terça-feira, 10 de setembro de 2024

O repórter, a humildade, e a confiança

Eu tinha 14 ou 15 anos, e o seu Alípio, meu pai, então diretor de redação de uma revista chamada Construção Hoje, me botou para trabalhar como repórter, para que eu não ficasse muito à toa, naquelas férias. Foi a primeira coisa que eu fiz a trabalho, e como jornalista, ainda sem sê-lo. Claro, me dei mal.

Eu era muito novo e ainda achava que precisava empinar o peito para ser  respeitado. Não sabia que é possível ter humildade e confiança ao mesmo tempo. Aliás, não sabia que essa é a melhor combinação, e não apenas na vida de um repórter.

Primeiro, fui encarregado pelo Delmar Ferreira, chefe de redação, um jornalista com físico delgado, mas intelectualmente um gladiador, de fazer uma entrevista sobre uma feira da construção pesada, no Pavilhão do Anhembi - hoje "Distrito Anhembi". Me deram o telefone do organizador da feira. Liguei várias vezes, não consegui ser atendido.

Fiquei frustrado por não resolver aquele problema sozinho. Delmar então me deu um dinheiro para o táxi e me mandou tentar a sorte pessoalmente, no Pavilhão, onde a feira estava sendo armada.

Não passei da porta.

Voltei desconsolado, mas somente então Delmar me explicou que o problema, na realidade, não era eu. A revista não tinha comprado espaço na feira, portanto seu organizador estava de má vontade e por isto não estava recebendo a reportagem. Era uma chantagem. E aquele assunto seria resolvido entre as empresas.

Tempos depois, a entrevista foi marcada. Peguei o endereço e fui à sede da empresa de eventos, no Ibirapuera, perto do parque. Era um sobradinho. O dono da companhia me recebeu. Respondeu a duas ou três perguntas, que Delmar havia escrito num papel e eu apenas li, antes de ir embora. O texto, naquela situação sensível, Delmar que escreveu.

Era um mau começo, mas viria coisa pior. Marcaram para mim uma entrevista com Romeu Chap Chap, dono de uma construtora com seu nome, e presidente do Secovi, o sindicato das empresas de comércio e serviços imobiliários. Queriam que eu escrevesse, a partir da entrevista, um retrato de como se encontrava aquele mercado.

Fui à sede do sindicato. Chap Chap, um senhor elegante e educado, com um bigode fino de filme antigo, trabalhava em um escritório impecável, dentro de um prédio envidraçado. Era falante, solícito, bem articulado. Começou a me explicar tudo didaticamente, sem que eu precisasse perguntar nada. 

Aí entrou a empáfia do jovem inexperiente. Daquela vez, eu não tinha anotações - isto é, a pauta. Em vez de ficar quieto, comecei a fazer perguntas. As minhas perguntas.

Nas perguntas, tentei demonstrar que sabia alguma coisa sobre o mercado imobiliário. Depois, quando começou a dar errado, tentei demonstrar que sabia mais do que ele. E fui me enrolando cada vez mais.

A certa altura, ao ver que eu era apenas um rapazinho idiota, ele parou de falar. Me ouviu e, quando terminei de lhe dar uma aula, encerrou a entrevista e me dispensou, sem comentários,  possivelmente em respeito à revista, que ele conhecia bem. 

Saí dali tão envergonhado que, anos mais tarde, quando já trabalhava em um jornal de negócios e via Chap Chap em algum lugar, desviava dele.  Certo dia, em que não pude fugir, rezei para que não me reconhecesse. Como fiquei quieto, acho que não me reconheceu, mesmo.

Foi minha primeira lição em jornalismo. Você vai falar sempre com alguém que sabe mais sobre aquele assunto. Essa pessoa está te fazendo um grande favor em passar a informação. Ela está em primeiro lugar. Chegue mais cedo, para que ela não perca tempo. Pergunte, seja sucinto, escute calado, aprenda, e depois de aprender, escreva.

Em jornalismo, faço assim até hoje.

Confesso que não lembro o que escrevi sobre o que disse Chap Chap, se é que escrevi alguma coisa. Logo apareceu minha terceira e última tarefa: acompanhar meu pai na feira do Anhembi, quando abriu.

Numa tarde, seguindo-o como uma sombra, pude vê-lo em ação, no trabalho. Eu conhecia o homem sério que habitava a minha casa: trabalhava num escritório onde sumia no meio da fumaça do cachimbo. Sabíamos que estava lá apenas pela matraca da máquina de escrever Olivetti verde que martelava com os dedos. 

Na feira, lembro de ficar surpreso em ver como meu pai parecia conhecer todo mundo.  Andava de um estande a outro, conversando desembaraçadamente,  com sua panache,  e um certo charme atraente para as mulheres - algo que, como filho também da minha mãe, me surpreendia e deixava um tanto embaraçado.

No estande da revista, que afinal alugara um espaço dentro da feira, havia um par de fotografias dele, gigantes, com um capacete de obra na cabeça, ilustrando uma parede. Nunca o tinha imaginado assim, de relações tão fáceis, e um astro do lugar onde trabalhava.

Eu era tímido e achei, por tudo aquilo, que jamais poderia ser um jornalista. Gostava da ideia de escrever, como meu pai, mas não tinha aquela desenvoltura com as pessoas - o elan do repórter. Tudo o que eu tinha feito nesse sentido acabara em desastre.

Tinha tomado, porém, a maior lição da reportagem. Descobriria mais tarde que, para aqueles que sabem ouvir, e partem do princípio de que não sabem nada, valorizando o outro, as pessoas contam tudo.

É a humildade. E, para se ter essa humildade, é preciso ter confiança. Ninguém é menor por não saber algo. Ao contrário, ao mostrar que não sabemos, inspiramos no interlocutor a certeza de que não precisamos nem vamos querer demonstrar uma sabedoria que não temos - e, assim, não escreveremos bobagem. Esse é o segredo do sucesso em jornalismo.

Ao contrário dos opiniáticos que não ouvem ninguém, já sabem tudo e locupletam as redes sociais, jornalistas sempre sabem menos que as pessoas que vão entrevistar, ponto. Ao sentar para escrever, porém, depois de ouvir várias pessoas, sabemos mais do que cada uma delas, individualmente, de fato. Pelo menos por um momento fotográfico,  o instante em que colocamos o ponto final, sabemos mais que todo mundo. Somos máquinas de aprender - e reproduzir o que aprendemos. Porém, em seguida já queremos mudar de assunto, porque num só ficamos entediados. E entramos num novo tema, com outras pessoas, para saciar toda a nossa ignorância, começando tudo de novo.

Leva-se muito tempo para aceitar que não precisamos demonstrar quem somos, para sermos alguma coisa. E esta, creio, não é apenas a grande lição em jornalismo. Para mim, é uma lição de vida - e, mesmo agora, depois de ouvir tanta gente, saber tanta coisa, e duvidar de tudo, eu a sigo como um mantra.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Eu, o polêmico, e a Assírio & Alvim


O café fumega em cima da mesa na livraria Martins Fontes da Paulista, onde um amigo vai tirando o chapéu e já senta querendo dizer o que andam falando de mim. 

- Você anda muito polêmico - diz ele. - Tão falando aí que você é machista e misógino. E também que você mora em Higienópolis, é muito rico e anda de Mercedes.

Dou risada, é claro. Moro em Higienópolis, de fato, mas no resto vejo em funcionamento as perversidades desse mundo de hoje, em que as pessoas já expressam seu preconceito sobre o que não conhecem, sem sequer dar um google e consultar a wikipedia.

Isto vem desse mundo novo onde eu caí meio de paraquedas, desde que me tornei editor no Brasil do selo Assírio & Alvim, principal publicador de poesia de qualidade em Portugal, que tem aqui muitos, qualificados e opiniáticos leitores.

- Que mais?

- Falam também que você anda se aproveitando da editora portuguesa para publicar seus livros.

Não é a primeira vez que sou um estranho no ninho e causo algum alvoroço. Ao contrário, estou até acostumado a navegar em mar encapelado. Já ouvi de tudo, pelas coisas que escrevo ("escrever é fazer inimigos", diz o professor Fernando Morais) e sei perfeitamente que o brasileiro gosta de falar mal de tudo, especialmente quando não tem conhecimento de causa. 

Por coincidência, está saindo agora a segunda edição de meus dois primeiros livros de história (A Conquista do Brasil e A Criação do Brasil), que reforçaram a minha impressão de que a vocação para a cizânia brasileira vem de longe. Mais precisamente, de quando havia neste território uma míriade de povos que falavam mais de mil línguas diferentes e viviam se matando entre si, tão divididos a ponto de perderem a guerra para uns portugueses gatos-pingados.

Hoje há nessa seara de debates virtualmente impulsionados  muitas tribos bem modernas. O pessoal que é aficcionado de poesia se reúne muito, em saraus, mesas e congêneres, e tudo isso é regulado por grupos de interesse que acreditam poder ditar o que é bom ou ruim, o que inclui nos dizer como devemos escrever ou o que devemos fazer no nosso trabalho.

Esses grupos de hoje em dia, e não digo só da poesia, como de tudo, servem para cancelar, maldizer, avisar e domesticar pessoas novas, estranhas ou rebeldes, de modo a servir a seus interesses. Eu acho todos os interesses legítimos, mas espalhar mentiras e maledicências não é a melhor forma de protegê-los. 

Há algumas coisas verificáveis a meu respeito que quem não me conhece, se tiver real interesse, poderá facilmente saber. A primeira delas é que eu respeito e mais, aprecio o diferente sob todas as formas - sexos, cores, idades, categorias e classes -, que eu defino apenas como gente.

Eu me orgulho de pertencer a uma geração que transmutou a antiga ditadura militar no Brasil numa democracia, geradora dessa liberdade de que hoje desfrutamos, em que cada um pode falar o que quiser, ainda que seja para o mal, e defender seus direitos e interesses. Essa é inclusive a história que eu conto num de meus poemas em livro, Asas sobre nós, publicado pela Assírio & Alvim, misturada a uma novela de amor e que reflete, creio, esse espírito da minha geração.

Colaborei como jornalista e editor, numa redação de revista em que virávamos madrugadas acreditando estar mudando o Brasil e o mundo - e mudamos, mesmo. Como autor e editor, ainda sou jornalista, o que me permite defender e fazer muitas coisas diferentes entre si, algo que hoje parece ser desqualificado propositalmente por quem quer impor uma ideia única. Em que pese haver o mau jornalismo, o próprio jornalismo e os fatos (isto é , a realidade) passaram a ser atacados na sua essência pelos monopolistas da moral e da opinião.

Eu posso ser um machista misógino, mas na Assírio & Alvim publiquei o livro Sal, da Mar Becker, sobre o universo feminino e a família tal qual ela a conheceu em Passo Fundo, e que está aí nas paradas de sucesso, assim como o Pangeia, da Mariana Basílio, outra  poeta extraordinária, vencedora do Prêmio Biblioteca Digital. Como romancista, escrevi "Anita", sobre Anita Garibaldi, um ícone da luta feminina que poucas mulheres conhecem ainda hoje.

Falam por aí muita coisa contraditória,  o que faz tudo ser verdade, ou tudo mentira, ou pelo contrário. Dizem que sou de direita, porque escrevi um perfil em livro do João Doria, que esteve no centro da crise toda da pandemia, no seu tempo de governador. Mas escrevi também sobre o bispo Edir Macedo, e nem por isso tenho afinidade com a Igreja Universal. Tem gente também que diz que sou comunista, porque escrevi Xal, a história da Adriana Graças Pereira, menina de rua que virou líder de rebelião em presídio feminino. E por aí vai.

Sobre publicar meus próprios livros, a verdade é que eu tenho livro publicado por diversas casas editoriais. Meu último romance saiu pela Record. Os livros de história (dois estão sendo relançados, depois de várias reimpressões da primeira edição, e o terceiro deve sair em janeiro), estão na Planeta. Já publiquei pela Editora Globo, pela Objetiva, num selo que está hoje com a Companhia das Letras, com a editora Matrix (um livro que fala sobre a Era da Intolerância, por sinal), a Moderna... A lista é grande.

E por que a Assírio & Alvim? Primeiro, é bom que se diga, eu não estou me aproveitando de ninguém para lançar livros meus, até porque a editora é minha, e não de portugueses. Talvez valha a pena contar essa história. É interessante.

Há três anos, na minha primeira visita a Portugal após a pandemia, começava a pensar em publicar poesia, algo que no passado escrevia apenas para mim mesmo, achando, como muita gente, que não dava dinheiro - e, como eu vivo de vender livro, isto ficava em terceiro ou quarto plano.

Meu primeiro editor, Pedro Paulo Sena Madureira, hoje professor de literatura e arte, foi quem me incentivou a publicá-la, depois que lhe mostrei duas versões de um mesmo livro - uma em prosa, outra em poesia, com o título de Além da Memória. Trabalhou no poema, leu inteiro para mim em voz alta, fez comigo o mesmo trabalho que com Adélia Prado, que lançou na antiga Nova Fronteira. Essa história está relatada aqui e aqui.

Em Portugal, fui atraído na feira de Lisboa pelo estande da Assírio & Alvim, dentro do pavilhão da Porto Editora. Que livros maravilhosos! Mas foi algo passageiro. Como negócio, eu pensava mais em uma parceria para lançar o selo da Porto no Brasil e falei com seus editores. 

Sabiam que eu tinha sido diretor editorial da Saraiva, onde fiz um selo e um prêmio literário (Benvirá), um negócio que cresceu muito, inclusive com o lançamento de novos autores. Consultaram pessoas do mercado a meu respeito e me deram um voto de confiança. Em vez do selo Porto, porém, espontaneamente, me ofereceram... Assírio & Alvim.

Lembrei do estande maravilhoso com aqueles títulos todos e pensei: assim como na Saraiva, quando fiz para os autores o trabalho que fazia para meus próprios livros, gostaria que os autores brasileiros fossem valorizados assim, como na Assírio de Portugal, onde eles são tratados como um patrimônio nacional. 

Os portugueses celebram sua cultura, nesse sentido, de uma forma admirável. Sobretudo para gente como nós, brasileiros, que nos habituamos a viver divididos, atirando em nós mesmos, de maneira que nossos artistas e a civilização brasileira permanecem sempre sob ataque, o que vem só em nosso prejuízo, tanto dentro como fora do país. Para maldizer também o Brasil, como brasileiro, creio que essa é uma das causas da nossa pequeneza, apesar do tamanho das nossas riquezas.

Fiz com a Porto Editora um acordo de licenciamento da marca, operada por uma editora (Autores e Ideias) que é minha, com algumas vantagens operacionais para obter conteúdo. Em vez de lançar livros de interesse geral, minha primeira ideia, preferi manter a linha editorial da Assírio em Portugal, brilhantemente dirigida pelos seus editores, de quem me tornei real amigo e admirador.

Comecei a lançar os livros, com esta parceria, mas recursos próprios. E, como todo lugar novo onde a gente aparece, e em que ninguém tem a obrigação de te conhecer, passei aos poucos a entender a necessidade de lidar com o enviroment e explicar a minha intenção.

Não é o capricho de um milionário. Sou autor, filho de jornalista e professora, ganho a vida escrevendo desde os 19 anos de idade, e acho que tenho também uma missão informativa e educacional. Seria ótimo ter bastante dinheiro, não para comprar um Mercedes, mas para fazer mais livros. A minha pequena pretensão de colaborar com a cultura, dessa forma, prossegue na medida do possível.

Agora mesmo estou lançando Dobra, de Adília Lopes, um livro de mais de 1000 páginas que, importado de Portugal, custa 600 reais. Aqui, estou lançando por 159 reais. 

Consegui apoio do governo português para lançar algumas obras, o que me permite transferir esse benefício ao leitor, reduzindo o preço.

Para mim, essa é a função do subsídio estatal: dar acesso ao produto, e não encher a burra do empresário.

Há muitos autores que são editores e vice-versa, inclusive dos próprios livros. Eu poderia fazer meus livros de poesia, assim como os outros, num selo diferente. Aliás não é má ideia e tenho pensado em reeditar meus livros mais antigos como faz o José Roberto Torero, que está relançado seu backlist num simpático selo chamado Padaria de Livros.

Acho que não faz sentido eu ter uma editora de poesia e publicar os livros num concorrente, até porque me tornei, nesse segmento, também concorrente. 

Fui a Portugal pensando em fazer um livro de poesia e voltei com a editora inteira, uma dessas coisas estranhas que frequentemente acontecem comigo. Porém, procuro abrir esse caminho que criei para mim também a outros. Estão todos convidados, portanto, a embarcar nesta viagem, sempre em mar encapelado, mas que me anima a procurar um bom porto, para nós e este país.

 



quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Gloriosos fracassos

 


Gosto mais dos meu fracassos que dos meus sucessos.
não que tenha muitos ou mais que ninguém.
mas dos que tenho, eu gosto.

Gosto dos meus fracassos e digo que fracassei com um sorriso satisfeito
porque gosto deles.

Gosto dos meus fracasssos porque eu acreditava neles.
porque eu pensava grande. e foi melhor fracassar querendo tudo que defendendo o pouco.

Porque viver é arriscar.
e o resultado importa menos que viver.

Gosto dos meus fracassos porque doeram. E não escondi a dor.
experimentei, vivi a dor, para superar a dor.
com a dor aprendi a me curar, a me entender e saber melhor onde vou.

Gosto dos meus fracassos porque eu caí – e caio – de pé.

Gosto dos meus fracassos porque por trás deles há sonho e boas intenções.

Gosto dos meus fracassos porque eles me deixam mais próximo de quem nos faz boa companhia.

Gosto dos meus fracassos porque os esforços nunca foram por vantagens ou dinheiro, e sim por causas que eu achava boas.

Eu gosto dos meus fracassos porque pessoas me ajudaram e o seu esforço me deixa grato, me enternece, me faz querer retribuir com algo melhor.

Eu gosto dos meus fracassos porque me parecem melhores que o sucesso de muita gente.

Eu gosto dos meus fracassos porque ninguém pode dizer que desisti.

Gosto tanto dos meus fracassos que faria tudo de novo, mesmo sabendo que estão fadados ao fracasso.

Gosto dos meus fracassos porque eles falam mais sobre quem eu sou que os meus sucessos.

Gosto de meus fracassos porque ele nunca deixam que eu me acomode.

Gosto dos meus fracassos porque neles ostento meu orgulho, assim como prefiro a humildade comedida nos sucessos.

Eu gosto dos meus fracassos porque são a oportunidade de tentar de novo e melhor.

Eu gosto dos meus fracassos porque a gente na verdade nunca perde.
a gente ganha.
ou aprende.

sábado, 17 de agosto de 2024

Uma tarde de bom futebol

Chute perigoso a gol.


 - O time até que está bem!

- Não se iluda - diz com um sorriso, a meu lado, um torcedor mais experiente.

Assistir um jogo do Juventus em seu velho estádio, na Mooca, é bem diferente. Todo mundo respeita o hino nacional.  Quando o jogo começa,  é um silêncio sepulcral. Um torcedor solitário grita:

- Time vagabundo!

Ninguém sabe a qual deles se dirige.

O jogo transcorre junto com um bom papo. A cada boa jogada do Juventus, a torcida reage com surpresa.

- Óooh - exclamam, impressionados.

O melhor da partida são os comentários.

- Acho que a torcida do adversário não compareceu - diz um torcedor de camisa grená, olhando para o outro lado.

O estádio da rua Javari lembra o futebol dos velhos tempos. Quatro fileiras no segundo andar são a zona nobre e a única de sombra garantida. O resto da torcida escapa do sol das 15h  junto ao muro da arquibancada na linha de fundo, atrás do goleiro. O verdadeiro futebol raiz.

O jogo é bom, tem belas jogadas, com um bumbo batendo solitário o tempo todo. Dá pra ouvir tudo o que dizem os jogadores. E eles conhecem muita gente na torcida, formada em boa parte por amigos e familiares.

Tem o pessoal que come o tradicional canoli do estádio: é a maior fila e acaba rápido no intervalo. Na frente da barraca,  enquanto esperam o canoli, as crianças se ajoelham, admirando a estátua de Pelé,  que aqui certo dia marcou um gol antológico. 

Começa o segundo tempo.

 - Time vagabundo! - grita o torcedor.

Trinta segundos depois, o Juventus faz 1 a zero. Funcionou.

"Esse moleque travesso...", toca o hino, quando o juiz dá o apito final. 

A fila para comprar camisa na lojinha é uma prova de simpatia e boa vontade, já que há mais testemunhas que torcedores de verdade. É uma boa lembrança de um dia de futebol tranquilo, sem a neurastenia coletiva dos grandes estádios.

O resultado é o que menos importa, apesar de o Juventus estar disputando um lugar na Copa do Brasil. Passear no bairro depois é uma delícia. Há bons bares nas proximidades. 

Fazia tempo que eu não via um jogo de futebol como antigamente. Aqui a gente se sente criança. Porque o futebol é como antes. E como a gente achava que é o futebol brasileiro.




 

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

O jornalismo e o vendedor de bombons


Dia dos pais, e estou num almoço com meu filho, 17 anos, meio incerto da profissão a escolher no vestibular deste final de ano, e meu pai, de 89, um bem sucedido aposentado.

- Sabe como eu escolhi minha profissão? - diz o avô ao neto. - Graças ao dono da bomboniere.

Conta a história meu pai, Alípio. Quando ele tinha pouco mais que a idade do meu filho, foi trabalhar no cinema do tio Amaral, que era padre e vigário da Igreja de Nossa Senhora das Dores, na Casa Verde. 

O cinema de bairro servia para trazer um dinheirinho a mais ao caixa da paróquia. Nas famílias tradicionais de origem mineira, geralmente o filho mais inepto para os negócios virava padre. No caso dos Amaral, família de minha avó, por algum erro vocacional, o tio padre era um grande negociante, que tinha vários empreendimentos, incluindo emprestar dinheiro a juros usurários. E o cinema.

Como alguém de confiança da família, papai virou o gerente. Cuidava do caixa e fazia a bilhetagem, conferida pelo fiscal da prefeitura, disfarçando algumas malandragens - por exemplo, deixava entrar de graça para ver os filmes uma moça na qual estava interessado, chamada Marlene, que depois seria sua mulher e a minha mãe. Quando passavam os filmes, ficava longo tempo ali, sem fazer nada. Batia papo com o vendedor de bombons, que alugava o balcão na sala de espera do cinema.

O homem da bomboniere tinha um segundo emprego: vendia anúncios para A Hora, um jornal sensacionalista, que dava sobretudo notícias policiais. Meu pai, que fazia Odontologia na Faculdade de Medicina da USP, para satisfazer minha avó, que queria um emprego seguro e tranquilo para o filho, achava maçante passar o resto da vida vendo pessoas de boca aberta numa cadeira odontológica.

- Será que você não arranja um emprego lá para mim? - perguntou papai.

- E o que você sabe de jornalismo?

- Eu sei ler - disse meu pai, lembrando que corria antes de todo mundo, quando menino, para pegar o jornal que o entregador deixava na casa do pai dele, meu avô.

O vendedor de bombons pensou, e disse:

- É o bastante.

Assim, meu pai conseguiu seu primeiro emprego, como repórter de A Hora. Diz que não gostava de cobrir a área criminal, assunto pesado, penoso, mas adorou o jornalismo. Praticou-o por setenta anos - e deu a meu filho seu único conselho para encontrar uma profissão:

- Experimente!


sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Jardim japonês

JARDIM JAPONÊS

 

 No castelo de Niho-jo o grande shogun reina:

entre a política e a guerra há um filho que nasce

cuidado a cada dia como o jardim

onde ele respira a beleza pura da vida

entre a política e a guerra


O shogun dorme ao lado da katana luzidia

porque quem repousa não é o homem

é o guerreiro


A lâmina reflete quem é

brilha no escuro

vela seu sono à noite


O alvorecer levanta da sombra dos muros ajardinados

o shogun se veste como um samurai

é um samurai


Somente o semblante altaneiro

diz que é o shogun:

senhor dos campos de arroz

na planície banhada pela água pelos rios

quem vêm das montanhas verdejantes

com suas responsabilidades

e sua coragem


O coração está abrigado

no relicário que é o palácio de madeira encaixilhada

paredes decoradas de pinturas em laca

cercada pelas muralhas de pedra perfeitamente engastada

e o fosso de água limpa e fresca ao redor da murada exterior


Pesa saber que dele tudo depende

mas há também leveza na brisa da manhã:

dá valor a cada dia

às coisas grandes e pequenas

(e então ele ouve as mulheres cantando ao longe

suave recompensa pelo seu trabalho duro)


Todos os entes têm dentro de si o kami:

o espírito divino está com ele quando caminha em silêncio

acompanhado dos kamis do sol, da luz, das árvores

e do lago de pedras pontiagudas e rudes ferindo agrestes

a harmonia do plácido cenário

onde as folhas  das árvores sustentam o céu


Para que a guerra senão o inevitável equilíbrio

a harmonia

a paz como deveria ser


Para que o poder

senão para dividir

alimentar

cuidar

apenas viver


Para que a riqueza

senão para a saciedade

e a garantia do dia seguinte


Para que o sonho

senão dar mais valor

ao que de outra forma

se pode perder

desperdiçar

esquecer


Para que querer

o que é possível

se o impossível está diante de nós

e tudo temos em nós

para alcançar o horizonte


Magokoru: coração sincero

para o shogun não há medo

e não existe o amanhã

toda o esforço humano é nada diante da simplicidade


Para o shogun

a morte é continuidade da vida

e a única obra verdadeira

é o eterno 

ser




sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Um café em Akihabara

Uma taça de chá gelado, três torradas, o chapéu panamá repousado no balcão de cedro. A atendente, de máscara contra a Covid-19, serve mais chá, este quente, num enorme bule, do outro lado do balcão. A trinta passos do Otsu Café, está desde 1616 o Kanda Myojin, templo xintoísta, conhecido pela pintura vermelha com ornamentos dourados, e por ter sido o preferido na cidade da Tóquio pelo shogun Tokugawa, conquistador de Osaka e articulador do império. Razão pela qual se tornou o templo favorito dos samurais - e, como guerreiro, o meu também.

Deixei ali os meus votos, entre as centenas de tabuinhas penduradas ao sol escorchante do verão japonês, para serem lidas pelos monges, que assim fazem os pedidos serem realizados. Agora, faço a parada no Café, na sua quase penumbra, tão acolhedor como um outro santuário. Há poucos e silenciosos clientes; a prateleira atrás do balcão é decorada com chávenas pintadas com motivos japonesas, e o frescor é um lenimento para o calor mórbido que faz lá fora, ou o esforço daqueles que aqui vêm descansar suas armas.

É um paradoxo essa paz em uma cidade com 37 milhões de habitantes, cujas esquinas onde os luminosos em profusão explodem em cores; os trens correm para todos os lados, cruzando uns por cima dos outros nas estações, como o sangue mecânico de um gigantesco organismo urbano. E no entanto os japoneses deixam suas bicicletas estacionadas na rua e cultivam aqueles espaços de tranquilidade, contemplação, humanidade.

Agradecem a tudo e são ritualmente reverentes em cada gesto, a cada momento, em respeito a todos os entes, que são divindades, ou parte da grande divindade da natureza, presente na figura do outro que está diante de nós.

Essa educação se espalha, cria um círculo virtuoso, faz acreditar de novo no bem, em meio a um mundo acidulado pela cizânia. A paz venceu o povo da guerra e os samurais contemporâneos, ou os ronins como eu, guerreiros sem um senhor, que agora também se curvam ao passar pelo torii, o portal do santuário. Ela está nas crianças, graciosas, polidas, educadas, nos seus uniformes impecavelmente arrumados, sinal da importância que se dá à educação, fundamento de tudo.

O uniforme é um sinal da importância do que se faz, e de respeito para quem se faz. Os motoristas de ônibus usam luvas brancas, como se dirigissem uma limusine: e a cada passageiro que passa o cartão para descer, agradecem. Não importa quantos são os passageiros, ou quantas vezes o motorista, ou a motorista, faça isso todo dia, por dias a fio: cada um, ao sair, ouve, arigatô gozaimasu, arigatô gozaimasu.

Para o oriental, como para os indígenas brasileiros, cada ser é um espírito divino, e como tal, deve ser ouvido, respeitado, reverenciado. O gesto simples de entregar um cartão de crédito é feito com as duas mãos, como uma cerimônia. Cada palavra, cada gesto tem valor, e o ritual é a forma pela qual a vida é valorizada.

"Pelo seu trabalho duro", eu havia visto os japoneses dizerem, ao servir a alguém a comida no restaurante, no filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders. Em Tóquio, os banheiros públicos que o personagem limpa no filme existem, estão em toda parte, são impecáveis, cuidados por gente igualmente diligente. O banheiro é gratuito, assim como a água, na entrada dos templos, onde se deve enxaguar a mão e a boca, antes da prece, e nos bares e restaurantes. Não, por água não se cobra, a um transeunte sedento.

Tomo um pouco de chá, com essa sensação de gratidão pelas pequenas coisas: por beber no calor, por estar aqui, neste ambiente de comunhão com os seres da vida, por fazer parte deste grande concerto, e por trazer comigo meu filho, que é a melhor parte de mim. Para ele e outros são os meus pedidos, neste círculo virtuoso onde a humanidade se une à natureza, contra as dificuldades, os medos, as impossibilidades.

No templo, as deidades cujo espírito está guardado no escrínio do altar, desde quando reverenciadas pelo shogun Tokugawa, são fonte de uma força invísivel. A água da bica na entrada sai da boca de um dragão de metal. Duas moedas caem tilintando pela grade de madeira diante do altar, onde todos se despedem ao fim da prece batendo palmas duas vezes, e com uma leve inclinação. Há na humildade um misterioso poder: abrindo mão da nossa importância, sendo apenas gratos, podemos tudo.

Há nessa humildade, tanto quanto força, uma fragilidade. Talvez o rigor de uma sociedade que valoriza tanto o outro leve também à dificuldade de cruzar a ponte que separa as pessoas. Imagino que seja isso a fazer de muitos japoneses seres retraídos, carentes, de alguma forma amedrontados. Sobretudo o homem, diante da figura da mulher.

Suponho que seja essa a atração que há nas gueixas, que vi andando pelo Guion em Kyoto, ou sua versão mais barata e pop, nos maid cafés. Neles, os japoneses pagam para conversar com garçonetes, vestidas de colegiais como nos animes - os desenhos japoneses, baseados em graphic novels, uma indústria que o Japão internacionalizou. 

A algumas quadras de distância, aqui em Akihabara, elas estão nas calçadas, chamando os clientes para dentro, com cartazes de papelão na mão, sobre botas com salto plataforma, maria-chiquinha, minissaia, coloridas à noite pela luz dos neons em profusão. Desci uma escadaria até um desses bares, no subsolo: um recinto pequeno, e, para quem não está acostumado, um pouco sinistro, ou constrangedor.

"Thales San", escreve uma delas, depois de perguntar meu nome, para abrir minha conta. Há um grupo de rapazes numa mesa e dois japoneses sozinhos, em duas outras. Há pouca bebida, quase nenhuma comida, e não há sugestão de sexo, exceto pelo uniforme fetichista das recepcionistas.

Há somente a garantia de um bom tratamento, que oferece a possibilidade de simplesmente conversar com uma mulher, transpor aquele abismo invisível, com a certeza de ser bem tratado, ainda que por algum dinheiro. No Japão,  conversar com alguém pode ser mais importante ou excitante que o sexo. Na cidade de 37 milhões de pessoas, onde tudo funciona tão bem, os dois maiores problemas são o alcoolismo e a solidão. 

Essa timidez pessoal nem parece vir do Japão que não conhece limites. Enquanto eu pago a conta, e saio depois de tomar uma Coca-Cola, o Shinkansen, trem bala japonês, viaja a 350 quilômetros por hora, cruzando como raio as estações onde não faz parada. Fábricas com operários e robôs funcionam 24 horas por dia para vender produtos no mundo inteiro. E a baía de Tóquio - cenário de onde saíam aqueles monstros marinhos da minha infância e que ainda povoam a minha imaginação - dorme silenciosa e negra sob pontes luminosas monumentais.

O café em Akihabara, ao lado do templo dos guerreiros, é alguma saúde em meio a todas as loucuras. Reconforta, protege, acalma. Há no rito do chá algum mistério e arte, escritos no ar, em fina espiral de fumaça, com a desenhada caligrafia japonesa, que inspira os telhados das casas e o desenho dos templos. Ou é por eles inspirada - a arquitetura da palavra.

O silêncio é amigo, uma trégua, uma solidariedade, e diante das xícaras imóveis, enfileiradas nas prateleiras, que fazem lembrar minha avó, eu me sinto, do outro lado do mundo, estranhamente em casa.