quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

"A voz que resta" e o homem

Um escritor experimentado na arte vintage de escrever à máquina e tomar conhaque na tampinha da garrafa. Uma alma se liquefazendo enquanto avança a madrugada.

Um apartamento com seus despojos: um disco de Bilie Holiday, A Invenção da Solidão, de Paul Auster, um abajour feito com a cabeça plástica de um cavalo.

O cinema vazio da sessão da 21 h de um dia já acabado. A vontade de acender também um cigarro.

Uma história em fragmentos. A mulher sem face. Braços, mãos, uma boca, flashes da memória, em fusão com divagações movidas ao álcool do texto de Vadim Nikitin, com alguns brilhantes rasgos ("tudo muda e nada anda").

A decepção que vira raiva contra tudo: a mulher que não cai na realidade "nem com o ronco" do marido; e a constatação cheia de ironia: "o teu marido sabe que o corno de agora em diante sou eu".

A luz vermelha dos puteiros, o azul, as variações da cor e do clima entre o "apocalipse e a apoteose" do homem abandonado.

"A voz que resta", longa metragem adaptado da peça de mesmo nome, levada à tela com o mesmo Gustavo Machado, que divide a direção do filme e a cena com os sensuais pedaços de Roberta Ribas, fala pelos homens - esses seres criados para resolver os problemas do mundo e nunca admitir suas necessidades, muito menos o sofrimento, ao qual já perderam até o direito, e hoje vivem sob ataque. 

Dessa expiação secreta, vem a intimidade com a sensação de que o abandono  é mais cruel para aqueles que nem têm mais "voz de fala" para reclamar. Fica então essa voz muda, escondida, envergonhada: a que resta. Uma reflexão, para gente de todos os sexos, e um ombro amigo, para quem sabe do trata o filme, feito durante a pandemia, e agora em circuito.

O sexo "abusivo" desaparece: é o homem que pede para gestar o filho da ex-amante. Inversão de papéis absurdo ou denúncia do desentendimento  coletivo do que é ser homem?

Diante da incompreensão, ou do absurdo da desumanização dos homens, como se todas as qualidades da pessoa sensível fossem "femininas", prisioneiro do silêncio, nada resta senão beber, chorar em segredo, esperar o sol, e a luz explodindo na janela. Que a manhã seja a morte do dia anterior e com ela venha o esquecimento.

É inútil, sabemos: há sentimentos dos quais é difícil a gente se livrar. Fica só essa vontade de que tudo seja um pesadelo desses que se sonha e se esquece.

Quem diz que só mulher sofre (e quer fazer os homens como gênero pagarem por isso) é porque nunca foi homem. Ou nunca disse "eu te amo".



terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

A Exploração do Brasil e um caso de polícia


Um homem encapuzado bateu nesta exata janela, na esquina da rua que hoje se chama Cláudio Manuel da Costa, em Ouro Preto, MG, acordando o advogado e poeta, que alugava a casa, naquela madrugada de 1789.

Avisou-o de que o alferes Xavier havia sido preso no Rio de Janeiro, aconselhou-o a fugir e correu 100 metros acima, para dizer o mesmo ao desembargador Tomás Antônio Gonzaga.
Como conto em A Exploração do Brasil (1700-1800, que está chegando às livrarias, Costa preferiu ficar. 

Foi preso e dias depois, após seu primeiro depoimento no inquérito que apurava a conspiração mineira, apareceu morto numa sala na Casa dos Contos, onde cobravam os impostos e taxas na cidade, transformada em cela e quartel improvisados. Ficava um andar abaixo do salão onde os insurgentes se reuniam em noitadas até às três da manhã.

As circunstâncias da morte de Gonzaga, conforme narro no livro, permaneceram em mistério. O legista assinou um laudo segundo o qual Costa teria se enforcado com um cordão de sapato, amarrado a um móvel tão baixo que não lhe chegava na cintura.

Seu depoimento desapareceu dos autos - só reapareceu um século depois. Nele, Costa sugere que o governador, o Visconde de Barbacena, teria flertado com a ideia do golpe. E mais: que toda a milícia de Vila Rica, antigo nome de Ouro Preto, conhecia a conspiração.

Ao receber a notícia da morte do advogado, o vice-rei, no Rio de Janeiro, tio de Barbacena, mandou que os presos fossem transferidos de Vila Rica para a fortaleza da Ilha das Cobras, na baía da Guanabara, onde já se encontrava o Tiradentes, antes que perdesse outras testemunhas.

Costa, patrono da cadeira n. 2 da Academia Brasileira de Letras, pertenceu ao núcleo central da conspiração mineira, intrincado, fascinante e fundamental episódio da história brasileira, narrada com detalhes em A Exploração do Brasil.

Decifrar o que realmente aconteceu, dado que os depoimentos são defensivos e tudo foi encoberto omissões e mentiras, inclusive por parte das autoridades, requereu o esforço de uma reportagem investigativa, realizada em pleno século XXI.
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