sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Marcelo Ariel e a realidade rasgada

O poeta e dramaturgo Marcelo Ariel está na mesa do II Festival de Poesia promovida pelo departamento de Letras da USP, com o tema "poesia contemporânea". Tarde quente de sexta-feira, há uma breve paz entre cartazes da guerra ideológica, pregados nas paredes da honorável escola. Com um chapéu de palha de lavrador e camiseta de Miles Davis, ele fala.

Fala, não; ou não apenas fala. Coloca som de pássaros como sonoplastia, canta, declama. Diz que ele mesmo, Ariel, é o cavalo de Exu e seu objetivo é a destruição, para a substituição da realidade por um "mundo digno". Lê um poema inédito: o "vazio vai iluminar o Brasil". 

Acaba de lançar um livro pelo Círculo de Poemas (A água veio do sol, disse o breu), onde há poesia que poderia ser chamada de "negra", por tratar do tema e promover essa voz. Para ele o negro não é um tema político, é a vida.  "Como ser um negro II" é o poema em que ele escreve como sua própria mãe, até o dia em que nasce, um livro que pretende "não terminar nunca".

A poesia de Ariel, porém, vai além dos temas da diversidade: ela é  ponto de partida para o universal. Não defende um interesse, um gênero,  uma raça: sua poesia é filosófica, humanista, geral. Expulso da escola, ele diz ter se formado na rua, a "universidade desconhecida". Diz representar o "pensamento coral" e fazer parte de um "oceano de vozes contrárias".

Tem o privilégio de pertencer à corrente dos poetas contemporâneos ainda vivos, o que lhe permite estar em todos os lugares, ao mesmo tempo em que, como um poeta sem tribo, ou da tribo de um só, está em lugar nenhum. Ele me confirma algo que digo há muito tempo: o poeta é um ponto infinito.

Os vivos se ligam ao seu tempo, e isso deve ser a "poesia contemporânea". Ariel escreve sobre os "transe-entes" da vida, que não enxergam o que ele enxerga e, portanto, não sabem ou não entendem viver. Em busca da clarividência, evoca novos significados e combinações da palavra, suas conjugações, produzindo novos sentidos para o mesmo. Invoca os mistérios inexplicáveis. "O corpo é o nosso pajé", diz ele. É um feiticeiro e também um Quixote, contra os moinhos da ignorância. 

A busca semiológica da poesia no mundo de hoje quer, diante de tanta informação, encontrar novos significados, ou que sejam de novo verdadeiros. Num mundo sem verdades,  ou de pós-verdades, a própria palavra perde seu sentido original: porém,  da sua recombinação, vêm novas edificações mentais e emocionais.

A diferença de Ariel para outros é que ele usa a beleza da expressão para rasgar a realidade. Há no seu desconcerto a intenção de destruir o mundo conhecido: um sentimento que não é do negro, mas da contemporaneidade. Intencionalmente ou não,  essa realidade rasgada como papel picado forma uma nova massa reciclável, transformada em energia, fonte do mundo de Ariel, ou pelo menos do mundo como gostaria que fosse. 

A poesia contemporânea não existe: existe só o poeta, o vivo e o morto. E a arte, a única realidade, objeto de seu trabalho. Na sua confecção,  Ariel não inventa palavras, como os neologistas do construtivismo, que desconstruíam e reconstruíam a palavra como tijolos semânticos de edifícios  inesperados. Mas a usa como arma, até contra ela mesma. "O problema é a linguagem" diz ele. "Precisamos fazer um curto circuito da linguagem."

Coloca o desafio de trazer o sonho para a realidade. "Essa é a grande viagem", diz. Nesse esforço geral para transformar o visto em não visto, Ariel ataca a ordem com fúria niilista. O Breu do título do livro "é nossa memória mais antiga", explica. É a escuridão, mas ele deixa entrever um pouco de fé: a regurgitação do velho pode produzir não apenas algo reciclado,  mas o novo, e o melhor. 

A transcendência da realidade pela poesia é a nova realidade. Exalta a "vida livre", e a "erotização da vida", tudo o que a faz valer a pena. Esse tudo virá de novo do Big Bang poético: tudo virá do nada. A esperança é esta: "o Breu renovará nossa vida".

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

A Conquista do Brasil: como tudo começou


Eu devia ter oito anos de idade, quando meu pai, Alípio, comprou um caderno quadriculado, me deu uma caneta e me levou ao Pátio do Colégio, marco zero da cidade de São Paulo, dizendo que íamos trabalhar.

Lá, dentro de uma parede de vidro, está o muro de taipa do antigo colégio, embrião da maior metrópole da América Latina, que cresceu ao redor de uma escola. Ele me mandou desenhar o muro, medir sua distância, a altura, descrever o que eu via.

Lembro que não entendi por que fizemos aquilo: parecia algo para ocupar o tempo, num final de semana. Meu pai adorava fotografar e fez um registro daquele momento.

Eu já nem me lembrava disso, mas há coisas que devem ficar no subconsciente e fazem de nós aquilo que somos. Quarenta anos e alguns livros depois, escrevi A Conquista do Brasil (1500-1600), que sai agora em segunda edição, depois de cinco reimpressões e mais de 100 mil exemplares vendidos.

Lá se narra a fundação de São Paulo, episódio fundamental na  violenta história da ocupação da costa brasileira, dentro de um esforço para entender a relação daquele muro derruído com tudo o que somos hoje, com nossos defeitos e virtudes - o nosso DNA.

No segundo livro, A Criação do Brasil (1600-1700), também agora relançado, tive de ir mais longe no passado, até a própria formação de Portugal e Espanha. E mostro como os jesuítas utilizaram aquela escola como ponto de partida para a ocupação europeia, não somente do Brasil como de todo o chamado Novo Mundo.

Outro dia, fui à casa de meu pai, contar que estava saindo a segunda edição dos livros, e mencionei ainda que havia escrito sobre minha primeira experiência como jornalista, que tinha sido com ele. Meu pai, porém, não lembrou do episódio ao qual eu me referia - umas férias em que eu tinha 14 anos, e fiz um breve estágio em uma revista que ele dirigia. 

Lembrou-me daquela primeira experiência de criança: o menino que ele colocou, com um caderno na mão, diante de um muro.

- Mas aquilo era para ser uma reportagem? - perguntei a ele.

- Não sei para você, mas para mim, foi.

Dou-me conta de que desde então tenho sido aquele menino, com o caderno na mão, diante do muro. Não sabemos onde nasce a motivação, exatamente, para sermos o que somos. Porém, creio que passei a vida tentando entender aquele enigma: o monolito que simboliza a origem, onde está a chave dos mistérios da vida. 

A minha trilogia colonial, cujo terceiro livro sai em janeiro, é isto: eu diante do muro, tentando entender quem sou, quem somos todos, o que estamos fazendo e faremos aqui.

Ainda uso caderno e caneta, e somos os mesmos, eu e meu pai. Estamos mais velhos e sabemos, como Platão, que sabemos cada vez menos. Não sei dizer por exemplo o quanto do que faço se deve a ele, ou a mim mesmo. Porém, de certa forma, talvez tenha sido ele a escrever meus livros, desde o dia em que me deu um propósito.

A meu pai, um obrigado para o qual não há palavras. Agradeço também a todos os que fizeram destes livros um sucesso e assim permitem que eu continue este trabalho, creio que em benefício geral. Há bastante gente que ainda não leu os dois livros e, como muitos daqueles que leram, poderão encontrar neles uma história do Brasil diferente da que se aprende nas escolas, reveladora e, espero, capaz de nos ajudar a melhorar.

Vale a pena também ir ao Pátio do Colégio, para ver, sentir in loco como tudo começou. Para esta imensa cidade e este fenomenal país. E para estes livros, ou: para mim.


Fotos: Alípio do Amaral Ferreira

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O repórter, a humildade, e a confiança

Eu tinha 14 ou 15 anos, e o seu Alípio, meu pai, então diretor de redação de uma revista chamada Construção Hoje, me botou para trabalhar como repórter, para que eu não ficasse muito à toa, naquelas férias. Foi a primeira coisa que eu fiz a trabalho, e como jornalista, ainda sem sê-lo. Claro, me dei mal.

Eu era muito novo e ainda achava que precisava empinar o peito para ser  respeitado. Não sabia que é possível ter humildade e confiança ao mesmo tempo. Aliás, não sabia que essa é a melhor combinação, e não apenas na vida de um repórter.

Primeiro, fui encarregado pelo Delmar Ferreira, chefe de redação, um jornalista com físico delgado, mas intelectualmente um gladiador, de fazer uma entrevista sobre uma feira da construção pesada, no Pavilhão do Anhembi - hoje "Distrito Anhembi". Me deram o telefone do organizador da feira. Liguei várias vezes, não consegui ser atendido.

Fiquei frustrado por não resolver aquele problema sozinho. Delmar então me deu um dinheiro para o táxi e me mandou tentar a sorte pessoalmente, no Pavilhão, onde a feira estava sendo armada.

Não passei da porta.

Voltei desconsolado, mas somente então Delmar me explicou que o problema, na realidade, não era eu. A revista não tinha comprado espaço na feira, portanto seu organizador estava de má vontade e por isto não estava recebendo a reportagem. Era uma chantagem. E aquele assunto seria resolvido entre as empresas.

Tempos depois, a entrevista foi marcada. Peguei o endereço e fui à sede da empresa de eventos, no Ibirapuera, perto do parque. Era um sobradinho. O dono da companhia me recebeu. Respondeu a duas ou três perguntas, que Delmar havia escrito num papel e eu apenas li, antes de ir embora. O texto, naquela situação sensível, Delmar que escreveu.

Era um mau começo, mas viria coisa pior. Marcaram para mim uma entrevista com Romeu Chap Chap, dono de uma construtora com seu nome, e presidente do Secovi, o sindicato das empresas de comércio e serviços imobiliários. Queriam que eu escrevesse, a partir da entrevista, um retrato de como se encontrava aquele mercado.

Fui à sede do sindicato. Chap Chap, um senhor elegante e educado, com um bigode fino de filme antigo, trabalhava em um escritório impecável, dentro de um prédio envidraçado. Era falante, solícito, bem articulado. Começou a me explicar tudo didaticamente, sem que eu precisasse perguntar nada. 

Aí entrou a empáfia do jovem inexperiente. Daquela vez, eu não tinha anotações - isto é, a pauta. Em vez de ficar quieto, comecei a fazer perguntas. As minhas perguntas.

Nas perguntas, tentei demonstrar que sabia alguma coisa sobre o mercado imobiliário. Depois, quando começou a dar errado, tentei demonstrar que sabia mais do que ele. E fui me enrolando cada vez mais.

A certa altura, ao ver que eu era apenas um rapazinho idiota, ele parou de falar. Me ouviu e, quando terminei de lhe dar uma aula, encerrou a entrevista e me dispensou, sem comentários,  possivelmente em respeito à revista, que ele conhecia bem. 

Saí dali tão envergonhado que, anos mais tarde, quando já trabalhava em um jornal de negócios e via Chap Chap em algum lugar, desviava dele.  Certo dia, em que não pude fugir, rezei para que não me reconhecesse. Como fiquei quieto, acho que não me reconheceu, mesmo.

Foi minha primeira lição em jornalismo. Você vai falar sempre com alguém que sabe mais sobre aquele assunto. Essa pessoa está te fazendo um grande favor em passar a informação. Ela está em primeiro lugar. Chegue mais cedo, para que ela não perca tempo. Pergunte, seja sucinto, escute calado, aprenda, e depois de aprender, escreva.

Em jornalismo, faço assim até hoje.

Confesso que não lembro o que escrevi sobre o que disse Chap Chap, se é que escrevi alguma coisa. Logo apareceu minha terceira e última tarefa: acompanhar meu pai na feira do Anhembi, quando abriu.

Numa tarde, seguindo-o como uma sombra, pude vê-lo em ação, no trabalho. Eu conhecia o homem sério que habitava a minha casa: trabalhava num escritório onde sumia no meio da fumaça do cachimbo. Sabíamos que estava lá apenas pela matraca da máquina de escrever Olivetti verde que martelava com os dedos. 

Na feira, lembro de ficar surpreso em ver como meu pai parecia conhecer todo mundo.  Andava de um estande a outro, conversando desembaraçadamente,  com sua panache,  e um certo charme atraente para as mulheres - algo que, como filho também da minha mãe, me surpreendia e deixava um tanto embaraçado.

No estande da revista, que afinal alugara um espaço dentro da feira, havia um par de fotografias dele, gigantes, com um capacete de obra na cabeça, ilustrando uma parede. Nunca o tinha imaginado assim, de relações tão fáceis, e um astro do lugar onde trabalhava.

Eu era tímido e achei, por tudo aquilo, que jamais poderia ser um jornalista. Gostava da ideia de escrever, como meu pai, mas não tinha aquela desenvoltura com as pessoas - o elan do repórter. Tudo o que eu tinha feito nesse sentido acabara em desastre.

Tinha tomado, porém, a maior lição da reportagem. Descobriria mais tarde que, para aqueles que sabem ouvir, e partem do princípio de que não sabem nada, valorizando o outro, as pessoas contam tudo.

É a humildade. E, para se ter essa humildade, é preciso ter confiança. Ninguém é menor por não saber algo. Ao contrário, ao mostrar que não sabemos, inspiramos no interlocutor a certeza de que não precisamos nem vamos querer demonstrar uma sabedoria que não temos - e, assim, não escreveremos bobagem. Esse é o segredo do sucesso em jornalismo.

Ao contrário dos opiniáticos que não ouvem ninguém, já sabem tudo e locupletam as redes sociais, jornalistas sempre sabem menos que as pessoas que vão entrevistar, ponto. Ao sentar para escrever, porém, depois de ouvir várias pessoas, sabemos mais do que cada uma delas, individualmente, de fato. Pelo menos por um momento fotográfico,  o instante em que colocamos o ponto final, sabemos mais que todo mundo. Somos máquinas de aprender - e reproduzir o que aprendemos. Porém, em seguida já queremos mudar de assunto, porque num só ficamos entediados. E entramos num novo tema, com outras pessoas, para saciar toda a nossa ignorância, começando tudo de novo.

Leva-se muito tempo para aceitar que não precisamos demonstrar quem somos, para sermos alguma coisa. E esta, creio, não é apenas a grande lição em jornalismo. Para mim, é uma lição de vida - e, mesmo agora, depois de ouvir tanta gente, saber tanta coisa, e duvidar de tudo, eu a sigo como um mantra.