Hoje é Dia do Jornalista, o que me lembra como entrei na profissão, ou melhor, como comecei a escrever profissionalmente. Foi por causa do ônibus.
Eu era um universitário durango, sem dinheiro até mesmo para pagar a passagem do Vila Nilo, a linha mais comprida da cidade, que passava pela Casa Verde, onde eu morava, e parava perto da Cidade Universitária, em São Paulo. Pegava sempre o ônibus lotado, sem entrar. Assim podia fazer todo o trajeto pendurado de fora, segurando nas alças da escada, como se fosse caminhão de lixo, porque se entrasse teria de passar pela catraca.
Fazia duas faculdades, Jornalismo de manhã e Ciências Sociais à tarde, ambas na USP, e precisava de dinheiro. Meu pai estava construindo uma casa em Santana de Parnaíba, não me dava um centavo, e ao mesmo tempo não queria que eu deixasse ao menos uma das faculdades para trabalhar.
Que fazer? Apelei, na época, para meu único capital: a juventude. Eu tivera uma namorada na faculdade que fazia fotos de publicidade e assim ganhava um dinheiro. Pensei fazer algo parecido. Ela faturava alguma coisa e podia continuar estudando. Eu tentaria o mesmo.
Um sujeito mais velho e que gostava de se enturmar com garotões, que conheci no clube, se dispôs a me emprestar 200 dinheiros da época e com isso fazer um “book” – fotos para distribuir em agências e produtoras, que poderiam me dar trabalho. Fiz as poses, que hoje me fazem dar risada, e levei as fotos a uma produtora de comerciais da rede Globo, que me colocou num teste para figurante de um comercial das Casas Bahia.
Viu que eu estava perdido por ali, era ingênuo e tímido, não conhecia nada daquilo, e me mandou embora. Mas indicou uma agência de modelos, chamada Totem, especializada em comerciais de televisão. "Eles vão te ajudar", disse. Lá, conheci H. e L., os sócios, que começaram a me arrumar trabalho.
Eu fazia dois ou três testes para pegar um trabalho. Gastava quatro ou cinco manhãs ou tardes por mês com isso, alguém assinava a presença em classe por mim, e eu ia levando.
A primeira vez, fui figurante num comercial da Caixa Econômica. Passava na rua, no meio de uma multidão, enquanto um ganhador de loteria, um ator com dotes de ginasta olímpico, dava saltos mortais múltiplos. Com aquele dinheiro, o primeiro que ganhei, paguei o empréstimo que tomei para fazer as fotografias. Foi para mim como ganhar também na loteria.
Depois daquilo, melhorou. Fiz um comercial do Playcenter, que então inaugurava a primeira montanha russa com um looping no Brasil. Dei seis voltas completas naquilo, com uma câmera na minha frente, para registrar a reação. “Faz cara de medo alegre”, me disse o diretor.
Tive meus cinco segundos de celebridade. Fiz uma vez um comercial de pasta de dente, sabor menta, em que eu só falava, na frente do espelho: “menta!” - com um sorriso na cara e uma escova de dentes na mão. Para meu constrangimento, aquilo pegou. Eu passava na rua, entrava na faculdade, ia a um bar, as pessoas olhavam na minha cara, riam e falavam: “menta”! “Menta” pra cá, pra lá, o dia inteiro.
Uma vez, quando eu estava num estúdio fazendo figuração para um comercial de cera de automóveis, vieram me perguntar se não queria fazer um teste para o comercial da Enciclopédia do Sexo. Fui até o segundo andar. O teste consistia em beijar uma mulher, ambos nus da cintura para a cima, durante um certo tempo, até o diretor estar satisfeito. ("Não deixa aparecer a língua!" - ele dizia).
Dei sorte, porque naquelas coisas tinha muita mulher bonita, e calhou de fazer o teste da enciclopédia com Carina Palatnik, que então era a grande estrela dos comerciais de TV – uma mulher linda, que revi anos mais tarde, por acaso, numa outra situação
embaraçosa. Estava numa delegacia, porque tinha sido assaltada. Falei com ela, mas acho que não me reconheceu (pudera!). Não passamos no teste, mas eu falava sempre dela, porque provocava um amigo apaixonado por ela, admirador de Carina na TV, só pra ele morrer de inveja e ciúme de mim.
Fiz um monte de comerciais – tirei inclusive a roupa na TV, num filme das cuecas Zorba, que felizmente ninguém sabe onde foi parar. Até que um dia fiz um teste para uma série de comerciais da Brastemp, e fui aprovado. O teste, fiz com a Giulia Gam. No dia da gravação, porém, Giulia tinha desistido e escalaram em seu lugar a Sandra Annenberg, minha amiga, hoje apresentadora da TV Globo, e que, na época, era atriz. O recorte do comercial impresso, com foto feita pelo J.R. Duran, Sandra que me deu, tirada dos guardados de sua mãe.
Eu fazia o papel do namorado, Caco, que tomava um balde de água na cabeça, para mostrar as virtudes da nova secadora Brastemp – e era flagrado pelo pai da namorada, na casa dele, vestido apenas com o robe de chambre que lhe pertencia. Uma historinha picaresca, que para ficar do jeito pretendido pelo diretor, Clemente, da Denison propaganda (olhava para as plantas do cenário e dizia: "minha homenagem ao Walter Hugo Khouri"), me custou vários e vários baldes de água fria na cabeça, literalmente.
O balde caía de cima de uma porta quando eu entrava, eu tomava aquele banho e, num outro recinto da casa de mentira dentro do estúdio, uma passadeira esquentava a ferro as mudas de roupa para eu poder tomar outro banho.
O contrato com a Brastemp foi uma beleza. Pediam exclusividade, então eu fiquei um ano inteiro ganhando um salário mensal, durante a vigência da campanha, sem poder trabalhar. Minha mãe ganhou de presente da Brastemp uma lava-louça, novidade para a época – dona Marlene nem acreditou quando aquela coisa enorme entrou numa caixa dentro de casa.
Graças àqueles baldes na cabeça, ganhei dinheiro suficiente para completar os estudos, me formando naquele ano, sem precisar trabalhar ao mesmo tempo. E comprei para ir à escola um carro, um Fiat 147, usado, mas bem melhor que andar pendurado no ônibus.
Quando eu estava para me formar, e o contrato de exclusividade por terminar, H., que eu não via há muito tempo, me chamou na agência. Disse que L., seu sócio, tinha dado um calote na praça e desaparecido.
Sabia que eu estava me formando em jornalismo e precisava de um favor. Queria que eu escrevesse por ele uma carta ao mercado, dizendo que nada tinha com aquele calote, continuava e precisava trabalhar.
Escrevi a carta. Ele me agradeceu e perguntou, uma vez que o contrato da Brastemp estava terminando, se eu queria voltar à agência. Eu lhe disse então exatamente as seguintes palavras:
- Obrigado, mas essa carta foi a primeira coisa que eu escrevi profissionalmente. É o que vou fazer. Agora sou jornalista.
Agora sou jornalista. É a frase que, desde então, eu repito com orgulho.