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Eu devia ter oito anos de idade, quando meu pai, Alípio, comprou um caderno quadriculado, me deu uma caneta e me levou ao Pátio do Colégio, marco zero da cidade de São Paulo, dizendo que íamos trabalhar.
Lá, dentro de uma parede de vidro, está o muro de taipa do antigo colégio, embrião da maior metrópole da América Latina, que cresceu ao redor de uma escola. Ele me mandou desenhar o muro, medir sua distância, a altura, descrever o que eu via.
Lembro que não entendi por que fizemos aquilo: parecia algo para ocupar o tempo, num final de semana. Meu pai adorava fotografar e fez um registro daquele momento.
Eu já nem me lembrava disso, mas há coisas que devem ficar no subconsciente e fazem de nós aquilo que somos. Quarenta anos e alguns livros depois, escrevi A Conquista do Brasil (1500-1600), já na sua segunda edição, depois de cinco reimpressões e mais de 100 mil exemplares vendidos.
Nele se narra a fundação de São Paulo, episódio fundamental na violenta história da ocupação da costa brasileira, dentro de um esforço para entender a relação daquele muro derruído com tudo o que somos hoje, com nossos defeitos e virtudes - o nosso DNA.No segundo livro, A Criação do Brasil (1600-1700), também agora relançado, tive de ir mais longe no passado, até a própria formação de Portugal e Espanha. E mostro como os jesuítas utilizaram aquela escola como ponto de partida para a ocupação europeia, não somente do Brasil como de todo o chamado Novo Mundo.
Outro dia, fui à casa de meu pai, contar que estava saindo a segunda edição dos livros, e mencionei ainda que havia escrito sobre minha primeira experiência como jornalista, que tinha sido com ele. Meu pai, porém, não lembrou do episódio ao qual eu me referia - umas férias em que eu tinha 14 anos, e fiz um breve estágio em uma revista que ele dirigia.
Lembrou-me daquela primeira experiência de criança: o menino que ele colocou, com um caderno na mão, diante de um muro.- Mas aquilo era para ser uma reportagem? - perguntei a ele.
- Não sei para você, mas para mim, foi.
Dou-me conta de que desde então tenho sido aquele menino, com o caderno na mão, olhando o muro, como o monolito de 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Kubrick, que simboliza a origem, onde está a chave dos mistérios da vida, tentando decifrar seu enigma.
Ainda uso caderno e caneta, e somos os mesmos, eu e meu pai. Estamos mais velhos e sabemos, como Platão, que sabemos cada vez menos. Não sei dizer por exemplo o quanto do que faço se deve a ele, ou a mim mesmo. Porém, de certa forma, talvez tenha sido ele a escrever meus livros, desde o dia em que me deu um propósito.
Hoje aquele menino de caderno na mão, depois de dez anos de trabalho, completa a trilogia da Formação do Brasil, que conta ainda com A Criação do Brasil (1600-1700) e agora A Exploração do Brasil (1700-1800). Vejo que não foram dez anos, mas uma vida inteira, que começou ali, no marco zero, meu e de São Paulo.
A meu pai, um obrigado para o qual não há palavras. Agradeço também a todos os que fizeram destes livros um sucesso e assim permitem que eu continue este trabalho. Porém, mesmo que não tivesse leitores, creio que continuaria fazendo o que faço. Minha trilogia colonial é isto: eu diante do muro, tentando entender quem sou, quem somos todos, o que estamos fazendo e faremos aqui.
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PS. Para quem ainda não leu os livros, advirto que poderá encontrar neles uma história do Brasil diferente da que se aprende nas escolas, reveladora e, espero, capaz de nos ajudar a melhorar.
Vale a pena também ir ao Pátio do Colégio, para ver, sentir in loco como tudo começou. Para esta imensa cidade e este fenomenal país. E para estes livros, ou: para mim.
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Fotos: Alípio do Amaral Ferreira |
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