Uma taça de chá gelado, três torradas, o chapéu panamá repousado no balcão de cedro. A atendente, de máscara contra a Covid-19, serve mais chá, este quente, num enorme bule, do outro lado do balcão. A trinta passos do Otsu Café, está desde 1616 o Kanda Myojin, templo xintoísta, conhecido pela pintura vermelha com ornamentos dourados, e por ter sido o preferido na cidade da Tóquio pelo shogun Tokugawa, conquistador de Osaka e articulador do império. Razão pela qual se tornou o templo favorito dos samurais - e, como guerreiro, o meu também.
Deixei ali os meus votos, entre as centenas de tabuinhas penduradas ao sol escorchante do verão japonês, para serem lidas pelos monges, que assim fazem os pedidos serem realizados. Agora, faço a parada no Café, na sua quase penumbra, tão acolhedor como um outro santuário. Há poucos e silenciosos clientes; a prateleira atrás do balcão é decorada com chávenas pintadas com motivos japonesas, e o frescor é um lenimento para o calor mórbido que faz lá fora, ou o esforço daqueles que aqui vêm descansar suas armas.
É um paradoxo essa paz em uma cidade com 37 milhões de habitantes, cujas esquinas onde os luminosos em profusão explodem em cores; os trens correm para todos os lados, cruzando uns por cima dos outros nas estações, como o sangue mecânico de um gigantesco organismo urbano. E no entanto os japoneses deixam suas bicicletas estacionadas na rua e cultivam aqueles espaços de tranquilidade, contemplação, humanidade.
Agradecem a tudo e são ritualmente reverentes em cada gesto, a cada momento, em respeito a todos os entes, que são divindades, ou parte da grande divindade da natureza, presente na figura do outro que está diante de nós.
Essa educação se espalha, cria um círculo virtuoso, faz acreditar de novo no bem, em meio a um mundo acidulado pela cizânia. A paz venceu o povo da guerra e os samurais contemporâneos, ou os ronins como eu, guerreiros sem um senhor, que agora também se curvam ao passar pelo torii, o portal do santuário. Ela está nas crianças, graciosas, polidas, educadas, nos seus uniformes impecavelmente arrumados, sinal da importância que se dá à educação, fundamento de tudo.
O uniforme é um sinal da importância do que se faz, e de respeito para quem se faz. Os motoristas de ônibus usam luvas brancas, como se dirigissem uma limusine: e a cada passageiro que passa o cartão para descer, agradecem. Não importa quantos são os passageiros, ou quantas vezes o motorista, ou a motorista, faça isso todo dia, por dias a fio: cada um, ao sair, ouve, arigatô gozaimasu, arigatô gozaimasu.
Para o oriental, como para os indígenas brasileiros, cada ser é um espírito divino, e como tal, deve ser ouvido, respeitado, reverenciado. O gesto simples de entregar um cartão de crédito é feito com as duas mãos, como uma cerimônia. Cada palavra, cada gesto tem valor, e o ritual é a forma pela qual a vida é valorizada.
"Pelo seu trabalho duro", eu havia visto os japoneses dizerem, ao servir a alguém a comida no restaurante, no filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders. Em Tóquio, os banheiros públicos que o personagem limpa no filme existem, estão em toda parte, são impecáveis, cuidados por gente igualmente diligente. O banheiro é gratuito, assim como a água, na entrada dos templos, onde se deve enxaguar a mão e a boca, antes da prece, e nos bares e restaurantes. Não, por água não se cobra, a um transeunte sedento.
Tomo um pouco de chá, com essa sensação de gratidão pelas pequenas coisas: por beber no calor, por estar aqui, neste ambiente de comunhão com os seres da vida, por fazer parte deste grande concerto, e por trazer comigo meu filho, que é a melhor parte de mim. Para ele e outros são os meus pedidos, neste círculo virtuoso onde a humanidade se une à natureza, contra as dificuldades, os medos, as impossibilidades.
No templo, as deidades cujo espírito está guardado no escrínio do altar, desde quando reverenciadas pelo shogun Tokugawa, são fonte de uma força invísivel. A água da bica na entrada sai da boca de um dragão de metal. Duas moedas caem tilintando pela grade de madeira diante do altar, onde todos se despedem ao fim da prece batendo palmas duas vezes, e com uma leve inclinação. Há na humildade um misterioso poder: abrindo mão da nossa importância, sendo apenas gratos, podemos tudo.
Há nessa humildade, tanto quanto força, uma fragilidade. Talvez o rigor de uma sociedade que valoriza tanto o outro leve também à dificuldade de cruzar a ponte que separa as pessoas. Imagino que seja isso a fazer de muitos japoneses seres retraídos, carentes, de alguma forma amedrontados. Sobretudo o homem, diante da figura da mulher.
Suponho que seja essa a atração que há nas gueixas, que vi andando pelo Guion em Kyoto, ou sua versão mais barata e pop, nos maid cafés. Neles, os japoneses pagam para conversar com garçonetes, vestidas de colegiais como nos animes - os desenhos japoneses, baseados em graphic novels, uma indústria que o Japão internacionalizou.
A algumas quadras de distância, aqui em Akihabara, elas estão nas calçadas, chamando os clientes para dentro, com cartazes de papelão na mão, sobre botas com salto plataforma, maria-chiquinha, minissaia, coloridas à noite pela luz dos neons em profusão. Desci uma escadaria até um desses bares, no subsolo: um recinto pequeno, e, para quem não está acostumado, um pouco sinistro, ou constrangedor.
"Thales San", escreve uma delas, depois de perguntar meu nome, para abrir minha conta. Há um grupo de rapazes numa mesa e dois japoneses sozinhos, em duas outras. Há pouca bebida, quase nenhuma comida, e não há sugestão de sexo, exceto pelo uniforme fetichista das recepcionistas.
Há somente a garantia de um bom tratamento, que oferece a possibilidade de simplesmente conversar com uma mulher, transpor aquele abismo invisível, com a certeza de ser bem tratado, ainda que por algum dinheiro. No Japão, conversar com alguém pode ser mais importante ou excitante que o sexo. Na cidade de 37 milhões de pessoas, onde tudo funciona tão bem, os dois maiores problemas são o alcoolismo e a solidão.
Essa timidez pessoal nem parece vir do Japão que não conhece limites. Enquanto eu pago a conta, e saio depois de tomar uma Coca-Cola, o Shinkansen, trem bala japonês, viaja a 350 quilômetros por hora, cruzando como raio as estações onde não faz parada. Fábricas com operários e robôs funcionam 24 horas por dia para vender produtos no mundo inteiro. E a baía de Tóquio - cenário de onde saíam aqueles monstros marinhos da minha infância e que ainda povoam a minha imaginação - dorme silenciosa e negra sob pontes luminosas monumentais.
O café em Akihabara, ao lado do templo dos guerreiros, é alguma saúde em meio a todas as loucuras. Reconforta, protege, acalma. Há no rito do chá algum mistério e arte, escritos no ar, em fina espiral de fumaça, com a desenhada caligrafia japonesa, que inspira os telhados das casas e o desenho dos templos. Ou é por eles inspirada - a arquitetura da palavra.
O silêncio é amigo, uma trégua, uma solidariedade, e diante das xícaras imóveis, enfileiradas nas prateleiras, que fazem lembrar minha avó, eu me sinto, do outro lado do mundo, estranhamente em casa.