sábado, 21 de junho de 2014

O quê que a Costa Rica tem



Assisti aos dois jogos da Costa Rica, o primeiro contra o Uruguai, pela TV, o segundo contra a Itália, na Arena Pernambuco. Um jogo cujos ingressos só consegui comprar, creio, porque ninguém acreditava na Costa Rica, e acabou se tornando um jogo histórico.

Sim, ninguém dava nada pela Costa Rica, ainda mais no “grupo da morte”, reunindo Uruguai, Itália e Inglaterra. E o pequeno país da América Central, ao derrubar dois gigantes do futebol mundial em suas duas primeiras partidas, classificando-se na frente de todos e eliminando matematicamente a Inglaterra, realizou não apenas uma das maiores façanhas desta como de todas as Copas.

Na primeira partida, minha impressão é de que a Costa Rica havia tido muita sorte. A bola caíra no lugar certo na hora certa, como às vezes acontece no futebol. O Brasil já perdeu assim, em 1.982, diante da Itália. Um time mais poderoso, jogando bem, toma um gol de surpresa, quase por acaso, e de repente parece que tudo começa a dar certo para o adversário. Sem muito tempo de recuperação, quando se vê, Golias foi derrubado por Davi.

Na segunda partida, contra a Itália, estando na arquibancada, tive uma segunda impressão. A Costa Rica pode estar tendo sorte, mas também sabe mesmo jogar.

Não que seja algo de excepcional. Eles apenas fazem bem o que já conhecemos. Jogam em duas linhas de quatro, como muitos times brasileiros, e procuram compactar os jogadores, mantendo uma linha próxima da outra. Esse bloco fica mais adiante, quando querem pressionar o adversário, ou mais atrás, quando estão na frente do marcador e buscam jogar em contra-ataque.

No primeiro tempo, a Costa Rica corajosamente postou seus dois blocos mais adiante, para pressionar a Itália. Quando perceberam o espaço que os defensores costa-riquenhos deixavam às suas costas, usando como tática a linha de impedimento, os italianos quase abriram o placar por duas vezes em lançamentos de profundidade. Em um deles, uma precisa bola de Pirlo, o centroavante Balotelli desperdiçou um gol feito ao tentar encobrir o goleiro. Os costa-riquenhos tiveram também um pouco de sorte e ajuda do bandeirinha, que por algumas vezes marcou impedimento em lances legais do ataque italiano.

A Itália jogou bem o primeiro tempo, e poderia ter saído na frente, mas não conseguiu marcar o gol. A Costa Rica não perdeu a chance que teve, uma cabeçada certeira aos 43 minutos, que fez o time italiano, sem tempo de qualquer reação, sair de cabeça quente para o vestiário.

Na segunda etapa, já em vantagem, a Costa Rica recuou suas duas linhas de quatro mais para perto da própria área, fechando os espaços para os italianos, e jogando em contra-ataque. Fez bem ambas as coisas. Não marcou mais nenhum gol, mas anulou a Itália, que cansou com o calor pernambucano, entregando-se no final.

A Costa Rica mostrou ser uma equipe versátil, que sabe jogar tanto no ataque quanto na defesa. Possui jogadores habilidosos, como o centroavante Campbell, heroi do jogo contra o Uruguai, que nesta segunda partida teve participação mais discreta; e o meio-campista, autor do gol da vitória, que é o maior craque do time: Bryan Ruiz, jogador do PSV, da Holanda.

Contra a Itália, sem dúvida a Costa Rica não venceu por sorte, ou conjunção astral: venceu jogando, de igual para igual. Centrando seu jogo em Pirlo, um armador brilhante e clássico, mas meio lento, os italianos viram um adversário que usou a seu favor a velocidade. Ser rápido nos passes, no deslocamento e na virada de jogo é essencial no futebol moderno.

Além de velozes e bem entrosados, os jogadores costa-riquenhos são habilidosos e até um pouco abusados. Tentaram dar chapéu e dribles de efeito humilhantes nos honoráveis integrantes da velha Squadra Azurra. Talvez tenha contado para isso a preparação na Vila Belmiro, onde os costa-riquenhos foram beber da água que fez de Santos a meca do futebol-arte e da irreverência futebolística, na qual se formaram, entre tantos outros, Pelé e Neymar.

O técnico costa-riquenho, Jorge Luis Pinto, um colombiano que nos anos 1.970 estudou no Brasil e torce para o Corinthians, no final do jogo mostrou ter não apenas ousadia como elenco. Deu-se ao luxo de substituir seus dois melhores jogadores, Bryan Ruiz e Campbell. Enquanto isso, a Itália colocou em campo dois suplentes que não apenas nada acrescentaram ao ataque italiano como participaram de alguns lances bizarros, mostrando-se psicologicamente perdidos. Um deles, Insigne, segundo um amigo é apelidado na Itália de Scugnizzo, como se chamam os moleques de rua em Napoli. Ontem, porém, o espírito do moleque de rua, o alegre peladeiro, estava do lado da Costa Rica.

Surpresa para quem nunca tinha visto, os costa-riquenhos têm uma torcida grande e fanática por futebol. Lotaram parte do anel inferior da Arena Pernambuco como uma torcida organizada à moda brasileiro, e ocupavam esparsamente pelo menos um terço das arquibancadas. Outro terço era formado por italianos, numerosos mas espalhados, e o terço restante eram sobretudo brasileiros e mexicanos, além de torcedores de outras nacionalidades.

Ao final, a festa: os jogadores bailaram em campo na ponta dos pés, comemorando a travessa classificação em meio aos gigantes do futebol. No túnel de saída do estádio, os torcedores costa-riquenhos cantavam, felizes e provocadores:

“Donde están, donde están,
Los italianos que nos ivan a ganar?”

A Costa Rica não é a aparição de nenhuma nova ordem no futebol mundial. Porém, mostra que um time habilidoso, unido e bem preparado pode ir longe, mesmo sem tradição. Grandes momentos do futebol são feitos assim. A Costa Rica agora não é mais surpresa e vai ter vida dura pela frente. Porém, jogando um futebol à brasileira, até agora conseguiu ser melhor que o próprio Brasil, no futebol e nos resultados. Dá prazer vê-los jogar. E isso só valoriza o grande espetáculo de bom futebol que tem sido essa Copa.

Como é um dia na Copa

Levantamos às 4:20 da manhã, eu e meu filho, de 7 anos, para o nosso primeiro dia numa Copa do Mundo - dele e meu, que tenho 50. Objetivo, sair de São paulo num voo às 6:40, para assistir, em Recife, o jogo da Itália contra Costa Rica, cujos bilhetes eu comprara depois de muito suar diante do computador no site da Fifa, um mês antes, quando ninguém achava que a Costa Rica seria a sensação da Copa. Como descendente de italianos, eu, como muita gente, tenho a Itália em segundo lugar no coração, depois do Brasil - e venho tentando passar esse sentimento de italianidade para o pequeno André.

Saímos sonolentos, mas animados, e o voo transcorreu sem incidentes. No aeroporto de Recife, recebemos a notícia de que o transporte para o estádio era apenas de "metrô". Eu, que imaginara ir de táxi, entrei na fila do bilhete, na verdade uma pulseirinha vermelha que dava acesso aos trens e depois ao ônibus que completaria a viagem.

Dez minutos de caminhada na passarela que conduz do aeroporto à estação. O metrô, na verdade, não é um metrô, e sim um trem de superfície que vem de Jaboatão e segue até Recife, de onde se toma outra linha até a estação Cosme Damião, onde os organizadores prepararam os ônibus de ligação para a Arena Pernambuco. O estado do trem é razoável, melhor que os trens de subúrbio em São Paulo, e pior que os metrô paulistano. Tinha até ar condicionado, cujo efeito logo desapareceu assim que os vagões ficaram superlotados pelos passageiros locais, somados aos torcedores que enchiam o aeroporto e lotaram também o coletivo.

O trajeto de trem foi meio penoso: o trem, no sistema pinga-pinga, para não prejudicar o transporte da população local, levou cerca de 40 minutos com duas dezenas de paradas até Cosme e Damião. Mas o ambiente de alegria, com tanta gente misturada, se aliava ao bom espírito do dia para manter o moral elevado, sem a costumeira reclamação dos brasileiros que agora se queixam de qualquer incômodo. No trem, já tinha uma amostra do que encontraríamos no estádio: uma mistura de gente fantasiada, torcedores das mais diferentes seleções, italianos da Itália e outros do Brasil, seus descendentes, muitos torcedores do Palmeiras, o clube mais italiano entre os brasileiros. E a torcida costa-riquenha, em grande número, tão surpreendente quanto sua seleção.

Fomos em pé até Cosme Damião e, também em pé, num dos ônibus tirados das linhas comuns para fazer o transporte até o estádio. Saíam um após o outro em fila indiana até o estádio, num trajeto de cerca de mais 10 minutos.

A Arena Pernambuco foi construída no meio da zona da mata, fora da cidade. Chegar lá é mais ou menos como visitar um parque da Disney. O ônibus estaciona a cerca de um quilômetro do estádio, e essa parte do trajeto a multidão fez a pé. Antes da entrada, barraquinhas de comida e refrigerante dos recifenses eram o último contato com o Brasil. O estádio, que lembra uma espaçonave metálica descida no meio da mata, está longe de qualquer coisa, exceto de um condomínio de classe média alta que só se avista quando se sobe ao último estágio da arquibancada. pensei nos milhões dos estádios gastos com a Copa, e qual o futuro daquilo depois que a Copa acabar, mas, ora, ainda estávamos na Copa, e eu precisava deixar de ser jornalista por um instante para ser apenas torcedor de futebol.

Na revista, aonde passaram meu pequeno saco de viagem pelo raio-X, nos proibiram de levar para dentro qualquer tipo de comida ou bebida. Lá dentro, só comprando comida dos patrocinadores, o que significava tomar Coca-Cola ou água da Coca-Cola, Brahma e Budweiser. Não havia suco para crianças e nada para comer diferente de um hambúrguer do McDonald's e cachorro quente.

Eu tinha uma preocupação. Apesar dos meus esforços, comprar ingressos em setores diferentes do estádio. Minha esperança era de convencer o pessoal na entrada a entrar junto com meu filho e colocá-lo no meu colo. Mas não tive o menor problema. os bilhetes passavam na catraca juntos e, lá dentro, havia grande liberdade de movimentação.

O conceito da Arena é muito civilizado. estádio mais verticalizado que os nossos, permite ótima visão tanto de quem está no anel inferior quanto nos dois superiores. de qualquer ponto, pode-se ver bem o jogo. O fato de não haver alambrado entre a torcida e o campo pede dos torcedores um nível mais elevado de civilização, o que não sei se funcionará quando retornarem aos gramados os times do brasileirão e as torcidas organizadas. Na Copa, porém, todo mundo se comporta de forma exemplar.

Não precisei também colocar meu filho no colo. Com os 40 mil pagantes anunciados mais tarde pelos alto-falantes, havia claramente cerca de 20% dos assentos livres. Nos sentamos em dois disponíveis lado a lado e ninguém nos intimou a sair do lugar até o final.

Os italianos tinham uma torcida tão numerosa quanto a da Costa Rica, proém, estavam mais espalhados. Além de se encontrar por todo o estádio, os costa-riquenhos tinham um bloco organizado no setor mais próximo ao campo, barulhento e incansável, que animou o time do começo ao fim.

Em tudo, o estádio parecia um franchising bem americano, todo decorado com os motivos da Copa, a comida, os equipamentos brilhando de novos, do banheiro aos assentos de plástico. Um voluntário se ofereceu para colocar em meu filho uma pulseira de identificação, caso ele se perdesse de mim. Outros indicavam os assentos, como se estivéssemos no teatro. Cada um tinha seu lugar marcado, mas nada impedia que se pudesse mudar de um lugar para outro, até mesmo em outro setor, se houvesse lugares vagos. E não houve briga nenhuma.

Na saída, um congestionamento monstro de gente na fila para pegar o ônibus de volta levou cerca de 40 minutos, mas não baixou o moral da torcida, satisfeita e animada. Quando o ônibus passou pelo subúrbio, até chegar á estação do trem, o que se via era o Brasil de verdade lá fora, as famílias que faziam seu churrasquinho no quintal dos barracos e tiravam fotografias pelo celular dos ônibus que passavam com a torcida para fora da janela. Fizemos todo o trajeto do "metrô" na volta, dessa vez com meu filho sentado, ou melhor, deitado sobre um pernambucano bonachão, que não se incomodou quando caiu sobre seu ombro dormindo até babar.


Chegamos no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, às 11:20. Enquanto meu filho dormia no trajeto, fiquei pensando. O que achei, afinal? A Copa é um barato. Foi muito bom participar de perto, estar com meu filho no meio do bando de loucos de todas as nações, algo muito diferente de apenas assistir pela televisão. Certamente é algo de que ele vai se lembrar pelo resto d vida, provavelmente até quando eu não estiver mais aqui. E isso não tem preço.

Na Copa, pessoas realmente se divertem, fantasiadas ou não, como numa grande festa, em que o futebol é apenas um pretexto para uma grande confraternização. Todos querem conversar, trocam experiências e todo o resto. Como um amigo que encontramos a caminho do estádio e contou ter recebido de outro brasileiro, que o confundiu com um italiano, a proposta de trocar sua camisa da Itália por uma do Brasil.

Os pernambucanos, simpáticos já por natureza, se mostravam muito atenciosos e preocupados em fazer tudo para agradar os visitantes, da conversa no trem ao atendimento no estádio. E não pareciam nem um pouco incomodados de ver aquele famoso dinheiro gasto na Arena Pernambuco ter ido para o futebol, em vez dos hospitais ou escolas. Pelo contrário, estavam bastante orgulhosos de poder receber gente do Brasil e do mundo inteiro e interessados em saber se estávamos satisfeitos com o que tínhamos visto, como o pobre que coloca na mesa a melhor comida que tem em casa, orgulhoso de ter visitantes importantes. A conta, ou o que vai acontecer depois, não são tão importantes diante do nosso patrimônio de alegria e generosidade.

De certa forma, é isso o que o Brasil está fazendo: gastando mais do que pode para organizar uma festa melhor do que somos para que fiquem de nós com a melhor impressão. Mas é assim que se fazem todas as festas, ou não?









quinta-feira, 19 de junho de 2014

Pobre Espanha



Pobre Espanha.

Estive lá ano passado, numa caminhada a Santiago de Compostela, com meu pai. Um em cada três espanhóis está desempregado. As cidades do interior pelas quais passamos, ao norte, desde Pamplona, estavam praticamente abandonadas. O êxodo para os grandes centros em busca de trabalho só faz aumentar a dificuldade também nas metrópoles.

Lá, ao contrário do que se pensa aqui, o futebol não mascara as dificuldades políticas ou econômicas, é antes disso um pouco de alegria, um lenimento. O espanhol é um povo apaixonado por tudo, da tourada ao vinho, do vinho ao futebol, e é isso que sustenta os ricos clubes no país.O espanhol bem que estava precisando de um pouco de alegria. Porém, a seleção nacional de seu país, campeã do mundo em 2010, fez um papelão nesta Copa. Tomou sete gols em dois jogos e só fez um. "De noticia mala em noticia mala, nos pasa todo", lamentou o narrador da Rádio Cadena, de Barcelona, quando o time tomou o segundo gol chileno.

O celebrado futebol cadenciado da Espanha desmoronou diante de Holanda e Chile, duas equipes que, sem a mesma qualidade técnica, fizeram o que o Brasil já tinha feito na final da Copa das Confederações: não desperdiçaram oportunidades.

O futebol mortífero prevalece sobre o bem jogado. Holanda e Espanha foram efetivos, graças a atacantes que não titubeiam, e a jogadas rápidas de ataque, que não dão tempo para a defesa se organizar. Por jogar com uma troca exagerada de passes, a Espanha dá tempo para que a defesa se poste melhor. Seu futebol passou a ser previsível e o jogo enjoativo, com aquela troca de bola diante do paredão impenetrável feito pelo time adversário. E, nas oportunidades que teve, a Espanha não soube marcar.

Os espanhóis não foram os primeiros campeões a dar vexame na Copa seguinte. O Brasil, em 1.966, depois de vencer quatro anos antes, também saiu na primeira fase. A França fez uma campanha vergonhosa dentro e fora de campo em 2.002. A Itália caiu fora também logo de saída em 2.010. É a maldição dos campeões? Talvez. Mais provável, porém, é que exista uma acomodação na vitória. Ninguém vive do passado, muito menos no futebol.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Não vamos nos desesperar



Não, não vamos nos desesperar.

Claro que o zero a zero diante do México não foi uma beleza, mas também não foi um desastre. O Brasil esteve um pouco mais consistente que diante da Croácia. O México apenas se defendeu. Deu alguns chutes, perigosos, é verdade, mas de longa distância. Era o que podia fazer. E o Brasil desperdiçou quatro boas oportunidades dentro da área.

Se a lógica ainda vale alguma coisa, podemos dizer que o Brasil está bem perto da classificação. Mas e o bom futebol? Sim, aquilo que gostaríamos de ver: o Brasil jogando bonito, e mais competitivo, com a pegada, a rapidez e a efetividade da Copa das Confederações?

O técnico Luis Felipe Scolari testou algumas mudanças que acabaram sendo ruins. Colocou Ramires no ataque, no lugar do contundido Hulk, para proteger mais o lado direito, muito frágil diante da Croácia. Resultado, não melhorou a defesa e perdeu um atacante. No intervalo, tirou Ramires para entrar Bernard. Depois trocou também Fred, que anda meio parado no ataque brasileiro. Nada surtiu muito efeito. No final, o México nos deu ainda um sustinho derradeiro.

A esta altura, Felipão já deve saber o que precisa fazer para o Brasil melhorar. Ele segurou Paulinho no time até agora, mas as coisas não estão andando bem para o ex-jogador do Corinthians. Com pouca mobilidade, foi o pior do time, tanto no desarme quanto na armação. E ainda perdeu um gol de cara com o goleiro. O Brasil jogou muito melhor na fase de preparação com Ramires no seu lugar. É o que deve acontecer de novo se Paulinho não melhorar.

Por que Felipão não deixou Ramires no lugar de Paulinho, passando-o para o meio de campo, tirando-0 para a entrada de Bernard no ataque? É difícil desvendar a cabeça de um técnico. Acredito que Felipão sabe que com Ramires no meio o Brasil joga melhor: tem mais mobilidade, velocidade e marca melhor. O técnico está apenas insistindo com Paulinho e pode ser que essa seja sua carta escondida na manga para a próxima fase. Essa seria uma boa surpresa para os adversários em um time que se tornou meio previsível.

É muito possível que ele d~e ainda mais uma chance a Paulinho. Felipão é fiel ao que gosta. Manteve Júlio César, confia no goleiro, apesar de não estar jogando em um grande time. Acredita também em Fred e no próprio Paulinho. Não se pode criticá-lo. Fez bem em não ceder a pressões imediatistas para tirar Oscar, que é hoje o nosso melhor jogador. Precisamos ter paciência, como ele vem tendo.

Contra o México, Neymar apareceu menos, mas foi bem. Quase marcou um gol, de cabeça, fundamento que não é o seu melhor. O goleiro mexicano, que fez uma grande partida, tirou a bola quando já estava praticamente dentro do gol. Neymar teve mais alguns lampejos, mas não se pode esperar que resolva sempre tudo sozinho.

O Brasil vai melhorar, até porque os adversários, a partir da próxima fase, precisarão atacar mais, uma vez que só passarão para a fase seguinte com vitória. É uma mudança importante. Com o mata-mata, todos os times serão mais agressivos, inclusive contra o Brasil. E isso criará mais espaços para o time brasileiro jogar.

O México conseguiu se defender bem. Fez um bloco compacto, amontoou jogadores ao redor de Neymar e bateu forte para inibir os jogadores brasileiros e truncar o jogo, não deixando-o correr. Fechou espaços pelas laterais, onde o Brasil tem armado seu ataque, e contou com a estrela do goleiro, que parecia imantado, atraindo todas as bolas que iam para o gol.

Este zero a zero foi pouco, é verdade, mas é normal a equipe ir se estruturando na primeira fase. Felipão ainda tem margem para fazer algumas experiências até as oitavas de final. Aí, então, é que a Copa vai, de fato, começar.

O que vale é bola na rede



Eu acreditei que o Uruguai chegaria à final. Contra o Brasil. Reedição de 1.950. O Uruguai tem um belo time, guerreiro, técnico, experiente. Foi o melhor sul-americano no mundial de 2.010, com um quarto lugar.

O Uruguai estreou contra Costa Rica, jogo bem o primeiro tempo, saiu na frente, tudo indicava um resultado normal. Aí o jogo virou uma dessas jornadas mitológicas, com tudo dando certo para a Costa Rica. Final, Costa Rica, 3 a 1. O Uruguai não só perdeu, como perdeu bem. O Uruguai passou a ter que ganhar de Inglaterra e Itália para se classificar sem depender de ninguém. A Copa desafia os gigantes.

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A Costa Rica teve Campbell, jogador do Olimpiakus. Já tinha ouvido falar? Nem eu. Um moleque esperto e sem medo com a bola no pé, ele foi o astro na vitória contra o Uruguai. Vai ser difícil a Costa Rica repetir o feito contra Itália e Inglaterra, mas quem sabe? Pelo menos por um dia, Campbell foi um herói do futebol.

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A Holanda massacrou a Espanha loga na estreia, com um placar cruel de 5 a 1, conquistado com um belo jogo e contra-ataques mortais. Parece que na derrota para o Brasil na Copa das Confederações, a mágica espanhola desapareceu. Aquele jogo quebrou sua espinha dorsal. Os espanhóis se arrastam agora em campo, sujeitos a outras humilhações. Podem ainda se levantar. Porém, quando o moral acaba, e a insegurança se instala, é muito mais difícil.

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Portugal também levou uma biaba da Alemanha: 4 a 0. Cristiano Ronaldo, o craque da hora, com seu penteado novo, foi uma peça decorativa no pouco utilizado ataque português. Para ficar mais feio, o zagueiro Pepe resolveu dar uma de valentão e foi expulso. Coitada da torcida lusitana. Nesta Copa, Portugal parece mais a Portuguesa.

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Os alemães têm o time mais bem preparado, que vem amadurecendo desde a última Copa, quando fizeram uma bela campanha. É um esquadrão bem organizado, rápido no ataque e mortífero na conclusão. Eu diria que, pelo futebol, é o favorito. Mas o bom futebol não é tudo para se ganhar uma Copa.

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Itália e Inglaterra fizeram a melhor partida até agora, como dois combatentes de guarda baixa, esmurrando um ao outro, para ver quem cairia primeiro. Caiu a Inglaterra, que cansou no final e não conseguiu reagir ao segundo gol italiano. Foram dois gigantes e prometem mais emoção.

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A Copa já teve grandes jogos, surpresas e muitos gols. Sim o futebol bonito está de volta. Até seleções tradicionalmente trancadas como Itália e Inglaterra jogaram abertas.

As partidas da primeira rodada lembram o que é mais preciso para ganhar qualquer competição de futebol: efetividade. Jogando bem ou não, ganha quem não perdoa. Aproveita as oportunidades. Essa frieza objetiva e implacável é o que resolve as partidas, sobretudo numa competição com times tão equilibrados. Como dizia o velho ditado, o que vale é bola na rede.
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E hoje tem Brasil e México!

domingo, 15 de junho de 2014

Messi, a promessa dele mesmo



Lionel Messi, o grande astro argentino, tido por muita gente como o melhor jogador do futebol contemporâneo, me lembra muito Zico, craque do Flamengo e da seleção brasileira, que teve seu auge nos anos 1.980.

Como Zico, que precisou de muita injeção para crescer, Messi é baixinho. Também como Zico em seu início de carreira, no Flamengo, o jogo de Messi é feito de descidas vertiginosas para o ataque, em profundidade ou na diagonal, graças ao drible em velocidade, finalizado pelo disparo mortal.

Nos clubes, ambos tiveram a sorte de jogar em grandes times, o que só faz o craque brilhar mais. No Flamengo, Zico tinha por companheiros jogadores como Andrade, Júnior e Adílio, que com ele levantaram um título mundial. Eram todos jogadores hábeis, que gostavam da troca de bola, da tabela, do futebol envolvente. O Flamengo de Zico era sempre o dono do jogo. Messi joga no superestrelado Barcelona, ao lado de outros craques com o mais fino trato da bola, como o campeão mundial Iniesta.

No começo da carreira, embora fosse já um craque no Flamengo, Zico era bastante criticado na seleção. Por muito tempo, dizia-se que desaparecia com a camisa amarela, por não repetir no Brasil o seu desempenho no clube. Com duas copas na bagagem, sem ganhar nenhuma, com atuações apagadas, embora seja o segundo maior artilheiro da história da sua seleção, Messi hoje recebe a mesma crítica na Argentina. É considerado mais um jogador de clube que de seleção.

Com o tempo, Zico mudou. Do jovem jogador que partia com tudo para o ataque na base do drible e da habilidade, tornou-se também um grande armador, ao mesmo tempo em que a experiência ia substituindo a juventude. Tornou-se um jogador praticamente completo, e, mais experiente, foi também um grande destaque na seleção. Teve a sorte de disputar duas copas ao lado de grandes jogadores, como Sócrates, com quem fez uma bela dupla. Não ganhou nenhuma, mas o time de 1.982, dirigido por Telê Santana, até hoje é uma referência do futebol brasileiro, bonito, bem jogado, que se não ganhou, por mera fatalidade, mereceu a taça mais que qualquer outro.

Messi também não ganhou Copa, ainda. E terá muito trabalho, porque não tem na seleção, ao seu lado, craques como os que tinha Zico. O time da Argentina, que hoje bateu por 2 a 1 a Bósnia, que mais parece um time de universitários, não foi muito convincente. Beneficiada por um gol contra bósnio, a Argentina teve um primeiro tempo apático e, se dominou o segundo tempo, não chegou a ter cara de time campeão, titubeando no final.

Ele fez um gol, a seu modo: carregando a bola, tirando os zagueiros da frente, até achar a brecha para o chute. Porém, na maior parte do jogo limitou-se a devolver para trás as bolas que vinham em sua direção. Pouco jogou para o time.

A Copa de 2.014 vai ser decisiva para a história de Messi. Se ganhá-la, pode equiparar-se a um Maradona, que conquistou uma Copa do Mundo pela Argentina num time guerreiro, mas tecnicamente mediano, o que lançou ainda mais sobre ele a fama de milagreiro, simbolizada pelo gol de mão feito diante da Inglaterra.

Messi pode, também, chegar perto de um Zico, se for mais solidário, contar com a ajuda dos companheiros, e fizer de suas partidas aquele espetáculo que deixa saudade nos apaixonados pelo futebol, mesmo se não ganhar nada.

Ou pode ser apenas apenas o que foi hoje, na sua partida de estreia na Copa de 2.014: uma eterna promessa dele mesmo.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

O renascido e o predestinado: a Copa começou



A Copa do Mundo começou, momento histórico, que carrega tanto do momento do Brasil.

Primeiro a festa, provinciana, sem inspiração, mais parecida com uma festa junina de escola que um evento mundial. Aquelas crianças pulando na cama elástica, o pessoal fantasiado de araucária, os gaúchos pilchados foram de um primarismo bem raso. Mas ninguém liga para festa de abertura de Copa do Mundo.

No fim, tudo ficou no seu lugar. A presidente Dilma, cuja popularidade vai descambando a olhos vistos, diante do festival de bandalheiras no seu governo, foi vaiada na hora da vaia. Foi até gostoso ver a cara feia dela, como a convidada indesejável da festa. Depois a torcida cantou o hino à capela, como sempre, lembrando à Fifa mais uma vez que o que vale é a lei do Brasil e, cantado, ele tem duas partes. Depois, apoiou o time, aparecendo nos momentos de necessidade.

Quem queria se manifestar se manifestou, do lado de fora. Má propaganda para o Brasil? O mundo inteiro já entendeu que protestamos contra a corrupção, os gastos absurdos, a prepotência e a corrupção da Fifa. O mundo está vendo que o Brasil tem cidadãos. Sim, apareceram os abusos de parte a parte, dos baderneiros que aproveitam as manifestações públicas para descarregar seu ódio, e da polícia, que carece de treinamento e profissionalização, agindo mais pelo instinto de auto-proteção que de proteção ao público.

Está sendo assim no Brasil como foi em todo lugar, até nos jogos olímpicos de Londres, com a milenar civilização inglesa, também cheia de hooligans e bagunceiros. Que por sinal já estão por aqui. Um deles tentou passar a mão na minha mulher em um bar e acordei com a cantoria de um grupo de torcedores bêbados nas ruas de Higienópolis às 4 da manhã.

Mas e o jogo? Ah, o jogo foi duro e teve grandes personagens. Numa estreia nervosa, como é normal, houve aqueles que estiveram abaixo da própria média. Especialmente os dois laterais: Marcelo, que marcou um gol contra logo no início, e Daniel Alves, que deixou uma avenida nas suas costas, e no ataque pouco produziu. Foi mal Hulk, desaparecido, apesar do seu tamanho. E Fred, isolado no ataque, teve como única participação o teatro até meio bisonho com que cavou o pênalti do segundo gol. O juiz japonês caiu na dele, sem com isso nos tirar o gosto da vitória.

Diante de uma equipe forte, física e tecnicamente, bem organizada e que planejou bem o estilo de jogo contra o Brasil, explorando os contra-ataques pelas pontas, o Brasil se safou pela grande atuação de Oscar, que vinha sendo questionado, com a sombra crescente de William às suas costas. Oscar jogou para provar a que veio na seleção Brasileira, e provou. Enfrentou os zagueiros, tomando-lhes a bola, no lance que resultou no primeiro gol. Obrigou o goleiro adversário a fazer uma defesa difícil, ainda no primeiro tempo. Caiu pelos lados, criando jogadas, indo à linha de fundo, muitas vezes sozinho. No final, num lance individual, fez o terceiro gol quando o Brasil tomava um aperto de botar o coração na boca.

E Neymar? O grande astro brasileiro jogou mal. Pouco acertou os passes, os dribles tão fáceis andaram escassos. Diante da muralha de adversários, porém, marcou o primeiro gol, uma bolinha murcha, chorada, mas que entrou no cantinho. Cobrou também muito mal o pênalti, à meia altura, meio fraco, e o goleiro também aceitou. Jogou mal, mas tem uma sorte incrível. Neymar é um predestinado. Com os dois gols, salvou sua atuação. E o Brasil.

Os croatas fizeram um belo jogo em campo, e fora dele um papelão. O técnico croata só falou do pênalti marcado contra sua equipe. E os jogadores quebraram mesas e encanamentos no vestiário. Coisa de mau perdedor.

Com Oscar, o meia ressuscitado, e Neymar, o predestinado, o Brasil mostrou que seus jogadores mais jovens são capazes de conduzir o time, tanto quanto os mais experientes, como o par de zagueiros. Paulinho, que vinha jogando pouco, vai sendo colocado por Felipão na esperança de ganhar ritmo até os jogos finais. Então o técnico terá de novo a equipe brilhante e competitiva que ganhou a Copa das Confederações.

Mesmo não jogando bem, numa partida crítica, o Brasil virou o jogo. Mostrou que pode reagir, individual e coletivamente.

Futebol é uma loteria, em que já vimos tantas vezes grandes times naufragarem por um pequeno detalhe. Sim, a vida é cruel. Mas temos chances reais de vencer.



segunda-feira, 9 de junho de 2014

A Copa e o país que podemos ser



Fui assistir no Morumbi o último jogo preparatório do Brasil para a Copa, no último dia 6, uma tarde de sexta-feira chuvosa, em que a torcida surgiu de última hora, e lotou os três anéis do estádio. Levei meu pai e meu filho de sete anos para um espetáculo vergonhoso, dentro e e fora do campo. Durante a maior parte do jogo, a torcida silenciosa nem parecia estar vendo uma partida do Brasil. O time, apático, quase saiu para o intervalo do jogo perdendo de 1 ou 2 a zero. Os jogadores foram para o vestiário debaixo de vaias.

É verdade que jogo-treino antes da Copa costuma ser mico, já que os jogadores não querem se machucar e o adversário nada tem a perder. Mas o lamentável não veio daí, e sim do show de mesquinharias dos apátridas que lá estavam travestidos de torcedores. No começo do segundo tempo, a torcida - boa parte dela de são-paulinos, que têm acesso mais barato às cadeiras cativas do estádio de seu clube -, puxou um coro pedindo pelo centroavante de seu time, Luís Fabiano. Foi apenas por espírito de porco. Fred, um artilheiro simpático, que fez um papel brilhante na Copa das Confederações, em seguida marcou um gol. Em vez de hostilizar a torcida que gritava de alegria apenas dois minutos depois de pedir a sua cabeça, comemorou sobriamente. Entre os brasileiros ali presentes, pelo menos ele manteve a dignidade.

Um são-paulino ao meu lado comportou-se mal desde que o locutor do estádio anunciou a escalação da seleção. Vaiava a maioria dos jogadores e também o técnico Luís Felipe Scolari, com o dedão para baixo, como um César condenando-os à morte na arena. Berrava alto, sozinho, e de forma insistente, perseguindo os jogadores o tempo todo. Sentado na sua cadeira plástica, como uma paxá num trono barato, parecia ter vindo ao estádio para destilar sua mau-humorada insolência, sua frustração e sua pobreza de espírito. Meu filho, ao meu lado, se incomodou. "Que chato esse cara!" - exclamou, a certa altura.

Porém, esse cidadão de araque não está sozinho. Parece que muita gente resolveu incorporar o espírito de porco para esta Copa do Mundo realizada dentro de casa. Em vez de fazer uma bonita festa, com a alegria costumeira do brasileiro, uma parcela importante da população resolveu se manifestar como os espanhóis do ditado: haja o que houver, soy contra. Categorias profissionais como os metroviários de São Paulo e os professores iniciaram uma onda de greves oportunistas. A motivação mistura interesses particulares, como o aumento do próprio salário, com questões gerais do governo e da Copa - corrupção, estádios superfaturados, e a tendência demagógica de todo governante de querer tirar uma casquinha da festa.

O brasileiro tem o direito de reivindicar salário, privada e coletivamente. Pode e deve protestar contra a corrupção. Mas não deveria se transformar num exemplo de incivilidade, nem ser injusto com todos aqueles que não tem responsabilidade pela situação, incluindo os que apenas e simplesmente gostam e querem ver o futebol. Este ano, completam-se 100 anos da existência das disputas de seleções. O futebol é um esporte presente na vida não apenas dos brasileiros como de todo o mundo. A Copa não é nossa, é mundial. O Brasil, no entanto, tem se comportado como o sujeito que convida os amigos para uma festa em sua casa, mas, quando eles chegam, reclama de quanto ela custou, fica dizendo que roubaram no preço da cerveja e do sanduíche, e só falta mandar todo mundo de volta para casa.

A Copa mostra bem o que somos e lembra como podemos ser. O brasileiro gosta de falar mal do brasileiro e trazer para a sala os problemas da cozinha. É o único cidadão do mundo que faz anti-propaganda do seu país, e, por conseguinte, de si mesmo. Fala mal de tudo, usa o Facebook para dar palpite no que acha que está errado, coloca a sua própria versão acima dos fatos. E não faz nada de concreto para melhorar nada, como se reclamar fosse o bastante. O brasileiro esquece que o Brasil melhor começa por ele mesmo.

Todo resmungão é preguiçoso. Nós, brasileiros, precisamos olhar mais para as coisas boas e nos empenharmos para que tudo vá melhor. Precisamos respeitar nossos atletas, que tão bem representaram o Brasil na Copa das Confederações, com uma vitória histórica sobre a Espanha na final, e merecem um voto de confiança. Respeitar o técnico, o torcedor, o direito e a opinião alheios. É certo que cada um tem suas preferências, mas não se pode menosprezar ninguém. O brasileiro se acostumou a não respeitar nada, e por isso não é respeitado.

O Brasil só fala bem do Brasil quando ganha. Esse foi o motivo do sucesso da Copa das Confederações. Se as coisas vão mal, o brasileiro se transforma num randômico atirador de flechas, como os antepassados tupiniquins. Quando reclamamos da crise, dos políticos, do governo, esquecemos que tudo isso vem do povo brasileiro, é seu produto, sua consequência. Se existe uma crise no Brasil, é de comportamento. Precisamos reclamar menos e consertar o que está errado, usando os canais corretos - especialmente o voto. Isso não nos tira o dever de tratar tratar todos com respeito, incluindo todos os atletas e torcedores de outros países que estão vindo ao Brasil pelo que a Copa tem de bom.

O brasileiro precisa ter mais espírito de colaboração, civilidade e educação, começando pela básica. É isso o que melhora tudo: os salários, a qualidade dos políticos, e também a nossa imagem, perante o mundo e sobretudo de nós mesmos.





domingo, 1 de junho de 2014

Como comprar ingresso para Brasil e Croácia - e todos os outros jogos

Apesar da afirmação da Fifa de que somente no Fifa.com se pode comprar ingressos para a Copa, o site da fifa é o que tem menos ingressos á venda na internet. A maior parte deles foi carreada para sites de venda que funcionam como cambistas virtuais.
No worldcup2014ticketnet.com, por exemplo, pode-se comprar ingressos até msmo para o jgo de abertura da Copa (Brasil x Croácia), pelo preço de cerca de ... 1.400 euro. (abaixo)

No

Com informações erradas, Fifa deixa milhares de pessoas plantadas na fila

Ao longo da semana passada, os postos de venda e retirada de bilhetes na Fifa informavam que neste domingo, dia 1, seria aberto um novo lote de ingressos para os jogos da Copa do Mundo. As vendas começariam às 8:00 da manhã de domingo pelo site da Fifa e 9:00 nos postos de atendimento. Nenhum ingresso adicional, porém, foi disponibilizado. Quem entrou na internet pela manhã não encontrou nada além dos poucos lugares que já havia para os jogos de menor interesse.

No posto de atendimento do Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, onde se formava uma fila com pelo menos duas centenas de pessoas desde a noite de sábado (foto), os interessados permaneciam na manhã deste domingo sem qualquer informação sobre os ingressos extras. Nos guichês, aqueles que haviam esperado horas a fio para comprar os bilhetes recebiam a orientação de tentar de novo na quarta-feira.



A Fifa informa que a venda de ingressos só é possível pelo site e os postos de venda. Contudo, ingressos estão sendo vendidos em por cambistas, como apurado pela reportagem do Fantástico de domingo passado, dia , e dezenas de travessadores na internet, como worldfootballticketexchange.com, ticketbis.net e viagogo, entre dezenas de outros.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Mem de Sá e os malfeitores do Guarujá



Nos últimos meses, venho trabalhando na redação de um livro de história do Brasil, dos primeiros viajantes até a fundação do Rio de Janeiro. Confesso que fiquei surpreso com minha própria ignorância da história brasileira e me sinto como se estivesse entendendo nosso país pela primeira vez: sua natureza, suas raízes e os problemas que vêm de longe.

No final da década de 1.550, o então governador-geral da colônia do Brasil, o português Mêm de Sá, insistia com a Corte portuguesa para que lhe enviasse duas coisas: bons administradores, porque as capitanias eram um desastre gerencial, e, sobretudo, homens de bem. "Não esqueça Vossa Alteza que esta terra foi povoada com degradados e malfeitores, que mais mereciam morrer", escreveu ele.

Quatrocentos anos depois, o Brasil ainda padece dos mesmos problemas: precisa de administradores e, acima de tudo, homens de bem. Herdeiro direto dos tupinambás com os degredados portugueses, o mameluco brasileiro continua achando que pode resolver as coisas de qualquer jeito, desconhecendo a lei e as normas da civilidade só por estar em terra tropical. Reclama da corrupção e da incompetência dos políticos, mas esquece que eles saíram do meio do povo que os elegeu. E continuamos nos comportando como bárbaros selvagens e seminus, sem lei nem rei.

Vejam o caso que circulou fartamente estes dias no Facebook: o casal de turistas que, depois de pichar uma pedra com as letras ABC, foi atacado por circunstantes que os picharam em represália.

Foi extraordinário ver como, em vez de chamar a polícia, para que pudesse ser aplicada a lei contra pichação, foi praticada contra o casal uma violência muito maior. Pior ainda, o Facebook agora propaga o episódio por gente que o viu como uma boa "lição" nos malfeitores, ganhando apoio entre todos aqueles que não pensaram bem no assunto.

A violência não se justifica em hipótese alguma. É preciso que fique bem claro: o cidadão que banca o justiceiro se torna também um malfeitor. Pode ser que a polícia seja falha, como o executivo falha, o legislativo falha, e tudo de vez em quando falha, mas o que é preciso é fazer o sistema funcionar, e não transformar o país em barbárie, entregando-o aos pequenos justiceiros do dia a dia. Quando o cidadão acha que pode passar por cima da lei, manifestação política pacífica e legítima descamba para a baderna, a denúncia vira difamação e a opinião vira intolerância.

Existe um conjunto de atributos inerentes à civilidade: a educação, o respeito ao próximo, a tolerância, a observância da lei e o uso dos canais apropriados para sua aplicação. Aqueles que estão a elogiar o comportamento dos "vingadores" do Guarujá não percebem que estão apenas alimentando a violência que se espraia na sociedade, quando deviam estar fazendo o contrário.

O que se espera de gente ilustrada é outra coisa: qualquer barbarismo devia causar horror. O comportamento serve para dar um bom exemplo. A humilhação dos transgressores é moral. E, quando for o caso de outra pena, que a lei seja aplicada na forma prevista pela própria lei. Diria Mem de Sá que a conduta de cada um é que constrói um país civilizado. E que ainda estamos precisando, no Brasil, dos homens de bem.

domingo, 27 de abril de 2014

A ressurreição de García Márquez

No final da vida, e mesmo antes disso, o escritor colombiano Gabriel García Márquez foi ficando cada vez mais parecido com Aureliano Buendia, seu personagem de Cem Anos de Solidão. Como cidadão, se tornou uma figura meio anacrônica, por seu chauvinismo declarado, e sua defesa incondicional do comunismo cubano, que hoje faz o país parecer um fantasma de si mesmo. Como romancista, foi um alquimista, capaz de criar ouro de matéria bruta. E acabou personagem mitológico, surrealista, ou, dentro da definição clássica de sua literatura, realista-fantástico.

Márquez na verdade não foi o inventor do realismo fantástico, um tipo de literatura surgida pela pena de Jorge Amado, que muito antes se tornou um latino-americano de expressão internacional, com personagens como o coronel que tem o diabo preso dentro de uma garrafa ("Terras do Sem Fim"), a mulher que materializa um fantasma (Dona Flor e seus Dois Maridos) ou o bêbado que engana a morte ("Quincas Berro d'Água"). Porém, Márquez deu uma dimensão ainda maior para a literatura latino-americana, com seu poder imagético, sua capacidade de condensação conceitual, que faz um simples parágrafo de seus livros ter a força de uma história bíblica.

Construiu uma obra tão vasta quanto sólida, na qual se desfruta do seu estilo inconfundível em todas as páginas. A pior de suas obras(talvez, apesar do belo título, "Do Amor e Outros Demônios") é melhor do que a maioria dos bons livros da maioria dos grandes autores. Em Márquez, a qualidade não depende do tema nem do tamanho. Ele imprime sempre a sua marca, seja no vasto e bíblico "Cem Anos de Solidão", seja na ópera ligeira e brusca de "Crônica de Uma Morte Anunciada". Márquez construiu milhares de fiéis leitores porque é sempre Márquez.

Vai com maestria do coração ("O Amor nos Tempos do Cólera") à política ("O outono do Patriarca"), fruto não de trabalho e elaboração, muito menos de acaso, e sim de uma cabeça cheia de imaginação, capaz de encadear as ideias, conceitos e imagens como um poderoso processador de histórias. Márquez fez a imaginação mais delirante se misturar de tal forma à experiência vivida que produz esse efeito de confundirmos verdade e fantasia e fantasia com verdade.

Muitas vezes Márquez disse que a diferença entre ficção e realidade em sua literatura não existe; o que existiu foi a realidade descrita a partir de seu ponto de vista, vindo de Aracataca, a cidadezinha do interior colombiano onde passou sua infância. Lá se produziu um milagre da literatura, que catapultou ao Nobel o escritor de um país que de outra forma seria conhecido pelo mundo apenas como o ninho do tráfico de drogas. Sem recursos, a ponto de enviar pelo correio somente o começo de Cem Anos de Solidão ao agente em Barcelona, por não ter dinheiro com que pagar a taxa de remessa do pacote integral, ele se tornaria um dos homens mais ricos da Colômbia, onde é considerado a versão de Deus com um bigode cucaracha.

Jornalista, produziu reportagens que parecem verdadeiros romances, como "A aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile", a história do cineasta chileno que volta a seu país clandestinamente durante a ditadura para produzir um documentário, correndo risco de morte. Ou "Relato de um Náufrago", em que ele conta o drama surrealista de um marinheiro que sobreviveu ao naufrágio de um navio de guerra que levava uma carga clandestina de eletrodomésticos ao seu país.

Diante do túmulo de Márquez, o que se pode dizer é que ele é um dos poucos escritores que continuarão vivos. Inspirador de muitas gerações de escritores (entre eles eu, que o tinha em mente quando escrevi "Filhos da Terra"), e capaz de realizar um grande milagre: fazer toda uma geração acreditar no poder transformador da literatura e na riqueza da vida, não importa onde está nosso berço, nem qual será o nosso destino. Se olharmos bem, todo homem pode ter uma vida de sonho, ou mágica. E ressuscitar no terceiro dia. Agora que Márquez está morto, por meio de sua obra, ele renasce para sempre.


sexta-feira, 25 de abril de 2014

O príncipe das trevas



Raphael Montes, o escritor brasileiro mais quente do momento, já não é mais tão novinho. Quando lançou seu primeiro romance, Suicidas, finalista do Prêmio Benvirá de Literatura, e depois do Prêmio São Paulo e do Machado de Assis, ele tinha 20 anos. Agora, já formado em Direito, ele tem 23.

Seu segundo romance, Dias Perfeitos, recém publicado pela Companhia das Letras, já o levou ao programa do Jô Soares e ganhou as páginas da grande imprensa, de O Globo, no Rio de Janeiro, ao Estadão, em São Paulo. Todos se encantaram pelos elogios de Scott Turow, que Montes conheceu numa feira literária em São Paulo, e que leu seu primeiro romance diante da insistência de sua mulher, que o tinha lido antes. Não deveria ser preciso vir um escritor estrangeiro para dizer que um brasileiro é bom, e fazer os leitores nacionais prestarem atenção em alguém. Mas no Brasil xenófilo, e meio provinciano, o marketing funciona assim. Montes sabe bem.

Ele é um rapaz de sorte. Mora num apartamento em Copacabana, onde o pai, colecionador de cachaças, montou para ele um quarto recheado de livros policiais. Oportunista, já caiu no convívio de grandes escritores, como num jantar na Flip em Parati há alguns anos, em que eu o enfiei como convidado por simpatizar com sua figura ao mesmo tempo abusada e pueril. E é esperto e trabalhador. Vive em sintonia com o pessoal de sua geração, o que faz dele um escritor ligado no comportamento dos jovens de hoje, e sua literatura talvez tenha muito a ver com isso. Boa parte do fato de ter conseguido chegar a finais de prêmios literários vem de que ele não é, realmente, um escritor policial, como anuncia. Sua especialidade é descrever a frieza patológica de uma juventude que não conhece ou não sente o peso de certos valores, em histórias de terror psicológico nas quais o crime, na verdade, é o menos importante.

Menor que Suicidas em tamanho, menos ambicioso, mas mais fácil de ler, Dias Perfeitos conta a história de um estudante de medicina que sequestra uma garota na tentativa de fazê-la apaixonar-se por ele. Mistura elementos de filmes conhecidos, como uma colagem de O Colecionador (William Wyler, 1.965), Átame! (Pedro Almodovar, 1.990) e sobretudo A Bela da Tarde (Luis Buñuel, 1.967). Apesar de uma certa sensação de dèja vu, especialmente para quem viu os filmes, Montes consegue fazer uma história original, ambientada no Brasil, que deixa ao final a mesma estupefação das histórias do cinema que o precederam e, propositalmente ou não, lhe servem como referência.

Claro, Montes, que quando eu estava na Benvirá apelidei internamente de "Raphael Mortes", ou apenas Montinhos, ainda é muito jovem. Não é ainda o rei do terror psicológico, mas já tem status de príncipe. Consegue criar bem personagens, nuances psicológicos e o clima desejado. Ainda peca na ação, que às vezes parece despropositada, ou pouco verossímil. Mas ele está ficando mais velho, e apenas começando. Quem sabe atinja a maturidade literária em breve – no seu próximo romance, aos 25.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O arquiteto da vida



Meu tio, Ary Albano, era uma das poucas pessoas no mundo que eu já invejei. Talvez a única.

Fácil de explicar. Verdadeiro gentleman, era elegante, educado, observador e cheio de opiniões. Arquiteto, tudo nele trazia certo senso estético, inclusive o comportamento. A própria vida, para ele, era estética. Sempre viveu como quis. E ele vivia bem.

Passou anos construindo a sua casa, de vidro e concreto aparente, encostada na mata atlântica, na beira da reserva da Cantareira, em São Paulo. Lá viveu o resto de sua longa vida, vizinho dos macacos que ele nunca cansou de admirar. A casa era laboriosa, tinha muitos caminhos, parecia pouco prática. Mas ele seguia suas ideias. Passava horas explicando cada pequeno detalhe daquela construção. Não falava da casa, nem de si mesmo. Falava do que acreditava, sempre com a paixão mais juvenil.

Segundo. Meu tio soube trabalhar e também ter tempo para a vida. Pôde desfrutá-la, sem pressa. E ao lado da mulher que foi da vida inteira, ou da vida desde que ele a conheceu. Com minha tia Anna Carmelita, ou Lenita, jamais deixou rebarba de dúvida de ser um homem feliz. Estavam sempre juntos. O tempo todo, em tudo. É verdade que minha tia é mulher de rara sabedoria, que sabia levar tudo com certo bom humor, inclusive algumas manias do marido. Mas até nisso tio Ary merecia inveja: encontrou a mulher perfeita. Para ele, creio, a única.

Meu tio não era tanto arquiteto de projetos particulares. Voltava-se para a arquitetura pública. Formado numa das primeiras turmas da FAU, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, quando os estudantes eram altamente politizados, dedicou grande parte de sua vida a defender suas ideias de urbanismo, dentro e fora da administração municipal. Foi um dos primeiros a trabalhar na secretaria do meio ambiente de São Paulo, quando ela ainda se chamava "secretaria do verde". E um dos fundadores do Defenda São Paulo, importante marco em defesa de um urbanismo mais humano e racional na cidade. Complicou a vida dos empreiteiros na construção do Rodoanel, com sua defesa dos mananciais, hoje um tema crucial diante da seca da qual a cidade está ameaçada. Lutou contra os loteamentos ilegais. Em qualquer discussão sobre preservação ambiental, uma coisa era certa: ele estava lá.

Construtivista, era um purista em todos os sentidos, incluindo os materiais. Em Ilhabela, onde fez seu retiro de fins de semana, construiu uma casa feita inteiramente de tijolos baianos, o mais menosprezado dos materiais de construção. E deixou-os aparentes. Queria provar que era possível fazer uma casa sofisticada com o material mais popular. Toda suspensa, incluindo a piscina, a casa de tio Ary em Ilhabela parecia um grande Lego enfiado no meio de mansões num dos mais chiques condomínios da ilha. Quando dirigi, entre outras publicações, uma revista chamada Reformar & Construir, mandei colocá-la na capa. Também houve gente que achou que eu estava doido. Mas eu, como ele, sempre achei que os intelectuais são feitos não apenas para derrubar preconceitos com suas ideias, mas com a prática. (Minha tia, a vida inteira, sempre pediu que ele rebocasse a casa. Tio Ary fez algumas concessões, nas áreas internas. Mas lá está ainda sua casa - do jeito que ele a imaginou).

Quando lhe perguntei por que a casa era suspensa, ele me contou uma história. Certa vez, foi procurado por uma empresa que se instalava na Amazônia. Pediam que ele lhes resolvesse um problema. As casas da colônia recém construída eram tão quentes que os operários não suportavam morar nelas. Não sabiam o motivo daquilo, nem o que fazer.

Antes de qualquer coisa, meu tio foi pesquisar como moravam os nativos amazônicos. Ao contrário do que ele (e eu) imaginava, as palafitas amazônicas não eram levantadas apenas nas zonas de alagamento. Ele entendeu, então, que os povos do Norte levantavam as casas em palafitas não por causa das enchentes dos rios, e sim para criar um espaço entre a terra e a casa. No trópico, o calor esquenta a terra durante o dia. À noite, o calor irradia do chão, transformando a casa num forno. Nas palafitas, o vento que passa sob o assoalho serve para refrigeração, impedindo a transmissão do calor do solo. E mantém o piso longe da umidade. Resultado, meu tio mandou levantar do chão todas as construções da colônia. E os operários enfim puderam voltar para casa.

A casa suspensa de Ilhabela era apenas um dos muitos sinais de que meu tio não só aprendia, como vivia pelo que aprendia. Tinha muitas outras história para contar, o que fazia com o mesmo entusiasmo com que combatia os descalabros de governos e empresas privadas no trato urbano.

Meu tio Ary teve seu primeiro AVC num arborizado parque da zona norte de São Paulo, enquanto caminhava - um dia comum de sua vida tão calma e tranquila que não se imaginava que algo assim pudesse lhe acontecer. O acidente vascular lhe tirou muito da antiga vivacidade. Outras complicações o deixaram por três meses hospitalizado, sem poder desfrutar do nascimento de seus netos gêmeos, filhos de meu primo Mauro,e afinal o tiraram do nosso convívio para sempre, no final de março passado, aos 85 anos. Soube da notícia na minha casa, que beira a mata, onde há macacos, todo tipo de pássaros e é feita completamente de madeira e vidro, bem distante da grande metrópole. Meu tio não teve oportunidade de conhecê-la, nem eu tempo hábil de viajar para lhe dar um último adeus. Mas acho que ele ficaria satisfeito de saber o quanto aprendi com ele - e como seus ensinamentos são imortais.



segunda-feira, 7 de abril de 2014

Denise Milan e o humanismo brasileiro



Existem poucos artistas brasileiros respeitados, valorizados e divulgados no exterior. Denise Milan é um deles. Andarilha, de cabeça sempre aberta, fervilhando em iniciativas ao redor de suas ideias e obsessões, ela é uma artista genuína e inserida no nosso tempo: multidisciplinar (isto é, que trabalha com a imagem em todas as suas formas: escultura, fotografia, pintura, meio digital), tem um trabalho tão vasto e multifacetado que é difícil de definir. O que se pode dizer é que ela é o que todo artista brasileiro deveria ser: particular e universal.

Denise é incentivadora e protagonista da arte pública, aquela que pode ser vista na rua. E uma de suas marcas é a obsessão pelas pedras, cuja antiguidade remonta à idade da terra e do próprio universo. Para ela, as pedras representam a existência numa dimensão que ultrapassa a humanidade: é cosmogônica, universal.

Para Denise, somos parte do cosmos, essa interminável massa viva de energia em mutação. A vida das pedras dura milhões de anos, o tempo de sua transformação. Ao compará-las em sua existência à vida humana, e vice-versa, Denise nos lembra que não somos diferentes do universo, pelo contrário, somos parte dele, dentro de um sistema unívoco, total e belo.

Com sua subversão dos conceitos de vida, matéria e tempo, Denise construiu de pedra, em especial o quartzo, uma vasta cosmogonia artística, que pode ser vista em suas obras públicas, de Chicago a uma floresta particular em Pernambuco, um laboratório artístico louco (ou visionário) criado por empresário brasileiro que a imaginou como um parque para ser visto "por alienígenas daqui a milhares de anos". As peças de Denise, que falam da terra, do homem e do tempo, bem poderiam ser enviadas na carga das naves espaciais que visam explorar os limites do universo, junto com as mensagens de paz e os concertos de Beethoven.

A universalidade do trabalho de Denise, porém, vem do particular, de uma brasilidade que faz inserir o Brasil no mundo e lhe dá a possibilidade de ser protagonista das ideias e das artes, algo tão importante, e precedente, quanto liderar a economia mundial. A pedra brasileira, a visão brasileira, a arte brasileira em Denise são um exemplo de uma nova visão, que se traduz na miscigenação, na paz, na tolerância, na integração com a natureza aqui tão abundante. Nossa terra, e o que fazemos dela, torna-se inspiração.

Denise gosta do Brasil, tira sua terra, suas pedras e sua humanidade do Brasil. Pesquisadora dos índios no litoral fluminense, que assim como a nossa natureza estão nas nossas raízes, mergulhou no trabalho que chamou de "Fumaça da terra", um registro em livro fotográfico da natureza e da gente do litoral fluminense. Agora, construiu a partir dessas imagens uma exposição, conjunto de fotomontagens que trazem o mistério das fotos originais, mas ganharam outro sentido, mais vital, orgânico, poderoso e um tanto místico. Na mostra, que vai até este dia 19 de abril na galeria Virgilio, em São Paulo, pedras se tornam flores, ou flores se tornam pedras. Terra e gente, extraídas de diferentes fragmentos, são afinal uma coisa só. É a cosmogonia de Denise em ação. Ou a melhor expressão do humanismo brasileiro.

Multimodal, a artista está em toda parte: ora na Itália, onde monta uma exposição, ora em Chicago, de cujo centro cultural veio a mostra do Fumaça da Terra. De vez em quando pode ser encontrada tomando café numa padaria paulistana, onde já concebeu um seminário catalisador para colocar ordem nos conflitos milenares do oriente - uma homenagem à sua genealogia libanesa e fruto da vocação brasileira para a diplomacia e a cordialidade. mais uma pitada de quem sabe que uma pessoa só pode fazer muita diferença no mundo.

O seminário, claro, aconteceu. Denise pensa grande e faz grande. É certo que somos apenas uma parte insignificante do universo, mas certamente, sem arte como a dela, o universo estaria bem mais pobre, e bem menor.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A longa história de um breve romance




Em dezembro de 2009, fui conhecer a então nova Livraria da Vila do Shopping Cidade Jardim, em São Paulo, e fiquei extasiado diante daquelas prateleiras cobertas de livros e, no centro, o auditório envidraçado que parecia flutuar entre as estantes, obra do arquiteto Isay Weinfeld.

– Ah! – exclamei, ao lado do proprietário da loja, Samuel Seibel. – Dá vontade até de escrever um livro aqui dentro!

Samuel olhou para mim, divertido, e provocou:

– Por quê não?

Surgiu então a ideia do “Escritor na Livraria”. Samuel reservou para mim uma mesa, colocada ao lado do auditório, no amplo mezanino da loja; eu passaria ali um mês, numa espécie de reality show. Escreveria um livro ali e meu computador estaria conectado a outra tela, voltada para o lado contrário, para as pessoas que circulavam pela loja verem o que eu estava escrevendo, em tempo real.

Escrever é por definição um trabalho solitário, e gostei da ideia não apenas por fazer algo diferente, como pelo fato de que o processo de trabalho poderia contribuir para o livro que eu vinha justamente imaginando. Na época, eu andava sob o efeito da leitura de Kafka, e de uma frase, que acreditava ter lido em algum lugar, talvez Kierkegaarde, certamente Kierkegaarde, segundo a qual a felicidade depende da incerteza. Claro, imagine se todo mundo soubesse como irá morrer: a condição para ser feliz é não saber.

Tinha de ser um livro curto, de impacto, um desafio para mim, autor de livros de fôlego; com aquela estranheza kafkiana; e com o tema da incerteza, que ganharia força pelo método: eu permitiria que as pessoas pudessem ler e interferir durante o trabalho, de maneira que eu mesmo não saberia qual o rumo que a história tomaria. No final da tarde, o resultado do trabalho do dia seria pulicado em um blog, no qual os frequentadores da loja poderiam continuar acompanhando diariamente o andamento da história.

Quando me instalei na livraria, eu sabia apenas duas coisas: o título, provisório (“Ensaio sobre a incerteza”), e uma frase inicial (“Você quer mesmo saber?”). O título cairia ao longo do trabalho, mas a primeira frase persistiu. Eu começava 11 horas da manhã e encerrava o trabalho por volta das 18:00, num expediente normal de trabalho, incluindo sábados. A pessoas passavam, primeiro, desconfiadas; aos poucos ganhavam coragem e vinham falar comigo, para entender o que estava acontecendo. Com o tempo, passavam a participar e colaborar de verdade. Assim, fiquei sabendo que o nome que havia escolhido para a cigana não podia ser aquele; troquei-o para Rosa, que, conforme fiquei sabendo, é um nome cigano. Surgiram jornalistas, para gravar entrevistas, fotografar e escrever sobre o evento; eles também liam o que eu escrevia, interferiam e escreviam sobre o que mudava na história.

Lembro especialmente de uma mulher, que sentou-se à minha frente e me contou longamente sua história. Tinha nascido numa cidade ribeirinha do Amazonas, uma vila de pescadores, distante da civilização. Certa vez, quando tinha nove aos de idade, ciganos passaram por ali; uma cigana velha a tinha visto, lera sua mão e dissera que ela ainda seria muito rica e viveria na capital. Para quem habitava a floresta selvagem, aquilo parecia absurdo. Na adolescência, ela visitou Manaus para realizar um sonho de criança: conhecer o teatro Amazonas. Lá, encantou um rico médico carioca com quem rapidamente se casaria; foi morar no Rio, teve filhos e há quarenta anos vivia dentro de uma família feliz. Um conto de fadas. “Eu acredito em ciganas”, ela me disse, antes de ir embora.

O curso da obra ganharia outra interferência importante, que mudaria o rumo da história. Naquela época, o noticiário começava a repercutir as denúncias sobre Roger Abdelmassih, o dono de uma célebre clínica de fertilização em São Paulo, acusado de assediar brutalmente suas pacientes. Um médico inspirado em Abdelmassih (o doutor Perez, ou o “Monstro”, como as vítimas de Abdelmassih o chamavam) foi incorporado ao romance; o jogo entre marido e mulher ganhou novo elemento de impacto e o Dr. Jekyll contemporâneo se tornou personagem pivotante.

No mês em que passei na livraria, conheci seus funcionários, que gostavam muito do que faziam; era bom conversar com eles sobre música, livros e arte em geral; passeava pelo shopping de carrinho de golfe com Papai Noel, de quem me tornei amigo; assisti um filme erótico estrelado por Paolla de Oliveira, sozinho na sala de cinema; uma tempestade de verão apagara a luz do bairro e não pude trabalhar – o Cidade Jardim tinha gerador e, além dos elevadores, o cinema era a única coisa que funcionava no Shopping. Encerrei o trabalho no dia 24, véspera de Natal, como planejara, deixando o livro incompleto – para escrever em casa o trecho final, que as pessoas só poderiam ler quando o livro fosse publicado em papel.

Eu estava satisfeito. E cansado: não é fácil se concentrar para escrever com tanta gente em volta interrompendo, embora eu, como jornalista treinado a escrever em redações com mais de uma centena de pessoas, e romancista trabalhando em casa com um filho pequeno, soubesse lidar com a perturbação razoavelmente bem. O evento foi um sucesso: promoveu a nova loja e cheguei a ser convidado para repetir a proeza numa livraria em Lisboa, a convite do Sapo – o maior portal da internet no país, que queria transmitir a redação do livro em tempo real com uma câmara “24 horas”. Agradeci, mas recusei: repetir o feito, ainda mais longe da família, por trinta dias, seria demais para mim. Além disso, tinha um emprego à minha frente.

Como as surpresas do destino do qual trata, o Linha da Vida ficaria parado no estágio em que encerrei o trabalho na livraria, por um longo tempo. Em novembro de 2009, eu também recebi um convite para ser o diretor editorial da Saraiva, a maior rede de livrarias e uma das maiores editoras do Brasil; em janeiro, ao assumir o cargo, com a responsabilidade de desenvolver as publicações de ficção e não ficção da editora, deixei o romance dormindo em seu berço virtual. E só agora, novamente fora da vida corporativa, pude concluí-lo.

Revi o texto, que se manteve fiel aos propósitos originais: o tema, o tamanho, a busca pelo impacto. Mudou um pouco, contudo, a direção; criado ao sabor dos acontecimentos, ganhou mais foco quando percebi, afinal, porque havia me interessado pelo tema e pela história.

Está concluído Linha da Vida, um breve romance com uma longa história: resta agradecer a todos os que com ele colaboraram, incluindo o Destino.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Pensamentos

Contra o fato há mil argumentos.
*
Cada um merece a consideração que dá.

*
Quem tem formação humanística erra melhor.
*
O julgamento mais importante é o do espelho.

*
A escuridão é o melhor  espelho.
*
A história é a engenharia do tempo.

*
Só as ideias são imortais 

*
A incerteza é a verdadeira sombra do homem.
*
Até quando não têm amor, todas as histórias são de amor.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A lição de Eva: uma releitura do papel na mãe da Humanidade e das mulheres a partir da Bíblia

Ela sempre foi vista como um mero subproduto de Adão e a pecadora que levou o homem à perdição. Agora, a mitológica mãe da Humanidade é revista como uma mulher capaz de assumir riscos, que defende o direito ao conhecimento e é a primeira entre as mulheres da Bíblia a desafiar, em nome da liberdade, a autoridade ? não só a masculina como a do próprio Deus.


Por muito tempo, a imagem de Eva foi associada ao pecado, fundamento de antigas tradições na qual as mulheres, ao mesmo tempo em que são o esteio da família, foram também o seu fator de desestabilização ? a marca da tentação, simbolizada pelo seu papel no pecado original. Eva é quem leva o inocente Adão a comer o Fruto Proibido. Funda uma existência de busca pelo conhecimento e o prazer que nem a pena ? perder o direito à imortalidade ? é capaz de desestimular. Traz a dor e condena a Humanidade movida pelo mais fútil dos motivos: a curiosidade. Inaugurava a galeria de mulheres bíblicas vistas como rebeldes, subversivas e pecadoras.

Vivendo num ambiente patriarcal, onde o poder masculino era absoluto e ao qual não havia outra saída exceto a submissão, elas tinham liberdade somente quando desafiavam o poder masculino por artes há muito associadas ao ?sexo frágil?: a sedução e a dissimulação.

Bem, tudo isto está mudando. Novos estudos da Bíblia têm feito uma uma leitura mais contemporânea do mito fundador da sociedade ocidental e da sua protagonista, tão polêmica quanto fundamental no nosso imaginário. Segundo essa revisão, a mãe literalmente de toda a civilização é de fato a personagem quem lança a pedra fundamental da Humanidade, por seu desejo de adquirir conhecimento, renunciando ao paraíso e à promessa de imortalidade em defesa de sua auto-determinação e pela capacidade de, também como Deus, poder dar a vida.

A antiga pecadora agora surge como a uma mulher modelar, capaz de desafiar as convenções, assumir riscos e escolher a busca da sabedoria e de uma vida de intimidade plena com seu homem - matriz de uma tradição monogâmica que perdura na sociedade ocidental até os dias de hoje. agora é o elemento de tangência que induz o homem a buscar a sabedoria, não apenas pelo conhecimento do sexo, mas num sentido mais amplo. E que inspira o casal a ter coragem de lutar pelo seu próprio destino, mesmo contra os desígnios divinos.

?Eva é uma mulher que assume riscos, em seu nome e do companheiro?, diz a psicanalista Naomi Rosenblatt, autora de After the Apple: Women in the Bible: Timeless Stories of Love, Lust, and Longing.

Os escolásticos hoje apontam que tal visão se deve a antigos preconceitos e atribuem a associação entre a mulher e o mal ou o pecado na Bíblia muito mais à interpretações baseadas em pontos de vista arcaicos, difundidos por igrejas ou pela transmissão do conhecimento popular, que propriamente pelo texto original. Na Bíblia, de fato, com raras exceções as mulheres recebem algum castigo. A maioria revolta-se contra algum tipo de opressão e a autoridade masculina, quando ela é injusta ou insuficiente para preservar a família. Ao contrário, muitas vezes elas são recompensadas. Agora, o que se destaca são outros aspectos também contidos no texto bíblico. Em boa parte, eles são ressaltados pelo fato de que hoje há muitas mulheres estudiosas dos textos bíblicos, que chamam a atenção para aspectos bem mais complexos dos personagens femininos.

Por essa leitura, as mulheres da Bíblia já se pareciam em muito com as mulheres contemporâneas, assim como os relacionamentos têm muita semelhança com os da sociedade ocidental de hoje. Assim como nós, os personagens da Bíblia são profundamente humanos, com suas lutas, dificuldades, forças e fraquezas ? e as mulheres não são diferentes. Mesmo sendo menos numerosas na Bíblia que os homens, elas têm sempre um papel muito forte. Tentam acertar em seus relacionamentos e são os principais personagens das histórias das quais tomam parte. São as primeiras a questionar a autoridade, a assumir riscos, quebrar regras do poder constituído. As mulheres da Bíblia mostram-se também defensoras ferrenhas da família, cuja descendência procuram preservar a qualquer preço, num instinto natural de preservação da espécie.

A jovem Eva não apenas toma a iniciativa, conduzindo Adão ao fruto proibido, como desafia o poder divino. Ao deixar o paraíso, desdenha aquilo que deixa para trás, satisfeita por ganhar o livre arbítrio, mesmo ao preço de sua recém-adquirida mortalidade. Sarah coloca outra mulher na cama de Abraão, para que dê ao marido o filho que ela própria não pode lhe proporcionar. (Mais tarde, é premiada com um bebê mesmo fora da idade em que é possível a concepção). Séfora impede Moisés de sair de casa, destruindo a família, da forma mais radical: toma nos braços o bebê do casal, Gérsom, e ameaça passar-lhe a faca, caso o marido a abandone.

Por trás das aparências da sociedade patriarcal, revela-se o exercício de uma grande autoridade e de uma infuência decisiva no curso dos acontecimentos. Hoje, são mais valorizadas personagens bíblicas como Débora, uma espécie de Anita Garibaldi da antiguidade, que lidera os exércitos hebreus em batalha. Ou Rahab, a prostituta que auxilia os espiões de Josué a escapar de Jericó, correndo risco de pagar com a vida. São mulheres inteligentes, capazes de tomar a iniciativa, que se negam a curvar-se diante das circunstâncias mais difíceis e nas quais o ambiente patriarcalista não deixou qualquer problema de auto-estima.

Tanto o Velho como o Novo Testamentos, os personagens bíblicos fazem parte de uma sociedade predominantemente masculina em que a poligamia é amplamente aceita. Com a história de Adão e Eva, mito fundador da família ocidental contemporânea, porém, a Bíblia estabelece a monogamia não como um padrão imposto por Deus, mas a fórmula menos problemática para a base familiar. Essa ideia é reforçada pelas histórias a seguir, nas quais os casamentos múltiplos dão errado ou causam inúmeros problemas. A rivalidade de Rachel e Lea, duas irmãs casadas com Jacó, assim como a das mulheres de Elkaná e as tribulações de Davi com suas numerosas esposas apontam para a vida caótica de núcleos familiares cheios de dissenções, traições e dissabores.

Enquanto isso, o casamento de Abraão e Sarah, em que pese a disposição da mulher de ceder seu lugar para garantir a procriação, é um relacionamento modelar, assim como o de Rebeca e Isaac. No Gênesis, ao criar a mulher, deus não imaginou mais alguém ao lado de Adão, exceto Eva. Ao ver Adão solitário entre os seres que habitam o Jardim do Éden, Deus pensa em lhe criar uma companheira. Tal combinação garante intimidade, companheirismo e afeto mútuo que antes só encontrava paralelo no relacionamento entre o homem e Deus.

Sexo não é assunto proibido na Bíblia. Dalila arrasta Sansão pela perdição atraindo-o claramente com seus favores entre os lençóis. Este novo tratamento desmistifica a idéia de que os personagens da Bíblia são santos ou sagrados, e também a de que são essencialmente pecadores. São seres humanos feitos à imagem e semelhança de todos os mortais, com seus erros e acertos, dilemas e certezas, medos e coragem. Desde que Eva decidiu questionar as regras do Jardim do Éden, desafiando a Deus para adquirir liberdade, reivindicar seu direito ao conhecimento e poder também criar a vida, o ser humano não se modificou essencialmente ? e mostra-se que a mulher já tinha muito do livre arbítrio, da importância e da independência que possui na sociedade ocidental contemporânea.

Ponto de partida para a história do homem, o amor entre Adão e Eva é feito de união contra as dificuldades, escolha da liberdade, desejo e amor. A ambos é oferecido o Paraíso por um Deus todo-poderoso que cria o ambiente perfeito não apenas para existir como para ser maculado: um homem, uma mulher, um jardim luxuriante, a serpente e o fruto proibido. É uma parábola sobre o livre arbítrio, a capacidade humana de escolher, a responsabilidade assumida pelas decisões e a necessidade de arcar com suas consequências.

Ao contrário da noção de que a Bíblia associa a mulher ao sexo e o pecado, o surgimento de Eva a princípio não tem qualquer ligação com a relação carnal. No texto bíblico, não é Adão quem pede por uma companhia. O próprio Deus conclui que aquela criatura solitária necessita de um interlocutor para sair da solidão. ?Não é bom que o homem esteja só?, diz ele. ?Vou fazer uma companheira que lhe corresponda.? Em Eva, ?carne da sua carne?, Adão passa a ter alguém que fala e ri como ele, diferente nas formas, mas igual moral e espiritualmente. A Bíblia lança o companheirismo como o vínculo inicial e predominante da relação entre homem e mulher. O desejo sexual aparece somente depois. O bem primordial do relacionamento é a cumplicidade.

O nascimento de Eva tem natureza simbólica, pois contraria a ordem natural das coisas, já que todos os homens nascem da mulher, e não ao contrário: ?Deus fez cair torpor sobre o homem e ele dormiu. Tomou então uma de suas costelas e fez crescer carne em torno dela. Depois, da costela que tirara ao homem, modelou uma mulher.? Os estudos mais recentes da Bíblia questionam a tradução que deu origem à versão corrente da Bíblia. Linguistas apontam que a palavra hebraica ''tzela'' é usualmente traduzida como ?costela?, mas tem o sentido de ?lado?. A ideia de que a mulher foi criada ?ao lado? do homem?, como se fossem um mesmo corpo, integrante de um mesmo corpo, e não um mero subproduto, é reforçada logo adiante: ''por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe e se une a sua mulher; assim eles se tornam uma só carne.?

No Jardim do Éden, aperfeiçoado com sua nova habitante, há apenas uma regra de ouro. A liberdade de homem e mulher é limitada: Deus avisa que que nem o homem ou a mulher devem tocar no fruto da Árvore do Conhecimento, no centro do jardim. Mais uma vez, os linguistas buscam dirimir as controvérsias sobre essa passagem bíblica. A palavra hebraica para conhecimento (da'at) é a mesma utilizada para o conhecimento sexual. Dessa maneira, implica-se que os tradutores iniciais do texto se ativeram à implicação sexual do termo, mas cuja redação original poderia utilizar a palavra no sentido do conhecimento mais amplo.

Entra então em cena a serpente, o agente perturbador da ordem, símbolo fálico e ente maléfico, definido na Bíblia como o ?mais astuto do animais?. O Criador garante que quem comer do fruto proibido da Árvore do Conhecimento pagará com a vida, penalidade máxima para a transgressão de uma lei feita para ser quebrada. A serpente, porém, é mais exata, ao dizer a Eva que ela ?não morrerá, mas Deus sabe que, no dia em que dela (da árvore) comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal?.

Na tradição cristã, Eva leva Adão a cometer o ?Pecado Original?, simbolizado pela degustação do fruto proibido. No texto bíblico, ela é a primeira a conversar com a serpente e avaliar os benefícios do que o réptil lhe propõe. ?A mulher viu que a árvore era boa no apetite e formosa à vista e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento?, diz o texto. Porém, quando come do Fruto Proibido, Adão está ao lado de Eva, num ato que pressupõe uma reflexão anterior e a concordância do consorte. Homem e mulher exercem a cumplicidade para a qual Deus os criou voltando-se contra a sua determinação.

Na interpretação mais atual do mito, Eva é atraída pela serpente não por ser mais frágil ou o veículo mais suscetível do pecado, mas porque foi desenhada para perpetuar a espécie. Esse desenho é biológico e mental. A compulsão de Eva pelo conhecimento é maior que o do homem porque faz parte de seu papel. A ela cabe a decisão de transgredir o paraíso, não por luxúria, mas pelo fato de carregar a maior responsabilidade. É ela a responsável pela continuidade da espécie. É ela que fica grávida, amamenta e assume as principais responsabilidades da procriação e, por conseguinte, da família. Toma decisões mais calculadas e por isso é também mais convicta. Sua força vem daí: a necessidade de procriação supera o dilema moral.

O efeito do Fruto Proibido é imediato: Adão e Eva cobrem-se de folhas, envergonhados de sua nudez. Vergonha, desejo, culpa e uma certa noção de privacidade desvelam-se repentinamente. Adão esconde-se. Localizado pelo Criador e instado a dar explicações, como um aluno malcomportado, numa atitude pouco nobre ele dedura a mulher. Eva justifica-se com a sedução da serpente. São então todos condenados, a começar pelo réptil, amaldiçoado e condenado a rastejar eternamente. A Eva, Deus impõe as dores do parte e a submissão ao marido. Ao homem, a condenação divina é o trabalho: ?Com o suor do teu rosto comerás o teu pão até que retornes ao solo, pois del foste tirado. Pois tu és pó, e ao pó voltarás?.

Apesar do constrangimento pelo ato de rebeldia, Adão e Eva em nenhum momento manifestam arrependimento. Está estabelecida a independência do ser humano, reafirmado o seu livre-arbítrio e assinalado que ele tem de buscar a felicidade por seus próprios meios. Não é, ao contrário da voz corrente, uma opção pelo pecado, palavra que em nenhum momento aparece na história, muito embora a famosa refeição tenha sido posteriormente rotulada como o Pecado Original. Nem essa palavra é utilizada para descrever o comportamento de Eva, n sentido de ruim ou pecaminoso. No Gênesis, em vez de pecado, ou de um grande erro, a decisão de escolher o conhecimento, mesmo sob a pena da mortalidade, é uma opção. A noção de pecado somente surge na Bíblia vez pouco mais tarde, quando Caim mata seu irmão Abel. Os filhos de Eva serão os protagonistas de um crime e da primeira tragédia humana.

Anátema para seguidas gerações de mulheres, a frase bíblica em que Eva é condenada a submeter-se ao homem ? ?teu desejo te impelirá ao teu marido e ele a dominará? ? teve implicações reais, na medida em que a leitura ao pé da letra convinha a padrões estabelecidos. Não é mais assim. Para os estudiosos da Bíblia, a sentença não se sobrepõe ao fato de que o relacionamento entre Adão e Eva é de colaboração, e não de dominação. Por sua vez, o homem não é apenas o único provedor da família por meio do trabalho.

Não existe nenhum registro na Bíblia de como Adão e Eva reagiram à condenação divina, mas não significa que houve concordância com a pena. Embora tenham se tornados mortais, condenados a voltarem ?ao pó?, o Gênesis trata a saída de Adão e Eva do Paraíso como um renascimento. Ele deixa de acusar a mulher. Chama-a pela primeira vez de Eva pois ela seria daria início à linhagem de todos os seres humanos - Havvah, em hebreu, seria uma derivação hayah, que significa ?viver?. Está fundado o arquétipo de todas as mulheres em todos os tempos: um ser destinado à criação. Não parece a reação de dois condenados à morte, mas de um casal reunido na missão de viver juntos e realizar uma obra segundo seus próprios desígnios.

Eva veste então a primeira peça da moda feminina na história da Humanidade, com a ajuda do próprio Deus que a condenou. Primeiro estilista da tradução escrita, o Criador substitui suas precárias folhas de parreira por um conjuntinho de peles costuradas. Num gesto de complacência com seus rebeldes, a roupa servirá para proteger também as crianças da intempérie fora do Éden, definido na Bíblia como um paraíso terrestre em algum lugar do ?oriente?. As roupas ganham também o sentido histórico do início da civilização, entendida como todo produto do artifício humano para sua sobrevivência.

Na saída do Éden, surge outra árvore mencionada no texto bíblico, porém sem nenhuma função até esse exato instante. No plural majestático, que mantém a natureza divina do ser humano, ou reduz a divindade a uma criação do próprio homem, Deus declara: ''Se o homem agora já é como um de nós, versado no bem e no mal, que agora ele não estenda a mão e colha os frutos da árvore da vida, coma e viva para sempre?. Manda então que querubins e as chamas da ?espada fulgurante? montem guarda no portão do paraíso para proteger a Árvore da Vida, de modo a evitar que o homem volte e tome do seu fruto também.

Está desenhada a separação entre o homem e Deus: ambos podem dar a vida, mas só Deus é eterno. Dessa forma, somente pela procriação Adão e Eva podem garantir a eternidade: não de si mesmos, mas de sua linhagem, uma saga cujo início a Bíblia tratará de traçar ao longo de todo o Velho Testamento. Adão e Eva partem para o mundo não mais como crianças, mas adultos num mundo imperfeito.

Em vez de olhar para trás, onde as portas se fecham Eva olha adiante, para onde elas se abrem. Sua participação na expulsão do Homem no jardim do Éden não é humilhante. Ao contrário, rejeita a perfeição, à qual atribui um componente tedioso. Quando olha para a Árvore do Conhecimento, ela se pergunta para que serve a vida se não pode ser desfrutada com a sabedoria trazida pela experiência. É dela o papel mais importante na solução do primeiro dilema moral do livro sagrado. Adão e Eva partem convictos da escolha que fizeram para fundar sua família. Não choram nem cobrem a cabeça de cinzas, como fartamente retratado nas imagens que procuraram reconstituir esse momento simbólico. Saem conscientes de que sua vida tem o sentido de amar e reproduzir a vida. Têm consciência das dificuldades e de sua responsabilidade. Graças à ousadia de Eva, o ser humano atinge todo o seu potencial, desfrutar plenamente dos prazeres da vida e encontrar a paz espiritual confortado pelo amor familiar.

Em qualquer das formas que ligam o casal, seja como companheiros, parceiros ou amantes, a Bíblia coloca Eva num papel preponderante, não apenas pela iniciativa, como pela construção do núcleo familiar e tudo aquilo que ele representa. Ela não é uma sedutora pecaminosa, ao contrário do que a tradição popular lhe atribuiu, nem uma vítima totalmente inocente da serpente sedutora. Dela parte a maior lição: a de que a missão da vida é aproveitá-la, não escapar da morte. É lição fundamental de toda sabedoria, aquela que somente a mãe, a amante e a esposa saberiam dar. Como humanos, a inexorabilidade da morte apenas aumenta a necessidade de fazer o melhor da vida, com um sentido de urgência que ultrapassa proibições.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Prece da terra


Passageiros do tempo
Sem começo nem fim
Testemunhas transformadas em inextinguível parte
Do rio que corre rumo ao certo desconhecido

Senhores da paisagem
As nuvens benfazejas na primavera da manhã
A resplandecer ao sol esperança e vida
Levantando o vapor na prece matinal da terra
A chuva e o arco iridescente
Porta celestial do agreste
Por onde entram os sonhos

As estrelas que vemos e não vemos
As que brilham além do além
A lua no frescor miraculoso
Beleza estéril no deserto celeste
Que ganha brilho quando aqui estamos
Nós que damos vida e sentido ao infinito nada

Pradarias e ravinas
Todos os verdes que eu já vi
Aves brancas que revoam na tarde finda
Povoando e destruindo o ninho acolhedor

Os sons da mata
Silêncios partidos
O zunido do vento
O rosnar do trovão

A brisa cortante
O bafo quente e pulsante
Das tardes lentas
E surdas do verão

A chuva em torrente
A lavar o presente
Fecundando a paixão

No afã da cozinha
O fogo a bailar
As mãos generosas
O abraço fortuito
Que se põe a dançar

A água mata a sede a morte da gente
E nas noites de calma e vigília
Uma cidade aos pés
Flores e perfumes bailando
Seja festa ou solidão
Suor do rosto ou sangue vertido
Descanso do cavalo a galope
Ou da caminhada sem rumo
Que busca a trilha inesperada

Reencontro da paixão
Viver e dominar o instante
Teimosos como a Terra
Estações e seus destinos
E quando tudo parece acabado perdido
Acho de novo a morada
E voo

Se o tempo permite que ainda se escreva
Ou reescreva o que não foi o mais certo
E ponha o meio ao inteiro
E revele o que não foi descoberto
É certo:

Meu veleiro nas nuvens
Onde quis fundear
Um amor verdadeiro
Bem podia ter sido o primeiro
Todo o tempo esteve por lá

Um dia a barca nas nuvens
Será parte do sempre
Escombro, talvez, entre
Galhos e ervas e traves moídas de podre
O chão rachado de sol e intempérie
A cinza do fogo esquecido da gente

Mas entre as raízes que reclamam espaço
Levantarão não velhos fantasmas
E sim as sementes levadas ao vento
A fecundar outra era e lugares
Fruto do amor que é eterno presente
Bem que nunca se acaba

Para ler mais poemas de Thales Guaracy:
http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/4882279/inventario-da-emocao

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Para voltar à vida: Poema Sujo

Para voltar à vida, como eu, que hoje volto a escrever, como é bom ler: Poema Sujo, de Ferreira Gullar. O poeta que se acha perdido, às vésperas da prisão, da tortura, talvez da morte, numa cidade de outra pátria, não escreve da prisão, da tortura, da morte. Repassa a vida, a infância, a cidade natal, os personagens que afloram da memória: o que importa. E vemos São Luís do Maranhão, não essa dos cárceres dantescos, torturada pela dinastia Sarney, e talvez nem mesmo como ela já foi, mas como sabia a Gullar.

Um poema forte, mais belo no começo até, do que no final. Não rebuscado, nem complexo, ou profundo, como Leaves of Grass, o grande poema-testamento de uma vida, de Walt Whitman, escrito e reescrito ao longo dos anos, como se um escritor tivesse um livro apenas para escrever na vida, o livro dele mesmo. (Embora um autor saiba que, mesmo com muitos livros, todos eles falam de uma forma ou outra dele mesmo, de maneira que sua obra, no final, é como um livro só).

Leaves of Grass é extraordinário como testemunho, e poema sujo também, mesmo para quem não conhece São Luís, ou Gullar. cada um pode rever sua própria vida, porque ele provoca em nós as mesmas evocações. A docilidade da infância, os desejos da adolescência; a volta ao passado é uma volta ao interior de nós mesmos. Eu mesmo sinto uma coisa: quanto mais o tempo passa, mais me aproximo da infância, mais lembro dela, mas retorno aos sentimentos primeiros, que moldaram o que sou hoje, e são provavelmente as únicas coisas que nos restarão na hora final. Visitamos nossos labirintos, passagens que o tempo escava na gruta da alma, e, eu diria, até mesmo na nossa carne.

Para quem acha que o Brasil não tem grandes autores contemporâneos, ou quem menospreza a poesia, essa arte meio abandonada, receito como antídoto: Poema Sujo. Ele nos reanima, dá vontade de viver, dá valor á vida, faz respirar melhor. Foi escrito nos tempos duros da ditadura, mas é literatura moderna e que vai perdurar.

*

Cada dia fico mais perto da poesia, que hoje prefiro, mesmo, ao romance. É mais curto, mas lúdico, instigante, revelador. O romance descreve, reconta, sugere; fotografa personagens, momentos, cristaliza as ideias. Poesia faz o mesmo, mas sua linguagem está mais perto da alma; mexe com o próprio sentido das palavras, revolve significados, revolve ideias e sentimentos. Ao arrancar raízes, expô-las, ela nos liberta. Faz do conhecido algo mais, e sempre há mais, porque cada indivíduo tem seu próprio universo, infindo e com galáxias sempre inexploradas, como na vastidão estelar.