segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O Santo Sátiro e os homens de seis dedos

Vasculhando arquivos de imagem achei por acaso fotos de uma viagem que estava tão esquecida quanto as pessoas que retratava. Quando eu tinha 16 anos, meu pai, Alipio, me convidou para uma aventura: soubera que na barra do Rio Una, além de Peruíbe, havia um povoado de espíritas isolados do mundo por 50 anos. E resolvemos encontrá-los e contar sua história.

Como todas as aventuras em que eu e meu pai nos metemos, a viagem foi precedida de muitas elocubrações e pouca preparação. Saímos de São Paulo no meio da noite e chegamos a Peruíbe ainda de madrugada. Ali, numa pequena vila de pescadores, instalada no triângulo entre o rio e o mar, ficamos sabendo que o rio Una era conhecido pelos locais como Rio dos Espíritos, em função da gente que vivia rio acima. E que eles não gostavam muito de ir lá.

Com a ajuda do então secretário municipal de Peruíbe, um coronel do exército chamado Rodolfo Petená, imponente e folclórica figura local, encontramos dois barqueiros dispostos a nos levar. Por Petená, ficamos sabendo um pouco mais sobre os discípulos de Kardec que resolveram se instalar no meio do mato, naquela imensa área pertencente à Nuclebras, onde se pretendia instalar a terceira usina nuclear brasileira, detida por ação do então governador de São Paulo, Franco Montoro. Com o fechamento de toda aquela área para a construção da futura usina, ela acabara preservada, assim como seus rarefeitos habitantes.

E quem eram eles? O líder espiritual do grupo, segundo Petená, era o Santo Sátiro; com ele moravam a mulher, os filhos, a nora e netos. E havia uma comunidade de negros mutantes, com seis dedos nas mãos e nos pés, conhecidos como os irmãos Maria.



Tomamos o barco pelo Rio dos Espíritos, oficialmente Rio Una, ou Rio Negro, chamado assim pela cor, apesar da água puríssima. Era preciso conhecer bem a foz, cheia de ilhas, muito fácil de se perder. Seis horas na lancha metálica, coleando rio adento, naquela imensa selva isolada de um lado pelo mar e de outro por uma serra semicircular. Conosco, os dois barqueiros e o próprio Petená (de branco, na foto).

Chegamos, enfim, ao lugar. O Santo Sátiro, cujo verdadeiro nome era Sathyro, assim, com Y, tinha em sua casa uma grande mesa coberta por imagens de santos, flores e velas, onde realizava suas sessões espirituais. Contou sua história, originada no preconceito que levara seu pai a empurrar toda a família para aquele lugar. Conhecemos seu filho, que tocava uma viola provençal, fabricada rusticamente. Seus hábitos eram o de gente que não via o resto do mundo há muito. Falavam um português arcaico e sobreviviam numa economia de subsistência, em que tudo, absolutamente tudo, era feito ali. 

Meu pai fez o Santo Sátiro sentar na beira de um igarapé com uma bíblia na mão e fez uma série de fotos das quais infelizmente a maior parte se perdeu. O que resta está aqui.





Mais além, no rio, encontramos os irmãos Maria. Tinham, de fato, o sinal de um sexto dedo nas mãos e no pés, resultado dos casamentos endogâmicos, única saída para um grupo negro isolado no meio da mata, em que irmãos se casavam com irmãos. Havia uma escola, uma pequena casa de tábua na qual se chegava de barco, e se mostraram alegres e receptivos. Ainda assim, havia ali, e em todo aquele rio, algo que me dava calafrios.



Voltamos com aquele material e fortes impressões. A reportagem nunca foi publicada. Creio que interessava mais a experiência, mais uma das nossas estranhas jornadas, do que realmente escrever ou vender a reportagem. Ficou na minha cabeça, porém, a ideia de ainda escrever sobre o Santo Sátiro, os homens de seis dedos e alguns calafrios, num romance chamado O Rio dos Espíritos.

Tantos livros, tão pouco tempo. Mas eu vi.



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