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domingo, 27 de abril de 2014

A ressurreição de García Márquez

No final da vida, e mesmo antes disso, o escritor colombiano Gabriel García Márquez foi ficando cada vez mais parecido com Aureliano Buendia, seu personagem de Cem Anos de Solidão. Como cidadão, se tornou uma figura meio anacrônica, por seu chauvinismo declarado, e sua defesa incondicional do comunismo cubano, que hoje faz o país parecer um fantasma de si mesmo. Como romancista, foi um alquimista, capaz de criar ouro de matéria bruta. E acabou personagem mitológico, surrealista, ou, dentro da definição clássica de sua literatura, realista-fantástico.

Márquez na verdade não foi o inventor do realismo fantástico, um tipo de literatura surgida pela pena de Jorge Amado, que muito antes se tornou um latino-americano de expressão internacional, com personagens como o coronel que tem o diabo preso dentro de uma garrafa ("Terras do Sem Fim"), a mulher que materializa um fantasma (Dona Flor e seus Dois Maridos) ou o bêbado que engana a morte ("Quincas Berro d'Água"). Porém, Márquez deu uma dimensão ainda maior para a literatura latino-americana, com seu poder imagético, sua capacidade de condensação conceitual, que faz um simples parágrafo de seus livros ter a força de uma história bíblica.

Construiu uma obra tão vasta quanto sólida, na qual se desfruta do seu estilo inconfundível em todas as páginas. A pior de suas obras(talvez, apesar do belo título, "Do Amor e Outros Demônios") é melhor do que a maioria dos bons livros da maioria dos grandes autores. Em Márquez, a qualidade não depende do tema nem do tamanho. Ele imprime sempre a sua marca, seja no vasto e bíblico "Cem Anos de Solidão", seja na ópera ligeira e brusca de "Crônica de Uma Morte Anunciada". Márquez construiu milhares de fiéis leitores porque é sempre Márquez.

Vai com maestria do coração ("O Amor nos Tempos do Cólera") à política ("O outono do Patriarca"), fruto não de trabalho e elaboração, muito menos de acaso, e sim de uma cabeça cheia de imaginação, capaz de encadear as ideias, conceitos e imagens como um poderoso processador de histórias. Márquez fez a imaginação mais delirante se misturar de tal forma à experiência vivida que produz esse efeito de confundirmos verdade e fantasia e fantasia com verdade.

Muitas vezes Márquez disse que a diferença entre ficção e realidade em sua literatura não existe; o que existiu foi a realidade descrita a partir de seu ponto de vista, vindo de Aracataca, a cidadezinha do interior colombiano onde passou sua infância. Lá se produziu um milagre da literatura, que catapultou ao Nobel o escritor de um país que de outra forma seria conhecido pelo mundo apenas como o ninho do tráfico de drogas. Sem recursos, a ponto de enviar pelo correio somente o começo de Cem Anos de Solidão ao agente em Barcelona, por não ter dinheiro com que pagar a taxa de remessa do pacote integral, ele se tornaria um dos homens mais ricos da Colômbia, onde é considerado a versão de Deus com um bigode cucaracha.

Jornalista, produziu reportagens que parecem verdadeiros romances, como "A aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile", a história do cineasta chileno que volta a seu país clandestinamente durante a ditadura para produzir um documentário, correndo risco de morte. Ou "Relato de um Náufrago", em que ele conta o drama surrealista de um marinheiro que sobreviveu ao naufrágio de um navio de guerra que levava uma carga clandestina de eletrodomésticos ao seu país.

Diante do túmulo de Márquez, o que se pode dizer é que ele é um dos poucos escritores que continuarão vivos. Inspirador de muitas gerações de escritores (entre eles eu, que o tinha em mente quando escrevi "Filhos da Terra"), e capaz de realizar um grande milagre: fazer toda uma geração acreditar no poder transformador da literatura e na riqueza da vida, não importa onde está nosso berço, nem qual será o nosso destino. Se olharmos bem, todo homem pode ter uma vida de sonho, ou mágica. E ressuscitar no terceiro dia. Agora que Márquez está morto, por meio de sua obra, ele renasce para sempre.