segunda-feira, 7 de abril de 2014

Denise Milan e o humanismo brasileiro



Existem poucos artistas brasileiros respeitados, valorizados e divulgados no exterior. Denise Milan é um deles. Andarilha, de cabeça sempre aberta, fervilhando em iniciativas ao redor de suas ideias e obsessões, ela é uma artista genuína e inserida no nosso tempo: multidisciplinar (isto é, que trabalha com a imagem em todas as suas formas: escultura, fotografia, pintura, meio digital), tem um trabalho tão vasto e multifacetado que é difícil de definir. O que se pode dizer é que ela é o que todo artista brasileiro deveria ser: particular e universal.

Denise é incentivadora e protagonista da arte pública, aquela que pode ser vista na rua. E uma de suas marcas é a obsessão pelas pedras, cuja antiguidade remonta à idade da terra e do próprio universo. Para ela, as pedras representam a existência numa dimensão que ultrapassa a humanidade: é cosmogônica, universal.

Para Denise, somos parte do cosmos, essa interminável massa viva de energia em mutação. A vida das pedras dura milhões de anos, o tempo de sua transformação. Ao compará-las em sua existência à vida humana, e vice-versa, Denise nos lembra que não somos diferentes do universo, pelo contrário, somos parte dele, dentro de um sistema unívoco, total e belo.

Com sua subversão dos conceitos de vida, matéria e tempo, Denise construiu de pedra, em especial o quartzo, uma vasta cosmogonia artística, que pode ser vista em suas obras públicas, de Chicago a uma floresta particular em Pernambuco, um laboratório artístico louco (ou visionário) criado por empresário brasileiro que a imaginou como um parque para ser visto "por alienígenas daqui a milhares de anos". As peças de Denise, que falam da terra, do homem e do tempo, bem poderiam ser enviadas na carga das naves espaciais que visam explorar os limites do universo, junto com as mensagens de paz e os concertos de Beethoven.

A universalidade do trabalho de Denise, porém, vem do particular, de uma brasilidade que faz inserir o Brasil no mundo e lhe dá a possibilidade de ser protagonista das ideias e das artes, algo tão importante, e precedente, quanto liderar a economia mundial. A pedra brasileira, a visão brasileira, a arte brasileira em Denise são um exemplo de uma nova visão, que se traduz na miscigenação, na paz, na tolerância, na integração com a natureza aqui tão abundante. Nossa terra, e o que fazemos dela, torna-se inspiração.

Denise gosta do Brasil, tira sua terra, suas pedras e sua humanidade do Brasil. Pesquisadora dos índios no litoral fluminense, que assim como a nossa natureza estão nas nossas raízes, mergulhou no trabalho que chamou de "Fumaça da terra", um registro em livro fotográfico da natureza e da gente do litoral fluminense. Agora, construiu a partir dessas imagens uma exposição, conjunto de fotomontagens que trazem o mistério das fotos originais, mas ganharam outro sentido, mais vital, orgânico, poderoso e um tanto místico. Na mostra, que vai até este dia 19 de abril na galeria Virgilio, em São Paulo, pedras se tornam flores, ou flores se tornam pedras. Terra e gente, extraídas de diferentes fragmentos, são afinal uma coisa só. É a cosmogonia de Denise em ação. Ou a melhor expressão do humanismo brasileiro.

Multimodal, a artista está em toda parte: ora na Itália, onde monta uma exposição, ora em Chicago, de cujo centro cultural veio a mostra do Fumaça da Terra. De vez em quando pode ser encontrada tomando café numa padaria paulistana, onde já concebeu um seminário catalisador para colocar ordem nos conflitos milenares do oriente - uma homenagem à sua genealogia libanesa e fruto da vocação brasileira para a diplomacia e a cordialidade. mais uma pitada de quem sabe que uma pessoa só pode fazer muita diferença no mundo.

O seminário, claro, aconteceu. Denise pensa grande e faz grande. É certo que somos apenas uma parte insignificante do universo, mas certamente, sem arte como a dela, o universo estaria bem mais pobre, e bem menor.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A longa história de um breve romance




Em dezembro de 2009, fui conhecer a então nova Livraria da Vila do Shopping Cidade Jardim, em São Paulo, e fiquei extasiado diante daquelas prateleiras cobertas de livros e, no centro, o auditório envidraçado que parecia flutuar entre as estantes, obra do arquiteto Isay Weinfeld.

– Ah! – exclamei, ao lado do proprietário da loja, Samuel Seibel. – Dá vontade até de escrever um livro aqui dentro!

Samuel olhou para mim, divertido, e provocou:

– Por quê não?

Surgiu então a ideia do “Escritor na Livraria”. Samuel reservou para mim uma mesa, colocada ao lado do auditório, no amplo mezanino da loja; eu passaria ali um mês, numa espécie de reality show. Escreveria um livro ali e meu computador estaria conectado a outra tela, voltada para o lado contrário, para as pessoas que circulavam pela loja verem o que eu estava escrevendo, em tempo real.

Escrever é por definição um trabalho solitário, e gostei da ideia não apenas por fazer algo diferente, como pelo fato de que o processo de trabalho poderia contribuir para o livro que eu vinha justamente imaginando. Na época, eu andava sob o efeito da leitura de Kafka, e de uma frase, que acreditava ter lido em algum lugar, talvez Kierkegaarde, certamente Kierkegaarde, segundo a qual a felicidade depende da incerteza. Claro, imagine se todo mundo soubesse como irá morrer: a condição para ser feliz é não saber.

Tinha de ser um livro curto, de impacto, um desafio para mim, autor de livros de fôlego; com aquela estranheza kafkiana; e com o tema da incerteza, que ganharia força pelo método: eu permitiria que as pessoas pudessem ler e interferir durante o trabalho, de maneira que eu mesmo não saberia qual o rumo que a história tomaria. No final da tarde, o resultado do trabalho do dia seria pulicado em um blog, no qual os frequentadores da loja poderiam continuar acompanhando diariamente o andamento da história.

Quando me instalei na livraria, eu sabia apenas duas coisas: o título, provisório (“Ensaio sobre a incerteza”), e uma frase inicial (“Você quer mesmo saber?”). O título cairia ao longo do trabalho, mas a primeira frase persistiu. Eu começava 11 horas da manhã e encerrava o trabalho por volta das 18:00, num expediente normal de trabalho, incluindo sábados. A pessoas passavam, primeiro, desconfiadas; aos poucos ganhavam coragem e vinham falar comigo, para entender o que estava acontecendo. Com o tempo, passavam a participar e colaborar de verdade. Assim, fiquei sabendo que o nome que havia escolhido para a cigana não podia ser aquele; troquei-o para Rosa, que, conforme fiquei sabendo, é um nome cigano. Surgiram jornalistas, para gravar entrevistas, fotografar e escrever sobre o evento; eles também liam o que eu escrevia, interferiam e escreviam sobre o que mudava na história.

Lembro especialmente de uma mulher, que sentou-se à minha frente e me contou longamente sua história. Tinha nascido numa cidade ribeirinha do Amazonas, uma vila de pescadores, distante da civilização. Certa vez, quando tinha nove aos de idade, ciganos passaram por ali; uma cigana velha a tinha visto, lera sua mão e dissera que ela ainda seria muito rica e viveria na capital. Para quem habitava a floresta selvagem, aquilo parecia absurdo. Na adolescência, ela visitou Manaus para realizar um sonho de criança: conhecer o teatro Amazonas. Lá, encantou um rico médico carioca com quem rapidamente se casaria; foi morar no Rio, teve filhos e há quarenta anos vivia dentro de uma família feliz. Um conto de fadas. “Eu acredito em ciganas”, ela me disse, antes de ir embora.

O curso da obra ganharia outra interferência importante, que mudaria o rumo da história. Naquela época, o noticiário começava a repercutir as denúncias sobre Roger Abdelmassih, o dono de uma célebre clínica de fertilização em São Paulo, acusado de assediar brutalmente suas pacientes. Um médico inspirado em Abdelmassih (o doutor Perez, ou o “Monstro”, como as vítimas de Abdelmassih o chamavam) foi incorporado ao romance; o jogo entre marido e mulher ganhou novo elemento de impacto e o Dr. Jekyll contemporâneo se tornou personagem pivotante.

No mês em que passei na livraria, conheci seus funcionários, que gostavam muito do que faziam; era bom conversar com eles sobre música, livros e arte em geral; passeava pelo shopping de carrinho de golfe com Papai Noel, de quem me tornei amigo; assisti um filme erótico estrelado por Paolla de Oliveira, sozinho na sala de cinema; uma tempestade de verão apagara a luz do bairro e não pude trabalhar – o Cidade Jardim tinha gerador e, além dos elevadores, o cinema era a única coisa que funcionava no Shopping. Encerrei o trabalho no dia 24, véspera de Natal, como planejara, deixando o livro incompleto – para escrever em casa o trecho final, que as pessoas só poderiam ler quando o livro fosse publicado em papel.

Eu estava satisfeito. E cansado: não é fácil se concentrar para escrever com tanta gente em volta interrompendo, embora eu, como jornalista treinado a escrever em redações com mais de uma centena de pessoas, e romancista trabalhando em casa com um filho pequeno, soubesse lidar com a perturbação razoavelmente bem. O evento foi um sucesso: promoveu a nova loja e cheguei a ser convidado para repetir a proeza numa livraria em Lisboa, a convite do Sapo – o maior portal da internet no país, que queria transmitir a redação do livro em tempo real com uma câmara “24 horas”. Agradeci, mas recusei: repetir o feito, ainda mais longe da família, por trinta dias, seria demais para mim. Além disso, tinha um emprego à minha frente.

Como as surpresas do destino do qual trata, o Linha da Vida ficaria parado no estágio em que encerrei o trabalho na livraria, por um longo tempo. Em novembro de 2009, eu também recebi um convite para ser o diretor editorial da Saraiva, a maior rede de livrarias e uma das maiores editoras do Brasil; em janeiro, ao assumir o cargo, com a responsabilidade de desenvolver as publicações de ficção e não ficção da editora, deixei o romance dormindo em seu berço virtual. E só agora, novamente fora da vida corporativa, pude concluí-lo.

Revi o texto, que se manteve fiel aos propósitos originais: o tema, o tamanho, a busca pelo impacto. Mudou um pouco, contudo, a direção; criado ao sabor dos acontecimentos, ganhou mais foco quando percebi, afinal, porque havia me interessado pelo tema e pela história.

Está concluído Linha da Vida, um breve romance com uma longa história: resta agradecer a todos os que com ele colaboraram, incluindo o Destino.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Pensamentos

Contra o fato há mil argumentos.
*
Cada um merece a consideração que dá.

*
Quem tem formação humanística erra melhor.
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O julgamento mais importante é o do espelho.

*
A escuridão é o melhor  espelho.
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A história é a engenharia do tempo.

*
Só as ideias são imortais 

*
A incerteza é a verdadeira sombra do homem.
*
Até quando não têm amor, todas as histórias são de amor.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A lição de Eva: uma releitura do papel na mãe da Humanidade e das mulheres a partir da Bíblia

Ela sempre foi vista como um mero subproduto de Adão e a pecadora que levou o homem à perdição. Agora, a mitológica mãe da Humanidade é revista como uma mulher capaz de assumir riscos, que defende o direito ao conhecimento e é a primeira entre as mulheres da Bíblia a desafiar, em nome da liberdade, a autoridade ? não só a masculina como a do próprio Deus.


Por muito tempo, a imagem de Eva foi associada ao pecado, fundamento de antigas tradições na qual as mulheres, ao mesmo tempo em que são o esteio da família, foram também o seu fator de desestabilização ? a marca da tentação, simbolizada pelo seu papel no pecado original. Eva é quem leva o inocente Adão a comer o Fruto Proibido. Funda uma existência de busca pelo conhecimento e o prazer que nem a pena ? perder o direito à imortalidade ? é capaz de desestimular. Traz a dor e condena a Humanidade movida pelo mais fútil dos motivos: a curiosidade. Inaugurava a galeria de mulheres bíblicas vistas como rebeldes, subversivas e pecadoras.

Vivendo num ambiente patriarcal, onde o poder masculino era absoluto e ao qual não havia outra saída exceto a submissão, elas tinham liberdade somente quando desafiavam o poder masculino por artes há muito associadas ao ?sexo frágil?: a sedução e a dissimulação.

Bem, tudo isto está mudando. Novos estudos da Bíblia têm feito uma uma leitura mais contemporânea do mito fundador da sociedade ocidental e da sua protagonista, tão polêmica quanto fundamental no nosso imaginário. Segundo essa revisão, a mãe literalmente de toda a civilização é de fato a personagem quem lança a pedra fundamental da Humanidade, por seu desejo de adquirir conhecimento, renunciando ao paraíso e à promessa de imortalidade em defesa de sua auto-determinação e pela capacidade de, também como Deus, poder dar a vida.

A antiga pecadora agora surge como a uma mulher modelar, capaz de desafiar as convenções, assumir riscos e escolher a busca da sabedoria e de uma vida de intimidade plena com seu homem - matriz de uma tradição monogâmica que perdura na sociedade ocidental até os dias de hoje. agora é o elemento de tangência que induz o homem a buscar a sabedoria, não apenas pelo conhecimento do sexo, mas num sentido mais amplo. E que inspira o casal a ter coragem de lutar pelo seu próprio destino, mesmo contra os desígnios divinos.

?Eva é uma mulher que assume riscos, em seu nome e do companheiro?, diz a psicanalista Naomi Rosenblatt, autora de After the Apple: Women in the Bible: Timeless Stories of Love, Lust, and Longing.

Os escolásticos hoje apontam que tal visão se deve a antigos preconceitos e atribuem a associação entre a mulher e o mal ou o pecado na Bíblia muito mais à interpretações baseadas em pontos de vista arcaicos, difundidos por igrejas ou pela transmissão do conhecimento popular, que propriamente pelo texto original. Na Bíblia, de fato, com raras exceções as mulheres recebem algum castigo. A maioria revolta-se contra algum tipo de opressão e a autoridade masculina, quando ela é injusta ou insuficiente para preservar a família. Ao contrário, muitas vezes elas são recompensadas. Agora, o que se destaca são outros aspectos também contidos no texto bíblico. Em boa parte, eles são ressaltados pelo fato de que hoje há muitas mulheres estudiosas dos textos bíblicos, que chamam a atenção para aspectos bem mais complexos dos personagens femininos.

Por essa leitura, as mulheres da Bíblia já se pareciam em muito com as mulheres contemporâneas, assim como os relacionamentos têm muita semelhança com os da sociedade ocidental de hoje. Assim como nós, os personagens da Bíblia são profundamente humanos, com suas lutas, dificuldades, forças e fraquezas ? e as mulheres não são diferentes. Mesmo sendo menos numerosas na Bíblia que os homens, elas têm sempre um papel muito forte. Tentam acertar em seus relacionamentos e são os principais personagens das histórias das quais tomam parte. São as primeiras a questionar a autoridade, a assumir riscos, quebrar regras do poder constituído. As mulheres da Bíblia mostram-se também defensoras ferrenhas da família, cuja descendência procuram preservar a qualquer preço, num instinto natural de preservação da espécie.

A jovem Eva não apenas toma a iniciativa, conduzindo Adão ao fruto proibido, como desafia o poder divino. Ao deixar o paraíso, desdenha aquilo que deixa para trás, satisfeita por ganhar o livre arbítrio, mesmo ao preço de sua recém-adquirida mortalidade. Sarah coloca outra mulher na cama de Abraão, para que dê ao marido o filho que ela própria não pode lhe proporcionar. (Mais tarde, é premiada com um bebê mesmo fora da idade em que é possível a concepção). Séfora impede Moisés de sair de casa, destruindo a família, da forma mais radical: toma nos braços o bebê do casal, Gérsom, e ameaça passar-lhe a faca, caso o marido a abandone.

Por trás das aparências da sociedade patriarcal, revela-se o exercício de uma grande autoridade e de uma infuência decisiva no curso dos acontecimentos. Hoje, são mais valorizadas personagens bíblicas como Débora, uma espécie de Anita Garibaldi da antiguidade, que lidera os exércitos hebreus em batalha. Ou Rahab, a prostituta que auxilia os espiões de Josué a escapar de Jericó, correndo risco de pagar com a vida. São mulheres inteligentes, capazes de tomar a iniciativa, que se negam a curvar-se diante das circunstâncias mais difíceis e nas quais o ambiente patriarcalista não deixou qualquer problema de auto-estima.

Tanto o Velho como o Novo Testamentos, os personagens bíblicos fazem parte de uma sociedade predominantemente masculina em que a poligamia é amplamente aceita. Com a história de Adão e Eva, mito fundador da família ocidental contemporânea, porém, a Bíblia estabelece a monogamia não como um padrão imposto por Deus, mas a fórmula menos problemática para a base familiar. Essa ideia é reforçada pelas histórias a seguir, nas quais os casamentos múltiplos dão errado ou causam inúmeros problemas. A rivalidade de Rachel e Lea, duas irmãs casadas com Jacó, assim como a das mulheres de Elkaná e as tribulações de Davi com suas numerosas esposas apontam para a vida caótica de núcleos familiares cheios de dissenções, traições e dissabores.

Enquanto isso, o casamento de Abraão e Sarah, em que pese a disposição da mulher de ceder seu lugar para garantir a procriação, é um relacionamento modelar, assim como o de Rebeca e Isaac. No Gênesis, ao criar a mulher, deus não imaginou mais alguém ao lado de Adão, exceto Eva. Ao ver Adão solitário entre os seres que habitam o Jardim do Éden, Deus pensa em lhe criar uma companheira. Tal combinação garante intimidade, companheirismo e afeto mútuo que antes só encontrava paralelo no relacionamento entre o homem e Deus.

Sexo não é assunto proibido na Bíblia. Dalila arrasta Sansão pela perdição atraindo-o claramente com seus favores entre os lençóis. Este novo tratamento desmistifica a idéia de que os personagens da Bíblia são santos ou sagrados, e também a de que são essencialmente pecadores. São seres humanos feitos à imagem e semelhança de todos os mortais, com seus erros e acertos, dilemas e certezas, medos e coragem. Desde que Eva decidiu questionar as regras do Jardim do Éden, desafiando a Deus para adquirir liberdade, reivindicar seu direito ao conhecimento e poder também criar a vida, o ser humano não se modificou essencialmente ? e mostra-se que a mulher já tinha muito do livre arbítrio, da importância e da independência que possui na sociedade ocidental contemporânea.

Ponto de partida para a história do homem, o amor entre Adão e Eva é feito de união contra as dificuldades, escolha da liberdade, desejo e amor. A ambos é oferecido o Paraíso por um Deus todo-poderoso que cria o ambiente perfeito não apenas para existir como para ser maculado: um homem, uma mulher, um jardim luxuriante, a serpente e o fruto proibido. É uma parábola sobre o livre arbítrio, a capacidade humana de escolher, a responsabilidade assumida pelas decisões e a necessidade de arcar com suas consequências.

Ao contrário da noção de que a Bíblia associa a mulher ao sexo e o pecado, o surgimento de Eva a princípio não tem qualquer ligação com a relação carnal. No texto bíblico, não é Adão quem pede por uma companhia. O próprio Deus conclui que aquela criatura solitária necessita de um interlocutor para sair da solidão. ?Não é bom que o homem esteja só?, diz ele. ?Vou fazer uma companheira que lhe corresponda.? Em Eva, ?carne da sua carne?, Adão passa a ter alguém que fala e ri como ele, diferente nas formas, mas igual moral e espiritualmente. A Bíblia lança o companheirismo como o vínculo inicial e predominante da relação entre homem e mulher. O desejo sexual aparece somente depois. O bem primordial do relacionamento é a cumplicidade.

O nascimento de Eva tem natureza simbólica, pois contraria a ordem natural das coisas, já que todos os homens nascem da mulher, e não ao contrário: ?Deus fez cair torpor sobre o homem e ele dormiu. Tomou então uma de suas costelas e fez crescer carne em torno dela. Depois, da costela que tirara ao homem, modelou uma mulher.? Os estudos mais recentes da Bíblia questionam a tradução que deu origem à versão corrente da Bíblia. Linguistas apontam que a palavra hebraica ''tzela'' é usualmente traduzida como ?costela?, mas tem o sentido de ?lado?. A ideia de que a mulher foi criada ?ao lado? do homem?, como se fossem um mesmo corpo, integrante de um mesmo corpo, e não um mero subproduto, é reforçada logo adiante: ''por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe e se une a sua mulher; assim eles se tornam uma só carne.?

No Jardim do Éden, aperfeiçoado com sua nova habitante, há apenas uma regra de ouro. A liberdade de homem e mulher é limitada: Deus avisa que que nem o homem ou a mulher devem tocar no fruto da Árvore do Conhecimento, no centro do jardim. Mais uma vez, os linguistas buscam dirimir as controvérsias sobre essa passagem bíblica. A palavra hebraica para conhecimento (da'at) é a mesma utilizada para o conhecimento sexual. Dessa maneira, implica-se que os tradutores iniciais do texto se ativeram à implicação sexual do termo, mas cuja redação original poderia utilizar a palavra no sentido do conhecimento mais amplo.

Entra então em cena a serpente, o agente perturbador da ordem, símbolo fálico e ente maléfico, definido na Bíblia como o ?mais astuto do animais?. O Criador garante que quem comer do fruto proibido da Árvore do Conhecimento pagará com a vida, penalidade máxima para a transgressão de uma lei feita para ser quebrada. A serpente, porém, é mais exata, ao dizer a Eva que ela ?não morrerá, mas Deus sabe que, no dia em que dela (da árvore) comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal?.

Na tradição cristã, Eva leva Adão a cometer o ?Pecado Original?, simbolizado pela degustação do fruto proibido. No texto bíblico, ela é a primeira a conversar com a serpente e avaliar os benefícios do que o réptil lhe propõe. ?A mulher viu que a árvore era boa no apetite e formosa à vista e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento?, diz o texto. Porém, quando come do Fruto Proibido, Adão está ao lado de Eva, num ato que pressupõe uma reflexão anterior e a concordância do consorte. Homem e mulher exercem a cumplicidade para a qual Deus os criou voltando-se contra a sua determinação.

Na interpretação mais atual do mito, Eva é atraída pela serpente não por ser mais frágil ou o veículo mais suscetível do pecado, mas porque foi desenhada para perpetuar a espécie. Esse desenho é biológico e mental. A compulsão de Eva pelo conhecimento é maior que o do homem porque faz parte de seu papel. A ela cabe a decisão de transgredir o paraíso, não por luxúria, mas pelo fato de carregar a maior responsabilidade. É ela a responsável pela continuidade da espécie. É ela que fica grávida, amamenta e assume as principais responsabilidades da procriação e, por conseguinte, da família. Toma decisões mais calculadas e por isso é também mais convicta. Sua força vem daí: a necessidade de procriação supera o dilema moral.

O efeito do Fruto Proibido é imediato: Adão e Eva cobrem-se de folhas, envergonhados de sua nudez. Vergonha, desejo, culpa e uma certa noção de privacidade desvelam-se repentinamente. Adão esconde-se. Localizado pelo Criador e instado a dar explicações, como um aluno malcomportado, numa atitude pouco nobre ele dedura a mulher. Eva justifica-se com a sedução da serpente. São então todos condenados, a começar pelo réptil, amaldiçoado e condenado a rastejar eternamente. A Eva, Deus impõe as dores do parte e a submissão ao marido. Ao homem, a condenação divina é o trabalho: ?Com o suor do teu rosto comerás o teu pão até que retornes ao solo, pois del foste tirado. Pois tu és pó, e ao pó voltarás?.

Apesar do constrangimento pelo ato de rebeldia, Adão e Eva em nenhum momento manifestam arrependimento. Está estabelecida a independência do ser humano, reafirmado o seu livre-arbítrio e assinalado que ele tem de buscar a felicidade por seus próprios meios. Não é, ao contrário da voz corrente, uma opção pelo pecado, palavra que em nenhum momento aparece na história, muito embora a famosa refeição tenha sido posteriormente rotulada como o Pecado Original. Nem essa palavra é utilizada para descrever o comportamento de Eva, n sentido de ruim ou pecaminoso. No Gênesis, em vez de pecado, ou de um grande erro, a decisão de escolher o conhecimento, mesmo sob a pena da mortalidade, é uma opção. A noção de pecado somente surge na Bíblia vez pouco mais tarde, quando Caim mata seu irmão Abel. Os filhos de Eva serão os protagonistas de um crime e da primeira tragédia humana.

Anátema para seguidas gerações de mulheres, a frase bíblica em que Eva é condenada a submeter-se ao homem ? ?teu desejo te impelirá ao teu marido e ele a dominará? ? teve implicações reais, na medida em que a leitura ao pé da letra convinha a padrões estabelecidos. Não é mais assim. Para os estudiosos da Bíblia, a sentença não se sobrepõe ao fato de que o relacionamento entre Adão e Eva é de colaboração, e não de dominação. Por sua vez, o homem não é apenas o único provedor da família por meio do trabalho.

Não existe nenhum registro na Bíblia de como Adão e Eva reagiram à condenação divina, mas não significa que houve concordância com a pena. Embora tenham se tornados mortais, condenados a voltarem ?ao pó?, o Gênesis trata a saída de Adão e Eva do Paraíso como um renascimento. Ele deixa de acusar a mulher. Chama-a pela primeira vez de Eva pois ela seria daria início à linhagem de todos os seres humanos - Havvah, em hebreu, seria uma derivação hayah, que significa ?viver?. Está fundado o arquétipo de todas as mulheres em todos os tempos: um ser destinado à criação. Não parece a reação de dois condenados à morte, mas de um casal reunido na missão de viver juntos e realizar uma obra segundo seus próprios desígnios.

Eva veste então a primeira peça da moda feminina na história da Humanidade, com a ajuda do próprio Deus que a condenou. Primeiro estilista da tradução escrita, o Criador substitui suas precárias folhas de parreira por um conjuntinho de peles costuradas. Num gesto de complacência com seus rebeldes, a roupa servirá para proteger também as crianças da intempérie fora do Éden, definido na Bíblia como um paraíso terrestre em algum lugar do ?oriente?. As roupas ganham também o sentido histórico do início da civilização, entendida como todo produto do artifício humano para sua sobrevivência.

Na saída do Éden, surge outra árvore mencionada no texto bíblico, porém sem nenhuma função até esse exato instante. No plural majestático, que mantém a natureza divina do ser humano, ou reduz a divindade a uma criação do próprio homem, Deus declara: ''Se o homem agora já é como um de nós, versado no bem e no mal, que agora ele não estenda a mão e colha os frutos da árvore da vida, coma e viva para sempre?. Manda então que querubins e as chamas da ?espada fulgurante? montem guarda no portão do paraíso para proteger a Árvore da Vida, de modo a evitar que o homem volte e tome do seu fruto também.

Está desenhada a separação entre o homem e Deus: ambos podem dar a vida, mas só Deus é eterno. Dessa forma, somente pela procriação Adão e Eva podem garantir a eternidade: não de si mesmos, mas de sua linhagem, uma saga cujo início a Bíblia tratará de traçar ao longo de todo o Velho Testamento. Adão e Eva partem para o mundo não mais como crianças, mas adultos num mundo imperfeito.

Em vez de olhar para trás, onde as portas se fecham Eva olha adiante, para onde elas se abrem. Sua participação na expulsão do Homem no jardim do Éden não é humilhante. Ao contrário, rejeita a perfeição, à qual atribui um componente tedioso. Quando olha para a Árvore do Conhecimento, ela se pergunta para que serve a vida se não pode ser desfrutada com a sabedoria trazida pela experiência. É dela o papel mais importante na solução do primeiro dilema moral do livro sagrado. Adão e Eva partem convictos da escolha que fizeram para fundar sua família. Não choram nem cobrem a cabeça de cinzas, como fartamente retratado nas imagens que procuraram reconstituir esse momento simbólico. Saem conscientes de que sua vida tem o sentido de amar e reproduzir a vida. Têm consciência das dificuldades e de sua responsabilidade. Graças à ousadia de Eva, o ser humano atinge todo o seu potencial, desfrutar plenamente dos prazeres da vida e encontrar a paz espiritual confortado pelo amor familiar.

Em qualquer das formas que ligam o casal, seja como companheiros, parceiros ou amantes, a Bíblia coloca Eva num papel preponderante, não apenas pela iniciativa, como pela construção do núcleo familiar e tudo aquilo que ele representa. Ela não é uma sedutora pecaminosa, ao contrário do que a tradição popular lhe atribuiu, nem uma vítima totalmente inocente da serpente sedutora. Dela parte a maior lição: a de que a missão da vida é aproveitá-la, não escapar da morte. É lição fundamental de toda sabedoria, aquela que somente a mãe, a amante e a esposa saberiam dar. Como humanos, a inexorabilidade da morte apenas aumenta a necessidade de fazer o melhor da vida, com um sentido de urgência que ultrapassa proibições.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Prece da terra


Passageiros do tempo
Sem começo nem fim
Testemunhas transformadas em inextinguível parte
Do rio que corre rumo ao certo desconhecido

Senhores da paisagem
As nuvens benfazejas na primavera da manhã
A resplandecer ao sol esperança e vida
Levantando o vapor na prece matinal da terra
A chuva e o arco iridescente
Porta celestial do agreste
Por onde entram os sonhos

As estrelas que vemos e não vemos
As que brilham além do além
A lua no frescor miraculoso
Beleza estéril no deserto celeste
Que ganha brilho quando aqui estamos
Nós que damos vida e sentido ao infinito nada

Pradarias e ravinas
Todos os verdes que eu já vi
Aves brancas que revoam na tarde finda
Povoando e destruindo o ninho acolhedor

Os sons da mata
Silêncios partidos
O zunido do vento
O rosnar do trovão

A brisa cortante
O bafo quente e pulsante
Das tardes lentas
E surdas do verão

A chuva em torrente
A lavar o presente
Fecundando a paixão

No afã da cozinha
O fogo a bailar
As mãos generosas
O abraço fortuito
Que se põe a dançar

A água mata a sede a morte da gente
E nas noites de calma e vigília
Uma cidade aos pés
Flores e perfumes bailando
Seja festa ou solidão
Suor do rosto ou sangue vertido
Descanso do cavalo a galope
Ou da caminhada sem rumo
Que busca a trilha inesperada

Reencontro da paixão
Viver e dominar o instante
Teimosos como a Terra
Estações e seus destinos
E quando tudo parece acabado perdido
Acho de novo a morada
E voo

Se o tempo permite que ainda se escreva
Ou reescreva o que não foi o mais certo
E ponha o meio ao inteiro
E revele o que não foi descoberto
É certo:

Meu veleiro nas nuvens
Onde quis fundear
Um amor verdadeiro
Bem podia ter sido o primeiro
Todo o tempo esteve por lá

Um dia a barca nas nuvens
Será parte do sempre
Escombro, talvez, entre
Galhos e ervas e traves moídas de podre
O chão rachado de sol e intempérie
A cinza do fogo esquecido da gente

Mas entre as raízes que reclamam espaço
Levantarão não velhos fantasmas
E sim as sementes levadas ao vento
A fecundar outra era e lugares
Fruto do amor que é eterno presente
Bem que nunca se acaba

Para ler mais poemas de Thales Guaracy:
http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/4882279/inventario-da-emocao

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Para voltar à vida: Poema Sujo

Para voltar à vida, como eu, que hoje volto a escrever, como é bom ler: Poema Sujo, de Ferreira Gullar. O poeta que se acha perdido, às vésperas da prisão, da tortura, talvez da morte, numa cidade de outra pátria, não escreve da prisão, da tortura, da morte. Repassa a vida, a infância, a cidade natal, os personagens que afloram da memória: o que importa. E vemos São Luís do Maranhão, não essa dos cárceres dantescos, torturada pela dinastia Sarney, e talvez nem mesmo como ela já foi, mas como sabia a Gullar.

Um poema forte, mais belo no começo até, do que no final. Não rebuscado, nem complexo, ou profundo, como Leaves of Grass, o grande poema-testamento de uma vida, de Walt Whitman, escrito e reescrito ao longo dos anos, como se um escritor tivesse um livro apenas para escrever na vida, o livro dele mesmo. (Embora um autor saiba que, mesmo com muitos livros, todos eles falam de uma forma ou outra dele mesmo, de maneira que sua obra, no final, é como um livro só).

Leaves of Grass é extraordinário como testemunho, e poema sujo também, mesmo para quem não conhece São Luís, ou Gullar. cada um pode rever sua própria vida, porque ele provoca em nós as mesmas evocações. A docilidade da infância, os desejos da adolescência; a volta ao passado é uma volta ao interior de nós mesmos. Eu mesmo sinto uma coisa: quanto mais o tempo passa, mais me aproximo da infância, mais lembro dela, mas retorno aos sentimentos primeiros, que moldaram o que sou hoje, e são provavelmente as únicas coisas que nos restarão na hora final. Visitamos nossos labirintos, passagens que o tempo escava na gruta da alma, e, eu diria, até mesmo na nossa carne.

Para quem acha que o Brasil não tem grandes autores contemporâneos, ou quem menospreza a poesia, essa arte meio abandonada, receito como antídoto: Poema Sujo. Ele nos reanima, dá vontade de viver, dá valor á vida, faz respirar melhor. Foi escrito nos tempos duros da ditadura, mas é literatura moderna e que vai perdurar.

*

Cada dia fico mais perto da poesia, que hoje prefiro, mesmo, ao romance. É mais curto, mas lúdico, instigante, revelador. O romance descreve, reconta, sugere; fotografa personagens, momentos, cristaliza as ideias. Poesia faz o mesmo, mas sua linguagem está mais perto da alma; mexe com o próprio sentido das palavras, revolve significados, revolve ideias e sentimentos. Ao arrancar raízes, expô-las, ela nos liberta. Faz do conhecido algo mais, e sempre há mais, porque cada indivíduo tem seu próprio universo, infindo e com galáxias sempre inexploradas, como na vastidão estelar.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A volta da vitrola e o futuro do livro

A vitrola está na moda. Agora as pessoas dizem que o velho disco de vinil, aquela bolacha negra não comestível, produz um som diferente, inimitável e de alta qualidade que justifica um retorno ao mercado consumidor na era digital. Verdade? Talvez ouvidos hiper-treinados percebam alguma diferença. Eu não consigo imaginar como um disco de vinil possa superar a tecnologia contemporânea, exceto se a música for gravada de um disco de vinil, e não de uma matriz, perdendo, portanto, qualidade nessa transferência.

Esse retorno, porém, é muito sugestivo sobre o que vai ficar ou não entre todas as mídias. Sabe-se que a reprodução do meio digital também implica numa perda de qualidade. Uma foto arquivada no éter virtual, copiada ao infinito de um servidor a outro, com o tempo perderá definição, assim como aconteceu no passado com o papel, que amarelece, desmancha e some.

Todas as mídias são perecíveis. Um filme dos anos 1950 hoje é uma velharia em preto e branco; copiado num arquivo digital, continuará perdendo viço e terá no futuro talvez de ser restaurado como os afrescos de Da Vinci. Um filme contemporâneo, com todos os recursos digitais, certamente será também coisa tecnicamente superada daqui a dez ou vinte anos e provavelmente se tornará algo irreconhecível daqui a poucos séculos. Não há nenhuma criação artística que, como produto, não vá desaparecer de alguma forma, ou deixar de ser conhecida na sua forma original.

Eu disse nenhuma? Bem, de tudo, o menos perecível ainda é o livro, por ser, de todas as criações artísticas, a mais impalpável. Feito de signos, como transmissores de ideias, ele não sofre com a passagem de uma mídia para outra, como a do papel para o meio digital. Um texto sempre poderá ser copiado mantendo as características originais. A escrita não morre, assim como as ideias.

Os signos com os quais escrevemos serão sempre os mesmos, ainda que as gerações futuras falem e pensem diferente. Tentei recentemente ler para crianças de 13 anos um livro de Julio Verne. Acharam tudo maçante; longas descrições, linguagem arcaica, tudo serviu para que a minha diversão de criança, que lhes apresentei com tanto entusiasmo, parecesse um aborrecimento colossal. A literatura envelhece, é claro. Porém, a história continua lá, da forma como foi criada. Pulou de uma edição para outra, invulnerável ao tempo.

Hoje podemos saber como foi a vida dos antigos egípcios não apesar dos hieróglifos, mas justamente por causa deles, deixando os os registros de uma forma escrita. Eles podem ser reproduzidos em qualquer meio sem mudar de forma; não amarelecem, não perdem qualidade, e não por terem sido gravados em papiro ou pedra, e sim porque podem ser copiados da mesma forma que sempre foram. Serão para sempre os mesmos símbolos e signos que, uma vez decifrados, nos contam exatamente as histórias e a vida de um povo, da maneira como pensavam e se manifestavam.

Pode ser que daqui a milhões de anos nada reste, não apenas da arte, como da própria Humanidade; é talvez a dura conclusão sobre o nosso inglório esforço de deixar alguma herança no universo. Somos passageiros insignificantes de uma vastidão inimaginável e por isso a existência do homem na vastidão sideral representa menos que a de uma formiga na terra. Porém, gosto de pensar que ainda desafiamos as impossibilidades; há certa beleza no nosso orgulho ou, mesmo, na nossa petulância tão humana.




Playboy: foi bom e passou

O Eduardo Ribeiro, editor do Jornalistas & Cia, me procurou para saber o que eu tenho a dizer sobre minha passagem pela direção da revista Playboy. Segue aqui minha resposta.

Nunca imaginei um dia dirigir a Playboy, mas não fiz pouco caso do cargo que me foi oferecido, por onde passaram grandes jornalistas, que sempre respeitei, como Mario de Andrade, Carlos Maranhão e Ricardo Setti. O mercado mudou muito, as condições eram outras, mas achei que seria um bom desafio tentar recuperá-la nestes tempos complicados para a mídia impressa e especialmente para revistas que, apesar do pé muito firme no jornalismo, devem boa parte de sua venda a um prato principal facilmente copiável pelos piratas.

Fui convidado para dirigir a Playboy em abril passado pelo Roberto Civita, que mandou o Alfredo Ogawa como emissário. Depois de um almoço na Vila Madalena, o Ogawa me disse que o Roberto tinha pedido que eu escrevesse vinte linhas sobre o que eu achava que deveria ser feito com a Playboy. Escrevi e, com base nisso, ele me pediu que dirigisse a revista.

Porém, quando assumi o cargo, ele estava hospitalizado e em seguida veio a falecer, de modo que nunca chegamos a trabalhar juntos no projeto para a Playboy. Roberto era um grande defensor da revista, que para ele era um pilar da editora, assim como Veja e Exame, as três publicações que ele considerava serem sua marca na empresa.

Sem ele, as condições para fazer Playboy mudaram rapidamente e creio que minha saída era uma questão de tempo. Procurei fazer o melhor que pude, pelo prazer do trabalho e um pouco como uma última homenagem ao Roberto. Nesse período, acho que conseguimos coisas boas. Em sete meses, o número de likes da Playboy no Facebook subiu de 250 mil para mais de 1,4 milhão. A edição com Antonia Fontenelle foi a mais vendida em mais de um ano e a edição de Nanda Costa foi a mais vendida desde Adriane Galisteu, em agosto de 2011, um excelente resultado, especialmente num mercado declinante como é o de revistas. O nome de ambas, segundo o Google divulgou esta semana, está entre os termos mais buscados no Brasil em 2013.

Acima de tudo, Playboy voltou a ter repercussão e restabeleceu uma certa qualidade editorial, tanto nos ensaios como no jornalismo. Os pelos pubianos de Nanda Costa foram top trend no twitter seis dias seguidos e o ensaio com a Morena da novela firmou o verdadeiro nome da atriz junto ao público. A coragem de Fontenelle em posar depois da viuvez e contra todas as patrulhas também foi um marco importante na história da revista, assim como a nudez da primeira evangélica na história da publicação: Aline Franzoi. Aline chegou a receber ameaças de morte e enfrentou tudo com sobriedade, firmeza e coragem.

Desnudamos também Meyrielle Abrantes, a ex-mulher do senador Jarbas Vasconcelos, a nossa pequena vingança, porque enfim não é Brasília que escandaliza a gente, e sim nós que escandalizamos Brasília.

Não posso deixar de falar também da Pietra Príncipe, a loirinha abusada do Papo Calcinha, programa do Multishow, que mostrou realmente ser capaz de tudo, incluindo voar do lado de fora de um helicóptero, nua como veio ao mundo. Tive de confrontar a Playboy americana, que reclamou dela aparecer na capa segurando uma arma - em Playboy, são proibidas armas, referências à violência, a religião, sexo explícito e sadomasoquismo. "Tudo o que é divertido", me disse ela, quando lhe contei a história.

Encerrei minha participação com a edição histórica dos 60 anos de criação de Playboy, que juntou a beleza da coelhinha Thaíz Schmitt com a ideia de homenagear as fotos memoráveis da revista.

Saio satisfeito com o que foi feito. Minha última iniciativa foi estimular a criação de uma plataforma nova na internet, na qual Playboy teria parte de seu conteúdo fechado para assinantes, de maneira a poder fazer receita na internet e crescer aonde o mercado está crescendo, além de desestimular a pirataria na rede. É assim que Playboy já funciona há muito tempo no mundo inteiro, menos no Brasil. Um prova de que estamos ainda muito atrasados e equivocados no mundo dos negócios virtuais.

Agora vou voltar a fazer livros. Tenho dois projetos de livros de reportagem sobre o Brasil, para os quais ainda preciso de editor. E criar projetos de comunicação para empresas que envolvam diversas plataformas de midia na minha empresa, a Comunicom. Torço para que a Playboy permaneça como uma revista respeitável, inclusive na sua matéria principal, e que na internet possa recuperar os anos perdidos para a pirataria. É preciso crescer nos mercados que crescem, em lugar de apenas defender os anéis onde eles inexoravelmente vão sendo perdidos.

Link para o texto do Eduardo:



terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Um homem sem medo do seu próprio mito



Em dezembro de 1990, eu dirigia a revista 2000, publicação de domingo do jornal O Estado de S. Paulo, que teria vida breve, mas palpitante. A última edição era uma retrospectiva dos acontecimentos daquele ano, recheado de momentos marcantes: a posse do primeiro presidente eleito do Brasil em 30 anos, Fernando Collor, a queda do Muro de Berlim, o lançamento ao espaço do telescópio Hubble, as mortes de Cazuza e Greta Garbo e o bicampeonato de Ayrton Senna na Fórmula 1. Quando entreguei a revista ao responsável por publicações especiais do Estadão, João Vítor Strauss, no entanto, ele abriu os olhos quando leu o que eu havia escrito sobre outra notícia que a muitos pareceu menos relevante: a libertação do líder sul-africano Nelson Mandela. "Isso é uma das melhores coisas que eu já li na vida", disse ele.

Eram apenas cinco linhas, uma legenda debaixo da foto de Mandela, com uma gravata com as cores da bandeira sul-africana, punho cerrado para o alto e um sorriso no rosto:

"Em 11 de fevereiro, um homem de cabelos brancos saiu da prisão de Victor Verster, na África do Sul. Pela primeira vez em 27 anos, um mitológico líder da luta contra o apartheid, Nelson Mandela, pôde ser visto em público - e ajudar a fazer História em liberdade."

Faço essa referência não apenas pelo prazer de lembrar João Vítor, como pelo que essa recordação explica sobre a extraordinária trajetória de Mandela. Condenado à prisão perpétua por sabotagem e incitamento à greve, Mandela se tornara, na prisão, um símbolo da luta contra o apartheid, a segregação racial dos negros na África do Sul, e mais - um símbolo da luta contra o racismo em todo o planeta. O mito cresceu ao longo dos anos, justamente pelo fato de que, impossibilitado de sair sequer para o funeral da mãe e do filho, e isolado no cárcere, sem que pudesse jamais ser visto, Mandela se tornara um personagem legendário.

Libertado na onda de protestos mundiais que se juntaram à queda do Muro de Berlim, Mandela poderia ter se curvado ao peso da própria lenda. Na cadeia, ele se tornara mais do que pode aspirar um ser humano. Como lenda viva, ele teria de enfrentar, fora da prisão, a realidade de se tornar novamente um homem. Poderia desapontar os milhões de pessoas que olhavam para ele, dentro e fora de seu país. Como pode estar um homem à altura do seu próprio mito?

Muita gente feneceu por muito menos. Chico Buarque, por exemplo, é um dos que declaradamente receiam ser comparados a uma imagem construída no passado. Preferiu renunciar a fazer música para não ser colocado lado a lado com ele mesmo no seu auge. Chico representa uma fase de belas canções da música popular brasileira, com uma leve passagem pela musica de protesto durante a ditadura militar, e acha melhor ser Francisco Buarque de Hollanda do que tentar repetir o mito. Imagine-se então na pele de Mandela, o homem sob a sombra da própria lenda, e mais - o homem diante das expectativas de um país inteiro, e depois do mundo inteiro, à espera de alguém capaz não apenas de simbolizar uma luta, como ser capaz de encarná-la, torná-la real, lutá-la e vencê-la.

Mandela não teve medo. Saiu da prisão como um gigante, e viveu os 24 anos restantes como um gigante de carne e osso ainda maior. Negociou as condições para uma nova Constituição, elegeu-se o primeiro presidente negro da África do Sul e, mesmo contras as dificuldades econômicas e sociais, sem falar na intolerância, que não desapareceu do dia para a noite, transformou a África do Sul num exemplo de igualdade, liberdade e civilidade. Um país ainda cheio de problemas, mas que plantou a base essencial para o futuro.

Transformado em estadista, Mandela foi também uma espécie de pajé, um velho sábio que fez jus ao mito graças a uma qualidade rara e contraditória em mitos: a humildade. Da mesma forma que arrumava sua cama todos os dias no palácio presidencial, despiu-se de ressentimentos, que poderia ter tido, por força da segregação, dos anos da prisão, da injustiça. Compreendeu que somente lançaria a paz em seu país se fosse o primeiro a baixar as armas. Com humildade, base da sabedoria, Mandela tornou-se superior. Algozes e vítimas de ambos os lados, negros e brancos, o seguiram pela força do exemplo. Uma boa história de Mandela está contada no filme Invictus - um exemplo esportivo de como ele conduzia um país beligerante à pacificação.

A intolerância, seja racial, econômica ou religiosa, é ainda a maior ameaça à civilização no Século XXI. Está por trás das guerras contemporâneas e provavelmente das que ainda virão. Mandela, morto semana passada, aos 95 anos, deixa dois grandes exemplos. O primeiro, que também é o de Gandhi, é o de que a paz prevalece sobre qualquer violência e que a tolerância extingue o rancor. O segundo é de que a igualdade, a democracia e a liberdade são e serão sempre princípios inerentes ao homem, e que líderes servem apenas para lembrar que os valores fundamentais da Humanidade são defendidos não nos grandes momentos da História, ou por mitos sobre-humanos, mas no dia a dia, pelo cidadão comum.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A beleza da segunda divisão



O Palmeiras ganhou com folga a série B do campeonato brasileiro e eu, como palmeirense, só posso dizer: foi muito bom. Nós, palmeirenses, nem tivemos que prestar atenção na série A, que deve ter sido o campeonato mais chato da história, com o Cruzeiro ganhando de longe, sem jamais ser ameaçado por ninguém. Enquanto isso, a gente... Nada de jogo nervoso. Nada de sofrer. O Palmeiras desfilou pela série B. E fomos bicampeões.

A série B tem enormes vantagens. Primeiro, a gente ganha 70% das partidas, garantido. Além disso, é uma tranquilidade. Nos jogos, só tem a nossa torcida. Os estádios sempre ficam meio vazios. Dá pra levar as crianças sem medo de confusão. A gente grita e o técnico escuta. Tomamos sorvete, conversamos, aproveitamos o calorzinho da tarde. Tem jogo terça e sexta-feira, não atrapalha o fim de semana. E, como o Palmeiras ficou sem campo, passa mais vezes na televisão sem pay per view.

Ir ao jogo na série B é mais ou menos como antigamente, quando eu era criança e meu pai me levava aos estádios pela mão. Os adversários são humildes e sempre sabem que somos os favoritos. Só entram para se defender. Como o Palmeiras da década de 1970, o jogo acontece sempre no campo do adversário. (Quando eu era criança, e torcia pelo Palmeiras de Leão, Leivinha, Luís Pereira, Dudu e Ademir, no intervalo do jogo eu e meu pai mudávamos de lado na arquibancada, porque o jogo também mudava de lado).

Jogar a série B dá nostalgia da velha academia. A partida, fosse com quem fosse, até o Santos de Pelé, era o Palmeiras o tempo todo com a bola no pé, no campo adversário. Precisávamos do goleiro apenas para resolver uns dois ou três contra-ataques. O Leão, com sua camisa azul e o calção bicolor, branco na frente e verde atrás, passava a maior parte do tempo na meia lua, com a mão nas cadeiras, assistindo à partida. Tinha gente que achava que ele devia pagar ingresso. Que importa se agora enfrentamos o ASA de Arapiraca? A sensação é a mesma. E a série B não deixa de ter emoção. Por exemplo, virar o jogo sobre o Payssandu somente aos 46 do segundo tempo certamente é um momento que fica gravado para sempre na memória.

Cheguei a uma conclusão. Acho que o Palmeiras devia cair sempre da série A. Assim, teríamos certeza de sermos campeões ano sim, ano não. Além disso, para o Palmeiras, ser bicampeão é pouco. Temos muito para igualar na série B a glória do passado que a camisa verde acumulou na série principal. A diretoria, espertamente, já entendeu isso. Daí a decisão estratégica de renovar o contrato com o Gilson Kleina.

Cair de novo não deixa de ser um objetivo à altura do nosso time, para o ano do nosso centenário. Começamos a caminhada para o Tri! Queremos a hegemonia da segundona!

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A morte e a morte do seu Alvarino



Três meses atrás, era a informação, que teria vindo de uma tia da minha mulher:

- Seu Alvarino morreu.

Que tristeza sem tamanho. Perguntei de quê. De câncer, disseram.

Ninguém menos indicado para morrer de câncer. Quando penso no câncer, penso na vida contaminada das cidades, nas pessoas amarguradas ou estressadas, nos alimentos perniciosos e no ar mefítico das metrópoles. Todas essas coisas que, para mim, sem nenhuma confirmação médica, ocasionam essas disfunções celulares no ser humano. O seu Alvarino, não. Era um puro, de vida, de alma. Até na cara. Albino, tinha o cabelo e a cara brancos. Um anjo, e sábio, porque já estava meio velho.

Plantava. Tinha um viveiro de mudas, em São Bento do Sapucaí. Foi uma das primeiras pessoas que conheci na cidade, quando lá comprei um sítio, faz já 15 anos, ou mais. Uma alma boa. Uma vida boa. E câncer. Câncer! Aquilo me tirava qualquer confiança na vida.

Alvarino estava sempre entre suas plantas, chapelão na cabeça. Fala mansa. Andava com sua velha Caravan caindo aos pedaços sempre cheia de verde saindo pelas janelas, como se fosse o motorista de um grande vaso enferrujado. Vendeu para mim as plantas que coloquei no sítio com tanto carinho.

Certa vez, me deu uma porção de mudas de árvores.

- Os passarinhos estão vindo para a cidade porque já não tem muita árvore de fruta silvestre no campo - disse ele. Fiquei maravilhado em ver aquele homem com uma preocupação que já escapa ao ser humano corporativizado: os passarinhos. - Te dou de graça, se você plantar.

Paguei, fiz questão de pagar. E plantei. Amora. Pitanga. Pêssego. Um monte de coisa. Tudo para os passarinhos.

Certa vez, a meu pedido, Alvarino foi no meu sítio. Tirou pedras que as crianças tinham enterrado nos vértices de velhas jabuticabeiras. Limpou galhos e troncos do musgo parasita que as cobria. Devagar, com amor e atenção, como quem dá banho em uma criança.

- É preciso tirar sempre essas oportunistas - disse ele. E me alertou: - Deixa sempre também molhado em volta, um pingo, sempre. Jabuticabeira gosta de água.

E as árvores nunca foram tão bem. Naquele ano, deu jabuticaba como nunca. (Os passarinhos comeram mais do que eu).

Aceitei a morte do seu Alvarino como um desses fatos tristes da vida, que nos tira as melhores pessoas. A cidade já não seria a mesma, pensei. A vida já não seria a mesma.

E cerca de um mês depois, já dando aquilo como favas contadas, ao passar pela cidade, cruzei rapidamente com o velho viveiro. Com um rabo de olho, avistei mas não acreditei. Estava lá ele, seu Alvarino. Caminhando ali entre as plantas. No meio de uns empregados.

Primeiro, pisquei os olhos: achei que tinha me enganado. Depois, brequei o carro. Deixei-o encostado de qualquer jeito na calçada e voltei vinte metros, a pé. Entrei no viveiro. Feliz como nunca, diante daquela ressurreição.

- Seu Alvarino! Me disseram que o senhor tinha morrido!

Ele estava magro, de cara chupada, movimentos ainda mais lentos que os de sempre. Confirmou que tivera câncer. Passara maus bocados, num hospital de São José. Mas não tinha morrido, não. Estava vivo. E melhorando.

Foi um milagre: eu exultava. Conversei com ele um pouco, contei que tinha mudado para outro sítio, um pouco mais distante. Precisaria de mais plantas. Queria reflorestar a cabeceira da água. E disse que estava muito satisfeito pelo fato de ele estar ali. Fui embora revigorado.

Muito bem. Digo agora a que vem isto tudo. Hoje, abro o Facebook, três meses depois. E dou com a notícia: "Seu Alvarino morreu".

Pensei: Ah, não. De novo?

- Tem testemunha? - perguntei a minha mulher.

- Três pessoas diferentes já confirmaram.

É duro ter uma tristeza duas vezes. Duas mortes, da mesma pessoa, em tão pouco tempo.

Acho que sempre que passar ali, na estrada, na altura do viveiro, vou dar uma olhadinha. Só pra ter certeza. Ou na esperança de ver o amigo, vivo, de novo. Outro milagre. A morte e a morte do seu Alvarino ainda não me convenceram. O mundo precisa das pessoas boas. E isso devia ser mais forte que esses golpes do destino.

Só me conforta pensar que o Alvarino deixou muita vida por aí. Não só por seus filhos, mas pelo que fez pelos outros e pela natureza. Com aquele seu jeito sem pressa de viver, até mesmo de cobrar a conta, de quem não liga para o tempo. Existe muita coisa que ele literalmente plantou, ou ajudou a plantar. Com seus cabelos brancos, as mãos brancas, as botas sete-léguas, o chapelão de palha.

Essas sementes estão por aí. E, com o tempo, podemos colher.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Beleza interior

“Vem, disse ele, juntando minhas mãos como se me forçasse a uma prece. Desejei de repente sua boca nervosa que me mordiscava, e suas mãos que redesenhavam meu peito e me estrangulavam com meu próprio cabelo. Implorou algo em meu ouvido,algo em um idioma distante, tapando minha boca com seus dedos que borravam meu rosto de suor.”

O trecho acima, extraído da página 99 do romance Onça Preta (Benvirá), da jornalista, escritora e marchand Lucrecia Zappi, não vem de um romance erótico como Cinquenta Tons de Cinza e, apesar de ser uma obra de ficção escrita por uma mulher, não é exatamente um livro feminino. Relato sobre uma estudante de botânica que vai às terras silenciosas e de gente agreste da Chapada Diamantina, Onça Preta é uma viagem para o lugar que mais interessa aos homens: o interior das mulheres, feito de longos silêncios, de relações não resolvidas, de pensamentos dúbios, que constroem uma lógica aparentemente sem direção.

Com um mestrado em escrita criativa pela Universidade de Nova York, sob orientação de E. L. Doctorow, autor de Ragtime, Lucrecia trabalhou no caderno Ilustrada, do jornal Folha de S.Paulo, e hoje mora em Nova York, onde trabalha em uma galeria de arte. Fala várias línguas, casou várias vezes, nasceu em Buenos Aires, mas foi criada em São Paulo, e estabeleceu estranhas raízes no sertão brasileiro. Onça Preta é uma mistura disso tudo, resultado das divagações de uma mulher de nacionalidades múltiplas, em dúvida sobre o passado, envolta pelo presente e suscetível a um futuro em aberto.

É um romance de artista, não apenas no texto cheio de meandros, capazes de lançar luzes sobre o que os homens custam a entender, como nas ilustrações, feitas pela própria autora, que vai pespontando seu texto com imagens supostamente feitas pela personagem em seus cadernos – assim como um Post, um Eckhout ou um Darwin fora de época, a Beatriz, que é o alterego de Lucrecia, registra cenários, insetos, plantas e outros detalhes sutis da história. Incesto, mistério, diálogos secos, rumos nebulosos e um desfecho insólito traduzem o desafio humano: conviver com nós mesmos e entender os outros, sem julgamento e, talvez, sem esperança. (publicado originalmente na PLAYBOY de outubro)

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Em Frankfurt, o Brasil é o velho Brasil de sempre


A homenagem da feira de Frankfurt não significa muito. A esmagadora maioria das pessoas que vão à feira para fazer negócios nem sequer passa pela ala do pavilhão onde está a exposição do país homenageado. A maior parte do público fica sabendo que há um país homenageado somente quando come hotdogs no pátio central entre os oito enormes pavilhões, na hora do almoço. É lá que acontecem os shows, em geral meio naives, dos países convidados. 

Recentemente, tivemos a Argentina, que teve como destaque uma enorme foto de Maradona, e a Islândia, um país de cuja existência pouca gente se dá conta. No ano passado, foi a Nova Zelândia. No palco diante da plateia que fazia a digestão ao sol que combatia o ar gelado, havia um grupo de indígenas maoris que, com seus atabaques, ilustravam o slogan do país - o lugar "onde se trabalha enquanto vocês (todos nós do resto do planeta que não vive no meio do Oceano Pacífico) dormem".

Frankfurt é uma feira de vocação comercial, e não uma festa literária como a de Paraty, mas de todo modo poderia ser aproveitada para fazermos algo que seria muito importante para a cultura brasileira: vender mais os nossos autores no exterior. A rigor, existem somente dois autores brasileiros que se tornaram autores internacionais. Um deles é Jorge Amado, publicado em diversos países, graças a uma rede de amigos comunistas, construída por ele quando ainda estava vivo, e que ajudou a difundir sua obra no passado. O outro grande autor brasileiro aos olhos do mundo é Paulo Coelho, um escritor que, mesmo sem prestígio intelectual no Brasil, conseguiu vender sua obra em 156 países, graças à temática espiritualista e ao trabalho de uma agente lutadora e perspicaz: Mônica Antunes.

É muito pouco.

Em Frankfurt, poderíamos tentar fazer mais, mas a participação brasileira mostra o velho Brasil de sempre: voltado para o próprio umbigo e com as mesmas mazelas. No seu discurso inaugural, o escritor Luiz Ruffato falou um monte de verdades, mas que só interessam a nós, brasileiros. Pelo discurso de Ruffato, passou-se a ideia de que o Brasil é um país com uma história cheia de crueldades, como se isso fosse uma boa razão para nos colocar no Primeiro Mundo, onde também se construiu a riqueza à custa de massacres e da exploração aviltante dos mais pobres.

O vice-presidente Michel Temer, que fez seu discurso em seguida, representando a presidente Dilma e o governo brasileiro, aproveitou a ocasião para bajular a si mesmo, lembrando que, além de deputado constituinte, é poeta bissexto.

Enquanto isso, como um bando de estudantes, um grupo de escritores tentava angariar assinaturas em favor de um manifesto de apoio à greve dos professores. O Brasil foi a Frankfurt para falar mal de si mesmo e mostrar seu provincianismo terceiromundista, num momento em que deveria estar se colocando como o país emergente que tem mais a oferecer.

O Brasil tem graves problemas, é verdade. Enquanto escritores convidados pelo governo fazem seu circuito auto-referente, o país mergulha no momento pior de sua ciclotimia. Há dois anos, o Brasil era um país genial, que crescia a olhos vistos, sem perceber que as reformas estruturais necessárias para garantir um crescimento sustentado estavam sendo deixadas de lado. 

A crise mundial pouco afetou o Brasil, mas começa a aparecer agora, como um efeito retardado. O país ainda investe muito pouco em educação, que é o fator realmente fundamental para um povo sair da miséria.

O governo federal cria uma série de programas fantasiosos para distribuir dinheiro a ONGs e outra entidades, de modo a alimentar uma enorme caixa preta onde a corrupção pode grassar à vontade. Enquanto isso, a classe média urbana, que paga a conta da bandalheira e vive cada vez mais cercada por impostos e taxas, que só acrescentam à carestia, vai às ruas protestar por melhores salários, acompanhada pelos baderneiros de plantão, que gostam de incendiar ônibus e virar carros de polícia, num acintoso desafio ao poder público.

Mudar para o Primeiro Mundo passa, em primeiro lugar, por uma mudança de mentalidade. O Brasil precisa se desprender de seus antigos comportamentos, que vão do provincianismo de seus políticos ao panfletarismo inócuo da sua intelectualidade. O Brasil tem de deixar de ser o país do futebol e do carnaval e se mostrar como um país sério, com uma cultura mais complexa e rica, onde a literatura ocupa um lugar especial, porque é do mundo das ideias que saem as ações que levam a um país melhor.

O autor brasileiro precisa entrar no mercado internacional, o que não depende de Frankfurt, mas de uma mentalidade globalizada. A importância de Frankfurt tem sido a de mostrar o quanto ainda estamos longe disso, e logo no país onde o livro é ainda uma indústria poderosa e até mesmo invejada pelo seu mercado interno. Temos uma enorme riqueza intelectual e pouca capacidade de vender nossa produção ao mundo inteiro, para ter autores importantes, e não apenas no exterior, como aqui dentro.

Ser vendido no mundo hoje é um passo essencial até mesmo para que o autor brasileiro ser vendido no próprio Brasil, um país que consome o produto globalizado, e por essa razão praticamente eliminou os autores nacionais das listas de obras mais vendidas.

Temos hoje um risco, que é a própria morte da cultura brasileira, diante da avalanche cultural estrangeira à qual se tem tão fácil acesso. Precisamos vender o Brasil para o mundo, para poder vendê-lo para o próprio Brasil, sem o quê deixaremos, perigoso castigo, de existir como Nação.


Os maoris em ação em Frankfurt 2012 e a efígie de Maradona: nada de literatura


terça-feira, 1 de outubro de 2013

Os jornalistas viram suco

Vejo no Facebook que uma jornalista, minha conhecida, abriu uma lanchonete. Sei de outros colegas de profissão que andam quebrando a cabeça sobre o que fazer do futuro, agora que o mercado formal de trabalho na imprensa convencional - jornais, revistas e mesmo na internet - encolheu como nunca.

Isso me lembra outra história, em outro momento, quando eu ainda saía da faculdade, em meados dos anos 1980. Na época, o Brasil andava numa crise danada, e não havia mercado para os engenheiros. Eles se formavam, mas não encontravam emprego. Sem dinheiro, o país estava parado: não havia obras, civis ou públicas. E ficou famoso, na época, um bar especializado em sucos naturais, aberto na Avenida Paulista, que se chamava, não por acaso, "O Engenheiro que Virou Suco". Um boteco com um dono altamente qualificado, mas sem espaço no seu próprio mercado. Havia então engenheiros dirigindo táxis e fazendo uma porção de outras coisas que nada tinham a ver com sua formação.

O grande problema dos veículos de mídia é um só. Numa época em que a distribuição das notícias não depende de altos investimentos em papel, gráfica e logística, ficou também fácil copiar e redistribuir conteúdo de qualidade. É inviável para a empresa jornalística fazer o seu trabalho - pagar um jornalista profissional, mandá-lo fazer a reportagem em algum lugar, numa empresa com todos os custos formais - para em cinco minutos perder a exclusividade sobre a notícia, que é imediatamente copiada e reproduzida exaustivamente por todos aqueles que não gastaram nada em sua produção.

Esse dilema da mídia impressa é dividido com a publicidade, que está ficando sem seus veículos habituais e, pior, cada vez mais é deixada de lado por clientes que dão sua informação publicitária - uma forma de notícia - diretamente para o cliente, por meio das ferramentas da rede social.

Mesmo os portais, um serviço de informação que já nasceu supostamente vocacionado para a internet, têm dificuldade de subsistir, com redações grandes e o desafio de atrair anunciantes. A pergunta é: o que será do jornalismo e do jornalista na era virtual?

Existem alguns casos exemplares, que mostram como o jornalismo está mudando, ou para onde pode ir. Glenn Greenwald (foto abaixo), o jornalista que foi o primeiro a dar as notícias sobre a espionagem americana no Brasil, especialmente nos negócios da Petrobras, é um americano que mora no Rio e passa uma parte do seu tempo na praia, passeando com o cachorro ou seu namorado brasileiro. Ele foi escolhido pelo ex-espião Edward Snowden para receber seu dossiê por três razões: 1 - No Brasil, está fora do alcance da pressão americana; 2 - É um vigilante permanente do governo americano; 3 - Seu blog está abrigado sob o guarda-chuva de um jornal de prestígio: o The Guardian.



O que se pode deduzir do jornalista mais bem sucedido dos últimos tempos é que existe uma tendência maior de os jornais serem aglutinadores de jornalistas espalhados pelo mundo, que não ganharão um salário, e sim um "frila fixo" para estarem sob o abrigo de uma marca de imprensa. Os custos caem para as empresas, que deixam de arcar com uma série de despesas. E os jornalistas não ficam à míngua. Os interesses são os mesmos: o jornal garante conteúdo exclusivo (pelo menos por alguns minutos) e de qualidade, além de atrair leitores com profissionais de renome. E os jornalistas ganham mais leitores trazidos pelo tráfego do jornal, que funcionaria assim como uma espécie de Hub de notícias.

No caso Snowden, o Guardian chegou a investir na reportagem - pagou uma passagem para Glenn encontrar-se com sua fonte de informação na Ásia. Quer dizer que o modelo do jornalismo mudou, mas o jeito como se faz o bom jornalismo, não. É possível ainda fazer bom jornalismo nos moldes atuais. E os investimentos necessários para tê-lo.

Claro que o bom jornalismo é e continuará sendo sempre necessário. As pessoas já perceberam que a internet é um mar reprodutor de boatos e erros grosseiros de informação e que informação qualificada custa - é um serviço essencial á sociedade pelo qual temos de pagar. Porém, a transição do modelo de papel, que vem encolhendo a olhos vistos, e esse futuro em um estágio auto-sustentável ainda pode demorar a acontecer. Vender suco talvez não seja o ideal de vida para um jornalista, mas talvez não existam muitos outros meios para aqueles que não se adaptarem ao novo manejo da profissão.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Escreva Bem, Pense Melhor em setembro na Vila

O curso Escreva Bem, Pense Melhor, que dei em janeiro na Casa do Saber, estará de volta em setembro, agora no auditório da Livraria da Vila do Shopping Pátio Higienópolis, em São Paulo.

Serão 6 encontros, às terças e quintas-feiras, das 20:00 às 21:30, a partir do dia 17 de setembro. As inscrições podem ser feitas em qualquer Loja da Vila. Ou pelo e-mail inscricoes@livrariadavila.com.br.Custará 480 reais por pessoa.

O curso procura oferecer uma maior capacitação para a confecção de textos gramaticalmente corretos, interessantes e importantes pelo seu conteúdo. Apresenta também mecanismos para a reflexão, o exercício da criatividade e a construção de um estilo pessoal, que podem ser úteis tanto para a redação quanto para a vida pessoal e profissional.

Mais do que treinar a escrita, o curso procura desenvolver o pensamento organizado, que leva a uma capacidade maior de expressão, com clareza, objetividade, persuasão e criatividade.


O programa:


Dia 17: Como escrever bem: clareza, interesse, relevância. Abertura, desenvolvimento e fecho; encadeamento e lógica.

Dia 19: Normas estilísticas: texto e linguagem falada; estilo e individualidade. Regras de estilo.

Dia 24. A escrita, autoanálise e desenvolvimento pessoal: a necessidade de escrever. Escrita, emoção e autoanálise. “Inspiração”: os elementos da criação. O texto como expressão individual: diário, blog, autobiografia, memórias.

Dia 26. Estudo de caso. Identificação da ideia principal, estruturação do texto e resultado final.

Dia 1 de outubro: O texto informativo: conteúdo, informação e notícia. Credibilidade e ética. As formas literárias.

Dia 3: Comunicação corporativa: a necessidade da empresa. O autor no espelho: a relação entre a palavra e seu dono.


O curso na Casa do Saber foi ótimo, com um número bem maior de participantes do que se esperava, e uma excelente participação de todos até o final. Espero repetir!

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Copacabana na Amazon e um momento vital para o mercado do livro



A partir de hoje, começam a entrar na Amazon os livros com o selo Copacabana, em português e inglês, para venda no Brasil e no mundo inteiro. O primeiro título em inglês é The Man Who Spoke With God, lançado em português no mercado brasileiro em 2003, onde teve duas edições, e também editado por duas vezes em Portugal. A partir de agora, será possível colocar obras de autores brasileiros em português e inglês no mercado mundial, com a produção de livros exclusivamente digitais. Uma iniciativa que chega num momento vital para o mercado do livro.

Utilizei meus próprios livros de backlist para abrir o que acho ser um novo modelo editorial. Ninguém sabe como serão as editoras no futuro, mas os elementos estão todos sobre a mesa para fazermos nossas apostas. A do selo Copacabana vem de uma visão de como o mercado será daqui em diante, com o crescimento do consumo de obras digitais. Ela é resultado da minha experiência nos três anos em que dirigi o selo Benvirá, na Editora Saraiva, que deixei em março para levar isto adiante. A meu ver, em um ou dois anos não fará mais sentido comprar um livro impresso a 35 reais, e que na maior parte das vezes terá de vir pelo correio, por não estar disponível na livraria. Será muito mais lógico clicar no nosso kindle, ipad ou outro dispositivo móvel com um aplicativo e comprar o mesmo livro a 9,90 e começar a ler o texto imediatamente.

A nova lógica do mercado é simples assim. Tão simples, que me parece inescapável. A operação de imprimir livros, administrar estoques e enviar pacotes de obras impressas a praças distantes certamente logo será algo economicamente inviável. Essa é a razão da debacle das livrarias no Estados Unidos, onde o mercado digital foi pioneiro e se torna cada vez mais importante. Livrarias terão de fazer eventos ou vender outros produtos - como o próprio Kindle - para sobreviver. Isto já está acontecendo. Na Saraiva, por exemplo, com exceção dos livros mais vendidos no mês, há pouca variedade do que escolher. Quem quiser um livro diferente do que está nas listas certamente vai ter que esperar por uma encomenda junto à editora, feita pela livraria, ou diretamente de casa, entrando pelo computador na pontocom.

As grandes editoras internacionais certamente já estão vendo uma mudança enorme na mecânica do mercado. Elas têm procurado adiar esse momento como podem e se preparam com fusões que permitem a redução de custos e a acumulação de conteúdo, mas isso não resolve o essencial, que é a mudança de paradigma que marca a extinção de toda uma indústria, como já aconteceu com a fonográfica. Você pode reduzir os custos, mas não tanto quanto é necessário. E a criação de catálogos enormes com contratos antigos, baseados na era do livro impresso, pode significar apenas que você terá um problema ainda maior para administrar.

Hoje, os editores brasileiros na maioria das vezes pagam um bom dinheiro de adiantamento pelos direitos de obras em inglês e investem na sua tradução para publicar o livro no mercado menor (português), com os custos do livro impresso. Ao criar o Copacabana, minha ideia foi fazer o contrário. Investir na tradução de obras produzidas no mercado menor e vender a obra para o mercado maior, o que é permitido no formato digital, se você abrir mão do desejo de publicar livros impressos (o que no futuro, a meu ver, acontecerá de qualquer maneira). No limite desse cenário, que tem o mesmo sentido de tudo o que acontece no meio digital, não fará mais sentido vender direitos para publicar livros nos territórios. Cada editor publicará seus livros na rede mundial. O mercado de direitos autorais entre países estaria, dessa forma, com os dias contados.

Por que as editoras já não fazem livros exclusivamente digitais? Porque elas possuem custos de operação muito altos desde que publicam livros impressos e têm administrar seu vasto catálogo. Como a receita com livros digitais ainda é pequena, a combinação de custos altos e receita menor com a falência do mercado do livro impresso significa a morte. O desafio de sobrevivência para as editoras convencionais é muito grande. Além do encarecimento do livro impresso, derivado de vendas em menor escala, diante de livros digitais a preços bem menores e facilidades maiores, os editores terão que lidar as questões de direitos autorais. Os contratos com os autores vencem a cada período de quatro a sete anos. Breve haverá um enorme esforço de renegociação para a manutenção do catálogo, já que os autores, com a possibildiade de ir para o mercado digital em novas condições, irão querer uma fatia maior dos ganhos à medida em que os contratos forem vencendo. Sobretudo squando os preços forem abaixo, levados pelo emrcado digital, como já acontece no mercado americano.

Enquanto os editores precisam lidar com a relação de preços entre livro impresso e livro digital, uma editora exclusivamente digital é livre para publicar seus livros a preços baixos. E, na internet, eles precisam ser baixos. Não por conta da concorrência, mas da pirataria, que no meio digital é muito fácil. Ao contrário do que se acredita, os piratas não gostam de entregar nada de graça, porque para piratear, eles também ter de trabalhar. o que eles fazem é vender a mesma coisa que o editor (comoa contecia com filmes, por exemplo) a preços muito mais baixos. A única forma de desestimular esse tipo de pirataria eé vender também o seu produto a um preço muito baixo.

Existem poucos autores com conhecimento e paciência para se autopublicarem, uma das possibilidades apontadas como tendência no mercado digital. Eu mesmo procurei ver como a coisa funcionava no smashwords, utilizando um de meus romances como piloto. Todo o processo de edição do livro, que é automatizado pelo sistema, exige um tipo de paciência que um autor normalmente não tem. o pior, porém, não é isso. No smashwords, assim como em outros serviços do gênero, não há garantia de que seu livro, uma vez finalizado, será publicado na Amazon ou algum outro vendedor importante - há uma seleção interna dos títulos. E, na hora de fazer a transferência bancária do pagamento, há uma incidência de imposto tão alta que equivale ao dinheiro que um autor normalmente deixa com uma editora. Ou seja, é muito trabalho sem o prestígio de uma editora nem um ganho financeiro importante.

Acredito que o futuro das editoras exige que elas sejam muito leves (nos custos), ágeis (na capacidade de produzir títulos instantâneos) e capazes de negociar com autores a longo prazo, para eliminar a constante renegociação de contratos. Não é fácil um editor exclusivamente digital entrar nos grandes vendedores, como a Saraiva, a Cultura, o Google e a Amazon, onde a Copacabana está. Nem um autror fazer isso sozinho. A terceira via é o selo Copacabana. Por isso, acredito que essa seja uma boa fórmula para ser tentada. E o tempo mostrará sua validade.


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Por que Bezos comprou o Post?



Jeff Bezos, dono da Amazon, comprou o Washington Post, um dos mais tradicionais jornais americanos. Pagou 250 milhões de dólares - pouco, se pensarmos no que valiam as empresas de mídia até pouco tempo atrás. Muito, talvez, para um modelo que vai tendo cada vez mais dificuldades com o avanço do meio digital sobre o impresso e suas consequências. Porém, não é o valor que chama a atenção nesse negócio. Por que Bezos, o visionário que entendeu antes de todo mundo o negócio de cauda longa na internet, e que demoliu o mercado convencional do livro e das livrarias no mercado americano com seu site de compras pela internet e o Kindle, compraria um velho jornal - e como pessoa física? Eis a questão.

Ao anunciar o negócio, os donos do Post, um jornalão dirigido há 80 anos pela mesma família, e que teve seus dias de glória décadas atrás, quando suas reportagens derrubaram o presidente Nixon, disseram que com a redução de custos sabiam que podiam manter o jornal por longo tempo. Porém, não viam como fazê-lo crescer novamente. E que, com Bezos, um ícone da imprensa americana teria maiores possibilidades. Ou seja, teria futuro. Um extraordinário realismo, ou desapego, demonstração de humildade? Talvez tenha sido, mais que tudo, a sensação de impotência de quem não é capaz de enxergar mais à frente.

Sabemos que a imprensa não pode nem vai desaparecer. A questão é como ela se amoldará a novos tempos e uma nova maneira de pensar. Uma era em que os leitores respondem ao veículo em tempo real, em que se pode saber o que eles querem realmente saber, além do que o editor quer dizer, e onde se pode ter acesso imediato à informação. Uma era em que o alcance de uma publicação não depende de haver uma banca de jornal nas redondezas, ou de um sistema de assinatura em que folhas de papel chegam pelo correio. Tudo isso está virando passado rapidamente.

Bezos deve ver um futuro para a imprensa, algo que não acontece com os editores tradicionais, muito acostumados aos velhos paradigmas. O próprio nome (imprensa) já não faz muito sentido para designar o negócio da informação. Mas ele não mudou muito em sua essência e não deverá mudar.

Se os antigos editores têm algo a aprender com os tycoons da era digital, esses também podem aproveitar o que o velho mundo tem a ensinar. Que a imprensa existe. Que ela depende de credibilidade, algo que o Post tem de sobra. Que a credibilidade depende da separação entre igreja e Estado - conteúdo editorial e publicidade. Que a informação gabaritada é essencial, formadora de opinião pública e um pilar da democracia e da própria sociedade onde vivemos. O que os velhos editores não sabem, apenas, é como financiar o mesmo serviço num ambiente em que a publicidade convencional se encontra em queda, o meio papel vai ficando caro, e as receitas são insuficientes para manter os mesmos custos de produção que davam no veículo impresso.

É muito provável que Bezos tenha uma ideia do que fazer a respeito, caso contrário não compraria o Post - seria como comprar uma fábrica de discos de vinil. Todos os editores buscam as respostas que ele provavelmente acha que tem na cabeça e devem estar ansiosos para ver o que um pioneiro do novo mundo fará com um negócio tido como decadente.

A primeira coisa que Bezos fez foi convidar os donos e principais editores do Post para continuar em suas cadeiras. Ele sabe que a imprensa depende ainda da mesma coisa: editores e repórteres com credibilidade. Foi isso o que ele comprou. E os próprios editores esperam que ele faça o negócio novamente crescer no ambiente onde ele enxerga coisas que eles não estão enxergando.

Ninguém tem a resposta muito certa sobre qual modelo fará a imprensa se reafirmar. Por mais que tenha uma visão a respeito, Bezos deve saber que não é mais do que uma visão. Só temos certeza sobre o que vai acontecer depois que tudo acontece e temos na mão o resultado. O mundo digital é muito mutante. Porém, alguns caminhos estão delineados.

É preciso manter a separação entre igreja e estado, mesmo num meio em que o dinheiro parece vir da possibilidade de monetizar tudo aquilo que se clica dentro de um computador. A saída certaemnte está na cobrança pelo serviço, um modelo de assinaturas que não é diferente de quando foram criadas as assinaturas para jornais e revistas, o que aconteceu no Barsil cerca de 40 anos atrás.

Nessa época, os editores se deparavam com as mesmas questões de hoje, no mercado impresso. Como ter uma receita maior e estável de publicidade? Garantindo um público permanente, ou seja, a circulação paga. Para isso, era preciso inventar um sistema sólido de assinaturas, o que não era um problema técnico, mas psicossocial: era preciso convencer as pessoas de que elas precisam pagar antes pela assinatura de um serviço que receberiam ao longo do tempo. E isso funcionou para revistas e jornais impressos, que chegavam em casa pelo correio.

Hoje o dilema é o mesmo, só que numa mídia diferente. É preciso convencer as pessoas de que, para ter um serviço de informação confiável, num ambiente cheio de informações inidôneas como a internet, o consumidor terá de pagar. Provavelmente os custos das empresas terão de se adequar a um novo patamar de receitas. E os publishers deverão ter conteúdo exclusivo e importante para que sua carteira de assinantes se mantenha ou venha a crescer num ambiente em que, em compensação, muito mais gente terá acesso à informação.

No Brasil, os jornais - mesmo os ditos ''nacionais'' - sempre foram regionais. Folha de S. Paulo, por exemplo, sempre circulou em grande parte em São Paulo; O Globo e Jornal do Brasil são publicações do Rio de Janeiro. Na internet, a possibilidade de ter um assinante em qualquer lugar do Brasil cresce exponencialmente para os veículos tradicionais. Em tese, isso pode compensar uma perda de receita com o declínio da venda avulsa em bancas e um valor mais baixo para o serviço de assinatura. E a publicidade, ainda que num patamar de valores também mais baixo, pode voltar.

Será certamente uma transição complicada para veículos tradicionais que ainda têm de bancar o papel e uma grande oportunidade para quem está começando do zero. Com certeza, Bezos quer estar lá do outro lado, depois que essa fase de transição acabar.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Uma lição que é um soco na cara


Não é à toa que se diz que determinadas lições são como um soco na cara.

O brasileiro Anderson Silva, nocauteado pelo americano Chris Weidman em sua mais recente luta pelo MMA, deve conhecer agora o valor do ditado. Recebeu literalmente um direto no queixo.

Silva protagonizou um dos maiores papelões da história. Ao lutar com Weidman, e fazer o que fez - baixar a guarda, provocar e fazer pouco do adversário - talvez quisesse imitar Muhammad Ali, um grande lutador, mas que fazia a mesma coisa. Só que Silva, diferente de Ali, tomou um golpe certeiro que o mandou à lona já desacordado.

Muhammad Ali levou tantos golpes na cabeça que ficou precocemente incapaz de falar e se mover direito - logo ele, que dizia, no seu estilo falastrão, picar como uma abelha e se mover como a borboleta. Ao menosprezar o adversário, o falastrão Silva mostrou uma empáfia que é mais comum ver em americanos que em brasileiros. E levou um nocaute exemplar.

Nessa noite, Weidman foi mais brasileiro que o próprio Silva. Enquanto o brasileiro recebeu 1,4 milhão de reais para baixar os braços e dançar, antes de ir à lona, a bolsa do americano para lutar foi de cerca de 54 mil reais. Pelo nocaute, Weidman recebeu um bônus de mais 113 mil reais. Com o dinheiro, disse que pretende comprar uma casa. A sua, em Nova York, virou um esgoto e foi completamente perdida com a passagem do furacão Sandy, em 2012.

Transformado em estrela, Silva esqueceu de onde ele vem - negro, brasileiro, e lutador de vale tudo por falta de opção. Weidman é branco, mas lutou como negro, como pobre, como sem-teto. O seu braço tatuado acertou não apenas Silva, mas tudo aquilo que ele passou a representar: o rico, o soberbo, o anti-ídolo de um espetáculo que não tem muito de esporte. É um show sanguinolento que nesse caso, excepcionalmente, deu um exemplo útil.

Um lição, repito, pode ser um soco na cara. E há momentos em que um soco na cara pode ser uma boa lição.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Eu e o Thales de "Amor à Vida"

O dramaturgo Walcyr Carrasco resolveu botar como protagonista da sua novela das nove na TV Globo um certo "Thales", assim, com H mesmo, e "aspirante" a escritor. Na novela, Thales se apaixona por uma moça rica, que está com câncer. E segue o drama. Qualquer semelhança seria mera coincidência?

Walcyr é um amigo de longa data. Trabalhamos juntos, quando eu era editor da VIP, no final dos anos 1990. Foi ele quem assinou a apresentação de meu primeiro romance, Filhos da Terra, em 1998. E me indicou para a Editora Objetiva, onde tenho publicado meu mais recente romance, Amor e Tempestade. Walcyr sabe que eu já tive mulher e namorada ricas. Certa vez, diante de minhas dificuldades de lidar com certos aspectos do relacionamento com os ultra-ricos, me recomendou a leitura de um livro: Suave é a Noite, de Scott Fitzgerald. Que eu recomendo também, como um grande livro, ou para quem quer ter uma pista de onde, pode ser, irá a novela.


Não posso dizer que sou o personagem do Walcyr. Talvez nem ele mesmo possa dizer. É indefinível, muitas vezes, o limite entre a ficção e a realidade na imaginação de um autor. Agradeço no entanto a homenagem do nome e que sua inspiração tenha feito, na cabeça de seu criador, o personagem ser o herói da história, e não um bandido ou um vagabundo qualquer. Quanto á namorada com câncer, me lembra mais a história de outro amigo que eu e Walcyr temos em comum. Este amigo conheceu a mulher dele na mesma noite em que ela descobriu que tinha a doença. Antes um namorador contumaz, ele permaneceu fiel ao relacionamento. Um mês depois de ser considerada curada, sua mulher ficou grávida. O menino hoje tem dois anos, e recentemente eles fizeram sua primeira viagem juntos de férias, depois de quatro anos de relacionamento. Um final extraordinário, melhor do que qualquer ficcionista poderia imaginar. Outra pista aí de onde pode ir o folhetim global.

O escritor dá medo nas pessoas ao seu redor. Medo porque ele processa tudo o que vê e utiliza as pessoas mais próximas, muitas vezes, como material de trabalho. Muitas pessoas receiam o que possa sair de sua cabeça, ou melhor, de seu computador. Uma vez, um ex-cunhado meu, juiz de Direito, me perguntou como as pessoas se defendiam de escritores, depois de observar que eu "acertava muitas contas" naquilo que escrevia. Eu disse, simplesmente: aceitando.

É fácil falar isso, para um autor, mas nem tanto quanto se está do outro lado. O escritor pode também ser "vítima" de um amigo ou colega. Essa é a razão pela qual escritores em geral não se dão muito bem entre si - só se interessam pelo que eles próprios estão escrevendo, e evitam o semelhante, justamente por conhecerem o processo de trabalho. Preferem ser personagens de si mesmos. Não é meu caso. Tenho em Walcyr um grande amigo, não importa o que escreva. Torço para que a novela continue fazendo muito sucesso. E que o Thales de Amor À Vida tenha a sorte, como eu, de um dia ser feliz no amor e, também, na literatura.