Um escritor experimentado na arte vintage de escrever à máquina e tomar conhaque na tampinha da garrafa. Uma alma se liquefazendo enquanto avança a madrugada.
Um apartamento com seus despojos: um disco de Bilie Holiday, A Invenção da Solidão, de Paul Auster, um abajour feito com a cabeça plástica de um cavalo.
O cinema vazio da sessão da 21 h de um dia já acabado. A vontade de acender também um cigarro.
Uma história em fragmentos. A mulher sem face. Braços, mãos, uma boca, flashes da memória, em fusão com divagações movidas ao álcool do texto de Vadim Nikitin, com alguns brilhantes rasgos ("tudo muda e nada anda").
A decepção que vira raiva contra tudo: a mulher que não cai na realidade "nem com o ronco" do marido; e a constatação cheia de ironia: "o teu marido sabe que o corno de agora em diante sou eu".
A luz vermelha dos puteiros, o azul, as variações da cor e do clima entre o "apocalipse e a apoteose" do homem abandonado.
"A voz que resta", longa metragem adaptado da peça de mesmo nome, levada à tela com o mesmo Gustavo Machado, que divide a direção do filme e a cena com os sensuais pedaços de Roberta Ribas, fala pelos homens - esses seres criados para resolver os problemas do mundo e nunca admitir suas necessidades, muito menos o sofrimento, ao qual já perderam até o direito, e hoje vivem sob ataque.
Dessa expiação secreta, vem a intimidade com a sensação de que o abandono é mais cruel para aqueles que nem têm mais "voz de fala" para reclamar. Fica então essa voz muda, escondida, envergonhada: a que resta. Uma reflexão, para gente de todos os sexos, e um ombro amigo, para quem sabe do trata o filme, feito durante a pandemia, e agora em circuito.
O sexo "abusivo" desaparece: é o homem que pede para gestar o filho da ex-amante. Inversão de papéis absurdo ou denúncia do desentendimento coletivo do que é ser homem?
Diante da incompreensão, ou do absurdo da desumanização dos homens, como se todas as qualidades da pessoa sensível fossem "femininas", prisioneiro do silêncio, nada resta senão beber, chorar em segredo, esperar o sol, e a luz explodindo na janela. Que a manhã seja a morte do dia anterior e com ela venha o esquecimento.
É inútil, sabemos: há sentimentos dos quais é difícil a gente se livrar. Fica só essa vontade de que tudo seja um pesadelo desses que se sonha e se esquece.
Quem diz que só mulher sofre (e quer fazer os homens como gênero pagarem por isso) é porque nunca foi homem. Ou nunca disse "eu te amo".