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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A lição de Eva: uma releitura do papel na mãe da Humanidade e das mulheres a partir da Bíblia


Ela sempre foi vista como um mero subproduto de Adão e a pecadora que levou o homem à perdição. Agora, a mitológica mãe da Humanidade é revista como uma mulher capaz de assumir riscos, que defende o direito ao conhecimento e é a primeira entre as mulheres da Bíblia a desafiar, em nome da liberdade, a autoridade - não só a masculina como a do próprio Deus.


Por muito tempo, a imagem de Eva foi associada ao pecado, fundamento de antigas tradições na qual as mulheres, ao mesmo tempo em que são o esteio da família, foram também o seu fator de desestabilização - a marca da tentação, simbolizada pelo seu papel no pecado original. Eva é quem leva o inocente Adão a comer o Fruto Proibido. Funda uma existência de busca pelo conhecimento e o prazer que nem a pena ? perder o direito à imortalidade ? é capaz de desestimular. Traz a dor e condena a Humanidade movida pelo mais fútil dos motivos: a curiosidade. Inaugurava a galeria de mulheres bíblicas vistas como rebeldes, subversivas e pecadoras.

Vivendo num ambiente patriarcal, onde o poder masculino era absoluto e ao qual não havia outra saída exceto a submissão, elas tinham liberdade somente quando desafiavam o poder masculino por artes há muito associadas ao "sexo frágil": a sedução e a dissimulação.

Bem, tudo isto está mudando. Novos estudos da Bíblia têm feito uma uma leitura mais contemporânea do mito fundador da sociedade ocidental e da sua protagonista, tão polêmica quanto fundamental no nosso imaginário. Segundo essa revisão, a mãe literalmente de toda a civilização é de fato a personagem quem lança a pedra fundamental da Humanidade, por seu desejo de adquirir conhecimento, renunciando ao paraíso e à promessa de imortalidade em defesa de sua auto-determinação e pela capacidade de, também como Deus, poder dar a vida.

A antiga pecadora agora surge como a uma mulher modelar, capaz de desafiar as convenções, assumir riscos e escolher a busca da sabedoria e de uma vida de intimidade plena com seu homem - matriz de uma tradição monogâmica que perdura na sociedade ocidental até os dias de hoje. agora é o elemento de tangência que induz o homem a buscar a sabedoria, não apenas pelo conhecimento do sexo, mas num sentido mais amplo. E que inspira o casal a ter coragem de lutar pelo seu próprio destino, mesmo contra os desígnios divinos.

- Eva é uma mulher que assume riscos, em seu nome e do companheiro-, diz a psicanalista Naomi Rosenblatt, autora de After the Apple: Women in the Bible: Timeless Stories of Love, Lust, and Longing.

Os escolásticos hoje apontam que tal visão se deve a antigos preconceitos e atribuem a associação entre a mulher e o mal ou o pecado na Bíblia muito mais à interpretações baseadas em pontos de vista arcaicos, difundidos por igrejas ou pela transmissão do conhecimento popular, que propriamente pelo texto original. Na Bíblia, de fato, com raras exceções as mulheres recebem algum castigo. A maioria revolta-se contra algum tipo de opressão e a autoridade masculina, quando ela é injusta ou insuficiente para preservar a família. Ao contrário, muitas vezes elas são recompensadas. Agora, o que se destaca são outros aspectos também contidos no texto bíblico. Em boa parte, eles são ressaltados pelo fato de que hoje há muitas mulheres estudiosas dos textos bíblicos, que chamam a atenção para aspectos bem mais complexos dos personagens femininos.

Por essa leitura, as mulheres da Bíblia já se pareciam em muito com as mulheres contemporâneas, assim como os relacionamentos têm muita semelhança com os da sociedade ocidental de hoje. Assim como nós, os personagens da Bíblia são profundamente humanos, com suas lutas, dificuldades, forças e fraquezas - e as mulheres não são diferentes. 

Mesmo sendo menos numerosas na Bíblia que os homens, elas têm sempre um papel muito forte. Tentam acertar em seus relacionamentos e são os principais personagens das histórias das quais tomam parte. São as primeiras a questionar a autoridade, a assumir riscos, quebrar regras do poder constituído. As mulheres da Bíblia mostram-se também defensoras ferrenhas da família, cuja descendência procuram preservar a qualquer preço, num instinto natural de preservação da espécie.

A jovem Eva não apenas toma a iniciativa, conduzindo Adão ao fruto proibido, como desafia o poder divino. Ao deixar o paraíso, desdenha aquilo que deixa para trás, satisfeita por ganhar o livre arbítrio, mesmo ao preço de sua recém-adquirida mortalidade. Sarah coloca outra mulher na cama de Abraão, para que dê ao marido o filho que ela própria não pode lhe proporcionar. (Mais tarde, é premiada com um bebê mesmo fora da idade em que é possível a concepção). Séfora impede Moisés de sair de casa, destruindo a família, da forma mais radical: toma nos braços o bebê do casal, Gérsom, e ameaça passar-lhe a faca, caso o marido a abandone.

Por trás das aparências da sociedade patriarcal, revela-se o exercício de uma grande autoridade e de uma infuência decisiva no curso dos acontecimentos. Hoje, são mais valorizadas personagens bíblicas como Débora, uma espécie de Anita Garibaldi da antiguidade, que lidera os exércitos hebreus em batalha. Ou Rahab, a prostituta que auxilia os espiões de Josué a escapar de Jericó, correndo risco de pagar com a vida. São mulheres inteligentes, capazes de tomar a iniciativa, que se negam a curvar-se diante das circunstâncias mais difíceis e nas quais o ambiente patriarcalista não deixou qualquer problema de auto-estima.

Tanto o Velho como o Novo Testamentos, os personagens bíblicos fazem parte de uma sociedade predominantemente masculina em que a poligamia é amplamente aceita. Com a história de Adão e Eva, mito fundador da família ocidental contemporânea, porém, a Bíblia estabelece a monogamia não como um padrão imposto por Deus, mas a fórmula menos problemática para a base familiar. Essa ideia é reforçada pelas histórias a seguir, nas quais os casamentos múltiplos dão errado ou causam inúmeros problemas. A rivalidade de Rachel e Lea, duas irmãs casadas com Jacó, assim como a das mulheres de Elkaná e as tribulações de Davi com suas numerosas esposas apontam para a vida caótica de núcleos familiares cheios de dissenções, traições e dissabores.

Enquanto isso, o casamento de Abraão e Sarah, em que pese a disposição da mulher de ceder seu lugar para garantir a procriação, é um relacionamento modelar, assim como o de Rebeca e Isaac. No Gênesis, ao criar a mulher, deus não imaginou mais alguém ao lado de Adão, exceto Eva. Ao ver Adão solitário entre os seres que habitam o Jardim do Éden, Deus pensa em lhe criar uma companheira. Tal combinação garante intimidade, companheirismo e afeto mútuo que antes só encontrava paralelo no relacionamento entre o homem e Deus.

Sexo não é assunto proibido na Bíblia. Dalila arrasta Sansão pela perdição atraindo-o claramente com seus favores entre os lençóis. Este novo tratamento desmistifica a idéia de que os personagens da Bíblia são santos ou sagrados, e também a de que são essencialmente pecadores. São seres humanos feitos à imagem e semelhança de todos os mortais, com seus erros e acertos, dilemas e certezas, medos e coragem. Desde que Eva decidiu questionar as regras do Jardim do Éden, desafiando a Deus para adquirir liberdade, reivindicar seu direito ao conhecimento e poder também criar a vida, o ser humano não se modificou essencialmente ? e mostra-se que a mulher já tinha muito do livre arbítrio, da importância e da independência que possui na sociedade ocidental contemporânea.

Ponto de partida para a história do homem, o amor entre Adão e Eva é feito de união contra as dificuldades, escolha da liberdade, desejo e amor. A ambos é oferecido o Paraíso por um Deus todo-poderoso que cria o ambiente perfeito não apenas para existir como para ser maculado: um homem, uma mulher, um jardim luxuriante, a serpente e o fruto proibido. É uma parábola sobre o livre arbítrio, a capacidade humana de escolher, a responsabilidade assumida pelas decisões e a necessidade de arcar com suas consequências.

Ao contrário da noção de que a Bíblia associa a mulher ao sexo e o pecado, o surgimento de Eva a princípio não tem qualquer ligação com a relação carnal. No texto bíblico, não é Adão quem pede por uma companhia. O próprio Deus conclui que aquela criatura solitária necessita de um interlocutor para sair da solidão. "Não é bom que o homem esteja só", diz ele. "Vou fazer uma companheira que lhe corresponda." Em Eva, "carne da sua carne", Adão passa a ter alguém que fala e ri como ele, diferente nas formas, mas igual moral e espiritualmente. A Bíblia lança o companheirismo como o vínculo inicial e predominante da relação entre homem e mulher. O desejo sexual aparece somente depois. O bem primordial do relacionamento é a cumplicidade.

O nascimento de Eva tem natureza simbólica, pois contraria a ordem natural das coisas, já que todos os homens nascem da mulher, e não ao contrário: "Deus fez cair torpor sobre o homem e ele dormiu. Tomou então uma de suas costelas e fez crescer carne em torno dela. Depois, da costela que tirara ao homem, modelou uma mulher." 

Os estudos mais recentes da Bíblia questionam a tradução que deu origem à versão corrente da Bíblia. Linguistas apontam que a palavra hebraica ''tzela'' é usualmente traduzida como "costela", mas tem o sentido de "lado". A ideia de que a mulher foi criada ?ao lado? do homem?, como se fossem um mesmo corpo, integrante de um mesmo corpo, e não um mero subproduto, é reforçada logo adiante: ''por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe e se une a sua mulher; assim eles se tornam uma só carne.?

No Jardim do Éden, aperfeiçoado com sua nova habitante, há apenas uma regra de ouro. A liberdade de homem e mulher é limitada: Deus avisa que que nem o homem ou a mulher devem tocar no fruto da Árvore do Conhecimento, no centro do jardim. Mais uma vez, os linguistas buscam dirimir as controvérsias sobre essa passagem bíblica. A palavra hebraica para conhecimento (da'at) é a mesma utilizada para o conhecimento sexual. Dessa maneira, implica-se que os tradutores iniciais do texto se ativeram à implicação sexual do termo, mas cuja redação original poderia utilizar a palavra no sentido do conhecimento mais amplo.

Entra então em cena a serpente, o agente perturbador da ordem, símbolo fálico e ente maléfico, definido na Bíblia como o ?mais astuto do animais?. O Criador garante que quem comer do fruto proibido da Árvore do Conhecimento pagará com a vida, penalidade máxima para a transgressão de uma lei feita para ser quebrada. A serpente, porém, é mais exata, ao dizer a Eva que ela "não morrerá, mas Deus sabe que, no dia em que dela (da árvore) comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal".

Na tradição cristã, Eva leva Adão a cometer o "Pecado Original", simbolizado pela degustação do fruto proibido. No texto bíblico, ela é a primeira a conversar com a serpente e avaliar os benefícios do que o réptil lhe propõe. ?A mulher viu que a árvore era boa no apetite e formosa à vista e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento?, diz o texto. Porém, quando come do Fruto Proibido, Adão está ao lado de Eva, num ato que pressupõe uma reflexão anterior e a concordância do consorte. Homem e mulher exercem a cumplicidade para a qual Deus os criou voltando-se contra a sua determinação.

Na interpretação mais atual do mito, Eva é atraída pela serpente não por ser mais frágil ou o veículo mais suscetível do pecado, mas porque foi desenhada para perpetuar a espécie. Esse desenho é biológico e mental. A compulsão de Eva pelo conhecimento é maior que o do homem porque faz parte de seu papel. A ela cabe a decisão de transgredir o paraíso, não por luxúria, mas pelo fato de carregar a maior responsabilidade. É ela a responsável pela continuidade da espécie. É ela que fica grávida, amamenta e assume as principais responsabilidades da procriação e, por conseguinte, da família. Toma decisões mais calculadas e por isso é também mais convicta. Sua força vem daí: a necessidade de procriação supera o dilema moral.

O efeito do Fruto Proibido é imediato: Adão e Eva cobrem-se de folhas, envergonhados de sua nudez. Vergonha, desejo, culpa e uma certa noção de privacidade desvelam-se repentinamente. Adão esconde-se. Localizado pelo Criador e instado a dar explicações, como um aluno malcomportado, numa atitude pouco nobre ele dedura a mulher. Eva justifica-se com a sedução da serpente. São então todos condenados, a começar pelo réptil, amaldiçoado e condenado a rastejar eternamente. A Eva, Deus impõe as dores do parte e a submissão ao marido. Ao homem, a condenação divina é o trabalho: "Com o suor do teu rosto comerás o teu pão até que retornes ao solo, pois del foste tirado. Pois tu és pó, e ao pó voltarás".

Apesar do constrangimento pelo ato de rebeldia, Adão e Eva em nenhum momento manifestam arrependimento. Está estabelecida a independência do ser humano, reafirmado o seu livre-arbítrio e assinalado que ele tem de buscar a felicidade por seus próprios meios. Não é, ao contrário da voz corrente, uma opção pelo pecado, palavra que em nenhum momento aparece na história, muito embora a famosa refeição tenha sido posteriormente rotulada como o Pecado Original.

Nem essa palavra é utilizada para descrever o comportamento de Eva, n sentido de ruim ou pecaminoso. No Gênesis, em vez de pecado, ou de um grande erro, a decisão de escolher o conhecimento, mesmo sob a pena da mortalidade, é uma opção. A noção de pecado somente surge na Bíblia vez pouco mais tarde, quando Caim mata seu irmão Abel. Os filhos de Eva serão os protagonistas de um crime e da primeira tragédia humana.

Anátema para seguidas gerações de mulheres, a frase bíblica em que Eva é condenada a submeter-se ao homem - "teu desejo te impelirá ao teu marido e ele a dominará" -? teve implicações reais, na medida em que a leitura ao pé da letra convinha a padrões estabelecidos. Não é mais assim. Para os estudiosos da Bíblia, a sentença não se sobrepõe ao fato de que o relacionamento entre Adão e Eva é de colaboração, e não de dominação. Por sua vez, o homem não é apenas o único provedor da família por meio do trabalho.

Não existe nenhum registro na Bíblia de como Adão e Eva reagiram à condenação divina, mas não significa que houve concordância com a pena. Embora tenham se tornados mortais, condenados a voltarem "ao pó", o Gênesis trata a saída de Adão e Eva do Paraíso como um renascimento. Ele deixa de acusar a mulher. Chama-a pela primeira vez de Eva pois ela seria daria início à linhagem de todos os seres humanos - Havvah, em hebreu, seria uma derivação hayah, que significa "viver". 

Está fundado o arquétipo de todas as mulheres em todos os tempos: um ser destinado à criação. Não parece a reação de dois condenados à morte, mas de um casal reunido na missão de viver juntos e realizar uma obra segundo seus próprios desígnios.

Eva veste então a primeira peça da moda feminina na história da Humanidade, com a ajuda do próprio Deus que a condenou. Primeiro estilista da tradução escrita, o Criador substitui suas precárias folhas de parreira por um conjuntinho de peles costuradas. Num gesto de complacência com seus rebeldes, a roupa servirá para proteger também as crianças da intempérie fora do Éden, definido na Bíblia como um paraíso terrestre em algum lugar do "oriente". As roupas ganham também o sentido histórico do início da civilização, entendida como todo produto do artifício humano para sua sobrevivência.

Na saída do Éden, surge outra árvore mencionada no texto bíblico, porém sem nenhuma função até esse exato instante. No plural majestático, que mantém a natureza divina do ser humano, ou reduz a divindade a uma criação do próprio homem, Deus declara: ''Se o homem agora já é como um de nós, versado no bem e no mal, que agora ele não estenda a mão e colha os frutos da árvore da vida, coma e viva para sempre". Manda então que querubins e as chamas da "espada fulgurante" montem guarda no portão do paraíso para proteger a Árvore da Vida, de modo a evitar que o homem volte e tome do seu fruto também.

Está desenhada a separação entre o homem e Deus: ambos podem dar a vida, mas só Deus é eterno. Dessa forma, somente pela procriação Adão e Eva podem garantir a eternidade: não de si mesmos, mas de sua linhagem, uma saga cujo início a Bíblia tratará de traçar ao longo de todo o Velho Testamento. Adão e Eva partem para o mundo não mais como crianças, mas adultos num mundo imperfeito.

Em vez de olhar para trás, onde as portas se fecham Eva olha adiante, para onde elas se abrem. Sua participação na expulsão do Homem no jardim do Éden não é humilhante. Ao contrário, rejeita a perfeição, à qual atribui um componente tedioso. Quando olha para a Árvore do Conhecimento, ela se pergunta para que serve a vida se não pode ser desfrutada com a sabedoria trazida pela experiência. 

É dela o papel mais importante na solução do primeiro dilema moral do livro sagrado. Adão e Eva partem convictos da escolha que fizeram para fundar sua família. Não choram nem cobrem a cabeça de cinzas, como fartamente retratado nas imagens que procuraram reconstituir esse momento simbólico. Saem conscientes de que sua vida tem o sentido de amar e reproduzir a vida. Têm consciência das dificuldades e de sua responsabilidade. Graças à ousadia de Eva, o ser humano atinge todo o seu potencial, desfrutar plenamente dos prazeres da vida e encontrar a paz espiritual confortado pelo amor familiar.

Em qualquer das formas que ligam o casal, seja como companheiros, parceiros ou amantes, a Bíblia coloca Eva num papel preponderante, não apenas pela iniciativa, como pela construção do núcleo familiar e tudo aquilo que ele representa. Ela não é uma sedutora pecaminosa, ao contrário do que a tradição popular lhe atribuiu, nem uma vítima totalmente inocente da serpente sedutora.

Dela parte a maior lição: a de que a missão da vida é aproveitá-la, não escapar da morte. Como humanos, a inexorabilidade da morte apenas aumenta a necessidade de fazer o melhor da vida, com um sentido de urgência que ultrapassa proibições. 

A transferência do foco transcendental religioso para o plano da vida faz da mulher a nova fonte de poder e sabedoria: aquela que somente a mãe, a amante e a esposa podem dar, assim como a vida. É o momento da história contemporânea em que a mulher, completando o curso da submissão ao poder, toma o lugar do próprio Deus, como fonte da Criação e, portanto, o ser a quem todos devem a própria vida e a quem têm, no final, de se submeter.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Os 10 melhores livros de todos os tempos

Para os alunos do Escreva Bem, Pense Melhor que me pediram na Casa do Saber uma lista de livros para ler, segue algo que escrevi há algum tempo - minha lista (muito pessoal, claro) dos 10 melhores livros de todos os tempos.

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Muita gente pergunta qual é a minha a lista dos dez melhores livros de todos os tempos. Ou quais são as dez leituras que julgo indispensáveis. Claro que não li tudo o que existe no mundo, que cada um pode fazer sua própria lista e que ela é bastante subjetiva. Mas quem quiser pode usar esta lista, ou fazer a sua e comparar.

1 – A Bíblia. O livro essencial da Humanidade é uma história familiar. Conta a saga dos descendentes de Adão e Eva e a complicada convivência com seu temperamental Criador, entidade onisciente que lhes deu a vida para depois tirá-la. Seus descendentes partem em busca da reconciliação com a divindade e a recuperação da promessa da vida além da morte.

Ao fazer a opção por comer o fruto da Árvore do Conhecimento, o casal que simboliza a Humanidade renuncia à existência perene no paraíso e à obediência ao Pai opressor em troca de bens ainda mais importantes: o livre arbítrio e o amor.

Além desta mensagem fundadora da civilização, a Bíblia é cheia de dramas que nem Shakespeare inventaria, lindos poemas e passagens poderosas, como o Livro da Sabedoria, escrito pelo sábio rei Salomão (o meu pedaço preferido das escrituras), e a história igualmente poderosa e cheia de ensinamentos de Jesus nos evangelhos de Lucas e de São Mateus, os que a contam melhor.

2 – Fédon. É a Bíblia dos agnósticos, assim como Sócrates é o Jesus dos intelectuais. O melhor, mais famoso e mais importante dos diálogos de Platão relata o último encontro do célebre filósofo ateniense com seus discípulos. Já condenado à morte pelos juízes da Cidade-Estado por “subversão” dos jovens, a quem ensinou o livre pensar, Sócrates discute a existência da vida além da morte enquanto a cicuta vai agindo lentamente em seu organismo.

Despede-se da existência fazendo o que sempre fez, como uma reafirmação do direito à liberdade e ao pensamento, grande dádiva do homem,aquilo que dá sentido e valor à vida. O mestre deixou impacto profundo em seus discípulos e em todos aqueles que têm o privilégio de ler a narrativa de seu mais célebre aluno.

3 – A Ilíada, de Homero. Primeiro grande épico da Humanidade, Homero deu à vida uma nova dimensão. Para ele, homens podiam ser quase deuses, assim como os deuses eram quase homens. Ele criou o guerreiro perfeito em busca da imortalidade (Aquiles) e consagrou o ideal grego de que o maior bem de um homem não é sua vida, mas a glória, especialmente a conquistada pela coragem em batalha, pois ela é a única coisa que o ser humano pode eternizar de si mesmo.

4 – Vidas dos Homens Ilustres, de Plutarco. Maior historiador da antiguidade, o romano Plutarco traçou o perfil de importantes personagens do passado, alguns dos quais foram seus contemporâneos ou haviam deixado registro para ele recente. Além de dar à luz a muito do que sabemos hoje sobre a Humanidade, Plutarco mostra que o centro da história é o indivíduo – a única força capaz de mudar o mundo.

Em sua vasta obra, também conhecida como Vidas Comparadas, certamente o tomo mais interessante é o que faz um paralelo entre os dois maiores gênios políticos e militares de todos os tempos, para que se possa eleger o maior: Alexandre Magno e Júlio César.

5 - A Divina Comédia. O mergulho de Dante e Virgílio no além é a mais bela e poderosa alegoria sobre a condição humana. Depois de mergulhar no inferno, no purgatório e no céu, guiado pelo poeta, Dante nos faz refletir sobre o que seria conhecer a morte – e depois poder voltar.

6 – Hamlet, de Shakespeare. Todas as obras do velho bardo mereceriam menção numa lista da melhor literatura em todos os tempos. Para dar mais espaço aos outros, porém, fico com a clássica tragédia que dispensa todo o trabalho posterior de Freud, ao colocar a mãe no papel de traidora, o filho no do continuador e vingador do pai, e sobretudo que coloca o ser humano diante da angústia eterna de não saber de onde veio, nem para quê: “ser ou não ser, eis a questão”.

7 – Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Retrato complexo do ser humano, a obra máxima do gênero picaresco e talvez de toda a literatura ficcional é também a que melhor retrata a mais bela diferença do ser humano para as outras feras: a capacidade de sonhar. Sonhando, Quixote de velho miserável se vê herói; faz uma era épica de um tempo mesquinho; alimenta a vida com um amor inexistente e enfrenta aventuras que, como tudo, são obra de sua imaginação.

Porém, em sua ilusão, o pobre Quixote não terá dado à sua vida miserável também uma dimensão incomparável, a grandeza que há na vida de todos nós, mesmo do ser humano mais medíocre? O que separa da loucura a realidade desta nossa existência? O homem que vê gigantes no lugar dos moinhos de vento nos diz uma grande verdade: somos importantes não pelo pelo fazemos, mas pelo que acreditamos. Graças a Cervantes, um louco nos mostrou a razão.

8 – A Metamorfose, de Kafka. A fragilidade da alma humana, vista como algo separado do corpo, é o tema desta pequena e genial obra da literatura que, em perspectiva histórica, podemos chamar de contemporânea. Ao se transformar em uma barata, o personagem central, um alter ego do próprio Kafka, separa também a alma e o que somos do corpo e de toda a aparência, apenas para nos mostrar a impossibilidade de sermos compreendidos pelo próximo e o fundo de nós mesmos – seres irremediavelmente perdidos em nossa inconsolável solidão.

9 – Sidarta, de Herman Hesse. Fundador do gênero “auto-ajuda” na literatura, Hesse também foi o primeiro autor ocidental a ver a profundidade e o interesse na sabedoria oriental. Sua parábola do rio como símbolo da vida - sem começo, meio ou fim, apenas água que é a mesma na nascente, no leito e na foz - é recorrente em minha obra literária. Até hoje procuro acreditar na eficácia da receita do jovem brâmane Sidarta para resolver todos os problemas da vida com três palavras mágicas: pensar, esperar e jejuar.

10 – Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Para colocar um romance brasileiro na lista das dez leituras obrigatórias, vai este que é o nosso melhor livro de ficção em todos os tempos. Relato biográfico escrito por um morto, com a visão muito peculiar de alguém que analisa sua vida a posteriori, Machado trata com a mais fina ironia o dilema central da Humanidade e apresenta em sua crueza máxima a insignificância e a inconsequência da existência humana.

Eu poderia colocar no lugar deste livro o Quincas Borba, que faz o mesmo, só que por meio da narrativa do cachorro. Em um caso ou outro, Machado apresenta a vida humana como algo realmente minúsculo diante do tempo, das estrelas e do universo infinito, mas que em algum lugar, foco de resistência dessas alminhas pensantes que constituem a Humanidade, sobrevive com um sorriso no canto da boca.