nosso mesmo Criador. É muita maldade.

Como nas nossas muitas conversas, Eric certamente riria do que estou dizendo, com as mãos pousadas sobre a barriga, girando a cadeira ergométrica levemente. Ele era um médico: para ele, a morte significava meramente um coração ou outra coisa malfeita do organismo que parava de funcionar. E a vida, essa conjunção delicada de mil peças que podem falhar, cessava – muito embora Eric empregasse sua vida e todas as suas forças no sentido de evitá-lo.

Eric morreu, e podia ter sido eu. Salvei-me graças a ele, e ninguém pôde salvá-lo. Venci a aposta, para minha surpresa, mas não recebo nada. Nem mesmo a vida – nos encontraremos, é uma questão de umpouco mais de tempo. Enquanto isso, a força do espírito de Eric permanece comigo, da mesma forma que me acompanhava quando eu, assombrado pela perspectiva da morte, buscava nele amparo para acreditar no futuro, quando nem mesmo ele via algum futuro para si.


Fica aquele travo na língua, o vazio no coração, a revolta na alma. Gostaria de ter conservado Eric para sempre, não apenas por mim, como por todas a quem ele ajudou. Em meu romance, resta um pouco dele, cristalizado para a eternidade, mas a literatura não muda a realidade da morte nem apazigua o coração. A literatura não é suficiente. Nada é suficiente. Nada.