sábado, 13 de junho de 2009

Uma vida que não acaba



Fui assistir “Viver sem Tempos Mortos”, monólogo de Fernanda Montenegro, montado sobre textos de Simone de Beauvoir, expoente do existencialismo e ícone da revolução do comportamento dos anos 1960. Um espetáculo forte, graças à interpretação de Fernanda, com os cabelos presos, a roupa presbiteriana e as mãos torturadas que reproduzem muito bem o estilo da célebre filósofa francesa. Com a energia contida e sóbria de sua personagem, sentada numa cadeira negra num cenário negro, Fernanda tira qualquer distração e destaca o poder de suas palavras.

Fernanda nos faz lembrar as idéias de Simone, cujo conteúdo filosófico não invalida certa beleza poética e uma dureza pragmática. (“O homem não é nada, até fazer de si mesmo alguma coisa”). Por meio de Fernanda, vemos Simone narrar a própria vida, seus amores, seus dilemas e convicções. Há muito sobre seu relacionamento com Sartre, um amor para o qual foi atraída pela inteligência daquele pensador “baixinho e feio”, mas que exercia sobre ela magnetismo irresistível graças “às palavras”, com as quais preparava até mesmo o sexo, e algo para ela essencial: ele a tratava como igual.

Por trás da vida de Simone, há essa preocupação essenciale obsessiva. Inteligência brilhante, ela assustava os homens e julgava que jamais teria um relacionamento comum para os padrões da época, nos quais a mulher tinha de se submeter à vontade masculina. Adepta do amor livre, mesmo quando desfrutava de outros homens sentia-se à vontade apenas no relacionamento com Sartre, cuja mente era tão privilegiada que podia dispensar a competição.

Mesmo quando viviam um casamento “aberto”, ou mais tarde, quando deixaram de ter relações sexuais, eles mantiveram uma cumplicidade rara, que durou pelo tempo de suas vidas, importante a ponto de fazer Simone, na noite da morte de Sartre, dormir com seu cadáver, gangrenado e coberto de escaras. Estiveram, assim, juntos por uma última noite, no leito de morte de Sartre, antes que seu corpo fosse levado por uma multidão ao cemitério.

Simone se tornou mais conhecida por livros como o “Segundo Sexo”, obras que marcaram o feminismo e o período de emancipação da mulher, assim como pelo seu relacionamento com Sartre. Tal qual ele, que lutou na segunda grande guerra, foi ativista da resistência francesa e tinha uma influência política importante na França e mesmo fora dela, ela era uma intelectual de ação. Sua filosofia se caracterizava por ser mais que o simples pensamento: era uma afirmação de que as idéias só têm importância quando se transformam em prática – aí, têm capacidade de mudar o mundo.

Engajada na vida e na política, num tempo em que as mulheres apenas adquiriam o direito ao voto, Simone dizia que sua a emancipação política do “segundo sexo” não se dava apenas pela participação nas urnas, mas em todas as áreas da vida – no igual direito ao trabalho, à participação nos sindicatos e em todas as formas de vida social.

Simone fazia da filosofia a sua vida, intelectual de seu tempo, participativa e ao mesmo tempo sensível. Como Sartre, era uma ensaísta lúcida e ousada, mas utilizava também a literatura como meio de expressão para suas idéias filosóficas, o que melhorava ambas as coisas – a filosofia e a ficção.

Além de Os Mandarins, original pelo estilo – é na verdade um grande diálogo -, Simone deveria ser lembrada por outro romance que, a meu ver, é sua melhor obra. Pérola da ficção existencialista, ao lado de O Estrangeiro, de Camus, e A Idade da Razão, de Sartre, o romance Todos Os Homens São Mortais conta a história de uma moça que conhece, como hóspede no mesmo hotel onde se encontra, um homem imortal. Ali, ele lhe conta sua longa, aventuresca e intrigante história. Sequiosa de vida, a moça pede ao Imortal que ele ao menos se lembre dela para sempre – uma maneira de fazê-la também não morrer.

São tantos os anos e pessoas que com ele cruzaram em sua interminável existência, porém, que nem mesmo a lembrança é possível. Épocas, datas, nomes, tudo vai perdendo importância. Para o Imortal, a vida segue como uma sequência dolorosa de perdas de entes queridos, que ao longo do tempo vai se transformando numa sucessão tediosa de rostos, numa repetição das mesmas coisas. Em vez de um privilégio invejável por qualquer ser humano, a imortalidade se transforma numa verdadeira maldição.

Simone diz em Todos os Homens São Mortais que a morte dá sentido à vida. Não fosse finita, a vida se perderia. Com seu Imortal, ela ilustra com clareza não apenas a importância da morte, como o fato de que vida e morte são a mesma coisa: dois lados da mesma moeda. Vivemos com a morte, mas com a morte podemos também viver. E ao morrer, ato final, Simone também fez de sua vida e sua obra algo ainda vivo nos dias de hoje.

O que é ser homem


Lições em verso para um adolescente

Tenho um rapazinho de treze anos em casa a quem eu tento dar bons exemplos e alguma educação. É meio inútil, sobretudo hoje em dia, em que tanto o exemplo quanto a educação parecem não ter grande efeito, ou um efeito ainda menor do que quando eu mesmo era adolescente. Mas eu sou teimoso.


Como todo adolescente, este aqui anda numa fase meio preguiçosa, deixando para trás os deveres para ficar com a diversão. Tem argumento para tudo, sobretudo questionar decisões de adultos. O que lhe sobre de argúcia falta em responsabilidade, das coisas maiores às mais simples. Sabe a Teoria da Relatividade, mas precisa que lhe mandem entrar no banho (e sair do banho também).

Para fazer qualquer coisa, é preciso repetir, repetir, repetir. Dizem que lá no fundo, nós adultos somos escutados. Não é educação, é inculcação. Tenho ao menos a esperança de que o que digo hoje valha para ele daqui a vinte anos, quando chegar a idade da razão.

É paradoxal a adolescência. Justo no momento em que o adulto começa a se formar, ele se mete a rebelde. Quando mais precisa aprender, menos escuta os pais ou responsáveis. Acha que sabe e pode tudo sozinho. Quanto mais corre perigo – e hoje o mundo parece tão perigoso –, mais quer se arriscar, como uma forma de emancipação, o primeiro gosto da liberdade.

É uma fase complicada, que exige dos pais muito equilíbrio. E uma paciência de Jó.

Isso sempre foi assim, mas hoje é mais. Porque, fruto da sociedade contemporânea, que atingiu o ápice do conhecimento e do individualismo, o adolescente hoje tem mais informação, mas tem menos valores; tem mais certezas, e menos sabedoria; mais autoconfiança, e menos respeito; mais interesses, e menos causas; mais objetivos, e menos ideais.

Antes que seja tarde, tenho tentado explicar o que vem a ser um homem, conceito meio perdido nestas circunstâncias, mas que eu procuro resgatar. O que é ser homem, afinal? Não se trata apenas de um ser do sexo masculino, resumido a um detalhe anatômico. Ser homem implica uma noção geral de caráter e comportamento que idealizamos desde crianças, quando queremos crescer e sermos alguma coisa da qual poderemos nos orgulhar.

Dizer o que é ser homem pode parecer simples, mas é a coisa mais difícil do mundo. Primeiro, porque parte desse código implica que homens de verdade não gostam muito de falar do assunto. Um homem não se pergunta a toda hora o que é ser homem; ele é um homem, e ponto. O que distingue o homem não é a quantidade de cabelos no peito, músculos e testosterona. É uma certa atitude perante a vida.

Um homem lida de um jeito diferente com os problemas e o medo. Tem que ter uma certa coragem desprendida. Uma maneira de rir da dificuldade – e da da facilidade também. Uma maneira de lidar com as mulheres – e de amá-las. Uma maneira de comportar-se. De pensar.


Um homem é uma junção de detalhes, dos quais tento me lembrar. E, quando tento me lembrar, recordo a melhor fonte para isto. Está tudo, ou quase tudo, num velho poema de Rudyard Kipling, o romancista britânico que se tornou mais conhecido como o autor do Livro das Selvas, origem do desenho animado Mowgli, O Menino Lobo.

Pois Kipling, um clássico da literatura juvenil, também era poeta – e escreveu em forma de poema a melhor definição do que é ser homem que eu já vi. E a versão para o português feita pelo nosso Guilherme de Almeida, quase uma recriação dos versos originais, na minha opinião ficou ainda melhor que no inglês.

Chama-se “If”. Ou, em português, “Se”.

“SE”

Se és capaz de manter a tua calma quando
todo o mundo ao redor já a perdeu e te culpa;
de crer em ti, quando estão todos duvidando
e para estes, no entanto, achar uma desculpa;
se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso;

se és capaz de pensar -- sem que a isso só te atires;
de sonhar -- sem fazer dos sonhos teus senhores;
se, encontrando a derrota e o triunfo, conseguires
tratar da mesma forma a esses impostores;
se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
em armadilhas as verdades que disseste,
e as coisas por que deste a vida estraçalhadas
e refazê-las com o bem pouco que te reste;

se és capaz de arriscar numa única parada
tudo quanto ganhaste em toda tua vida,
e perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida;
de forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar, seja o que for, que neles ainda existe;
e a persistir assim enquanto exaustos, contudo
resta a vontade em ti, que ainda ordena: persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
e, entre reis, não perder a naturalidade;
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes;
se a todos podes ser de alguma utilidade;
e se é capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho:

Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
e -- o que é muito mais --, és um homem, meu filho.

Se você tem um menino em casa, a caminho de ser homem, dê-lhe isto. Não servirá para nada, ao menos por enquanto. Mas se um dia, quando talvez ele tiver seus próprios filhos, e encontrar o velho poema entre seus guardados, junto com uma bola velha de futebol, um boné do seu clube preferido e um videogame cuja carcaça ficou de recordação, ele lembrará do dia em que ganhou isto.

E entenderá.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O homem que queria saber tudo


Entre em uma sala de aula de uma faculdade de jornalismo, pergunte aos estudantes: quem já ouviu falar em Getúlio Bittencourt? E eles ficarão quietos.


O jornalista é como a notícia que ele publica: no dia seguinte, é página virada. Mas eu vou dizer alguma coisa sobre Getúlio Bittencourt, que eu conheci há mais de vinte anos, na redação da Gazeta Mercantil.


Getúlio pousara na Gazeta como uma estrela do jornalismo. Ganhara ainda mais prestígio com um prêmio Esso que lhe fora conferido por uma entrevista com o presidente João Figueiredo, homem avesso à imprensa, de cujas idéias ele fizera um impressionante retrato, celebrizado pela declaração do general-presidente de que ele preferia aos homens o cheiro dos cavalos.

O que pouca gente sabe é que Getúlio tinha sido protocolarmente proibido de gravar a conversa. Dono de uma memória prodigiosa, transcrevera a longa entrevista de cabeça. E, das páginas inteiras de jornal que rendera o encontro, nenhuma palavra foi contestada.

Nascido pária, Getúlio era autodidata. Vivia aprendendo e gastava a maior parte do ganhava com livros, de maneira obsessiva, até perdulária. Baixinho, de voz fina, com cabelinho pixaim, era uma figura que poucos levariam a sério à primeira vista, o que o ajudava a prestar atenção em tudo, principalmente em conversas alheias, sem ser notado. Em circunstâncias que reuniam muitos jornalistas em busca de notícias, estava sempre longe das aglomerações, conversando com uma fonte ao pé do ouvido. Era esse o seu estilo.

Uma atitude definia bem seu jornalismo. Quando um entrevistado lhe perguntava o que ele queria saber, respondia, simplesmente: “tudo”. Era um concorrente difícil, sobretudo para mim, repórter principiante, que na época da Gazeta apenas começava a disputar com ele diariamente o espaço da primeira página do jornal.

Getúlio não foi apenas jornalista, mas uma figura ambivalente, que como muitos outros repórteres políticos acabou sendo envolvida pelo mundo do poder. Aproximou-se do ex-presidente José Sarney, graças não apenas à sua inteligência e qualidades profissionais como pelo interesse comum nos mistérios infensos à Razão.
Cerebral, Getúlio estudava astrologia como um pequeno cientista, o que para ele não era uma contradição. Chegou a escrever um livro, No Azul do Céu Profundo, em que expunha mapas astrológicos de políticos célebres e estabelecia relações entre o zodíaco e a política. A empresa por meio da qual recebia seus rendimentos chamava-se "Júpiter", elemento do sistema solar ao qual associava o sucesso financeiro que ele, gastador compulsivo, jamais alcançou.

Como a crença muitas vezes é que move a realidade, a astrologia de Getúlio realizou proezas bem concretas. Por suas previsões, transmitidas a Tancredo Neves pelo deputado Thales Ramalho, teria sido modificado o horário de funcionamento do colégio eleitoral que elegeu o primeiro presidente civil do Brasil depois da ditadura militar, em janeiro de 1985.

Levado ao Planalto, Getúlio foi um jornalista que salvou um jornal. Por sua influência astrológico-corporativa no governo, saiu um empréstimo do Banco do Brasil à Gazeta Mercantil, então em dificuldades financeiras, que lhe valeria anos de sobrevivência - e um lugar para Getúlio como correspondente do jornal nos Estados Unidos, onde ficou por uma década, depois de encerrada a gestão Sarney, como se faz com um benfeitor que merece uma boa embaixada.

A vida é cruel quando atinge as pessoas onde está seu dom. Tira as mãos de um pianista, como fez com o hoje maestro João Carlos Martins, ou a voz de um locutor, como aconteceu com Osmar Santos. A vida parece feita para testar o ser humano no seu máximo. E deu a Getúlio um tumor no cérebro, que nele não era apenas o escritório, um local de trabalho, como um centro de recolhimento, um mundo próprio, muitas vezes tortuoso e obscuro, onde se pode dizer que funcionava também seu coração.

Faleceu Getúlio Bittencourt, com apenas 57 anos. Uma página do jornalismo brasileiro foi virada. Amanhã, serão outras as notícias do jornal. Mas fica alguma coisa para a história, que registra uma perda importante, sobretudo pela falta de alguém que sabia muito bem contá-la.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Pensar é perigoso


Reflexos na vida cotidiana desse hábito revolucionário


Quando eu levantava algumas dúvidas sobre a vida e questionava nosso relacionamento, minha primeira mulher olhava para mim, com seus olhos cinzentos, e dizia, com uma ponta de desdém: “Você pensa demais”.


Levei algum tempo para entender o que ela queria dizer. Só hoje percebo melhor o alcance e as consequências do fato de que minha vida é pensar. Pensar, mas não apenas pensar: pensar para a ação.

Por pensar demais, deixei para trás uma porção de simplificações – a começar pelas da minha ex-mulher. Hoje entendo que por trás da crítica ao intelectual, interpretado como um mero e inútil criador de caso, havia algo mais. Melhor do que eu, minha ex-mulher intuía algo bem concreto. Pensar é perigoso. No fundo, creio é que ela tinha medo disso.

Pensar é perigoso porque o indivíduo que pensa se abre a possibilidades. Analisa, compara, estuda mudanças, novos caminhos. E é mais perigoso ainda quando quem pensa levar a sério o resultado do seu pensamento, transformando idéias e sentimentos em atitudes muito práticas.


Quem pensa - e age em função dessa força inquietante - é uma perturbação para quem precisa de segurança, sobretudo aqueles que dependem ou estão ligados a nós de forma permanente, como supostamente deve ser o casamento. Pensar é um hábito revolucionário. É o princípio das revoluções, das políticas às mais pessoais.

Um romancista é um pensador, um indivíduo sempre nômade, que analisa e explora possibilidades. Na pele de seus personagens, fala coisas diferentes do que diria na vida normal, passa por outras experiências e testa suas consequências num empirismo imaginário.

Não se trata apenas de fantasia. A ficção é invenção, mas a emoção colocada nos personagens é real, assim como os problemas da vida que os envolvem. Como um ator que se transforma em assassino, estuprador, vigarista, ou travesti, o romancista vive diversas vidas e procura encontrar o que há dentro dele algo que torne verossímil a sua criação.

Essa experiência pode ser perturbadora, não apenas para quem cria, como para aqueles à sua volta. A maioria das pessoas não quer ver destruído o mundo organizado a duras penas no qual elas se sentem mais seguras, confortáveis e por vezes mais felizes. A idéia de que é melhor não saber para nao ter que mudar é um padrão de muita gente.

Para os mais conservadores, a sensação é de que nunca se conhece realmente o indivíduo que pensa. Porque quem pensa pode sempre mudar, quebrar regras, subverter os padrões. Não se sabe exatamente em que mundo ele está ou a que tipo de ação suas divagações podem levar. O pensador é uma encarnação de variáveis.

Pensar – isto é, admitir mudanças – não significa que faremos coisas contra o bom senso, que mudaremos mesmo, ou que estaremos em mudança permanente. Mas pensar, em si, é uma forma de trair, pela simples aceitação das alternativas.

Existe uma diferença entre pensar e fazer, ou pensar e ser. Não há nada melhor do que pensar e não mudar, o que seria uma escolha mais consciente pela estabilidade, mas a natureza do pensador assusta, assim como onde seu pensamento pode parar.

Um exemplo. Há pessoas que leram meus romances e já me disseram coisas do tipo: “Como você pôde pensar naquilo, é tão cruel!” Como se alguém capaz de pensar em uma situação onde a crueldade se manifesta de maneira chocante faça parte de quem a criou.

Romancistas tiram da realidade a maior parte das coisas que não conhecem, não sentem ou não lhe pertencem, como um empréstimo. Eles não são seus personagens, elementos construídos para fazer sentido em si mesmos. Porém, a partir do momento em que aquilo foi recriado dentro de um livro, passou também a pertencer ao seu criador. E a simples ligação da criatura com seu criador, o fato de um ter saído do outro, já é suficiente para assustar outras pessoas.

A mente inquisitiva não pode ser vista apenas como uma ameaça que carregamos ao entes queridos e pessoas próximas. A mudança é também o que nos faz melhorar, criar coisas boas e atrair para as pessoas de que gostamos algo melhor – inclusive de nós mesmos.

Por trás das boas mudanças do mundo, desde as revoluções libertárias aos grandes engenhos, há uma história do pensamento e de pensadores que utilizaram sua inquietação permanente para fazer o mundo melhor. Isso funciona também no microcosmo onde vivemos. Um pensador procura, antes de tudo, se tornar um ser humano melhor. E isso faz com que todos os que estão à sua volta, de uma forma ou outra, acabem por se beneficiar.


Quem não aceita o pensamento escamoteia o fato de que a vida é mutante. E, na tentativa conservadora ou amedrontada de congelar no tempo, renuncia à vida.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Levantados do chão


Recomeços, de Lina de Albuquerque (Versar/Saraiva, 159 pág.)

Muita gente compra livros de auto-ajuda em busca de soluções fáceis para problemas pessoais. Se na era atual tudo é feito para tornar a vida mais fácil, da pizza delivery à lipoaspiração como forma de emagrecer sem exercício ou dieta, por quê não o livro?


Ocorre que a vida muitas vezes não é fácil; não há respostas iguais para pessoas diferentes, lições que sempre funcionam, saídas simples e indolores. O que mais ensina é a experiência humana: histórias verdadeiras, que tratam de problemas de todos nós, e se tornam inspiradoras, pois as respostas que ali encontramos são resultado da vida real em toda a sua complexidade.


É nesse segmento que se insere o recém-lançado Recomeços, coletânea de depoimentos recolhidos pela jornalista Lina de Albuquerque (Versar/Saraiva, 159 pág.). São relatos de 26 pessoas - algumas conhecidas, outras não – que tiveram de recomeçar a vida de certa forma. Na realidade, pode-se dizer que são 27 relatos, já que a própria Lina é um caso confesso, em função de uma tragédia pessoal: perdeu sua família num acidente de carro, no qual morreram seu pai, mãe e único irmão, além de um amigo da família.

Há recomeços provocados por tragédias, e outros não tão trágicos, porém importantes. Em todos os casos, o que há em comum é a sensação de que sair do fundo do poço ou levantar a poeira não depende exatamente da gravidade do que aconteceu ou do que está em volta, mas da capacidade individual de reação.

Uma pessoa pode sair de um drama pessoal destruída para sempre, assim como pode usar o que aconteceu como o próprio alimento para levantar-se. Nesse ponto, Recomeços é muito ilustrativo. Mostra de onde vem a energia vital, a fonte do espírito de luta que nos faz ter uma vontade de viver ainda maior, mesmo depois de grandes decepções, derrotas ou catástrofes.

As histórias são díspares: há melhores, há piores. Entre as piores, está a da apresentadora de TV e política Soninha Francine, que revela ter sido rejeitada pelas próprias filhas como mãe e afirma tê-las recuperado, porém sem contar de que jeito. Há histórias excelentes, mas já muito conhecidas, como a do pianista João Carlos Martins, que se tornou maestro e recuperou sua vida na música, depois da série de acidentes que, beirando a maldição, lhe tiraram boa parte do movimento das mãos.

As melhores histórias de Recomeços estão talvez onde menos se podia esperar. É tocante o depoimento da ex-chacrete Rita Cadillac, que revela no livro sua passagem pela prostituição, a incursão psicologicamente funesta pelo cinema pornô e por fim, já na maturidade, a recuperação da dignidade e do amor-próprio, ainda que temperados com uma dose um tanto dolorida de autoironia – como o desejo de ser sepultada de bruços, para ser reconhecida também na entrada do Paraíso graças à parte da anatomia que lhe deu fama.

Há também a história pungente de amor de dona Lily Marinho, que teve um casamento feliz na terceira idade com Roberto Marinho. Secreto apaixonado por Lily, o “doutor Roberto” esperou que ela enviuvasse de um grande amigo décadas a fio para declarar o seu amor. Lily narra as delícias de ter um grande amor, sobretudo numa fase da vida em que para muitos nada disso parece possível. E conta como lida com a perda na sua segunda e inestimável viuvez.


Prepare-se para emoções – e para pensar nos seus próprios desafios, fracassos e derrocadas, pois as comparações são inevitáveis. Mas é bom lembrar que, enquanto há vida, existe uma saída para tudo – basta dar o primeiro passo.

HAL e o Airbus


O perigo que a tecnologia representa para nossa segurança


Ninguém sabe ainda o que aconteceu com o Airbus A330-200 da Air France, com 228 pessoas a bordo, que desapareceu no meio do Oceano Atlântico, no trajeto do Rio de Janeiro para Paris. Os especialistas ainda tentam entender como um avião moderno, projetado para suportar condições as mais extremas pode simplesmente ter desaparecido.


O que se sabe é que o avião transmitiu diversos sinais automáticos de que estava enfrentando problemas com seus sistemas elétricos e pressurização da cabine, embora não como mensagens de emergência. Isso leva a uma preocupação bem própria destes nossos tempos. Ainda que o acidente com o Airbus não tenha qualquer relação com uma pane técnica, faz pensar no perigo que a tecnologia representa hoje para nossa segurança.


Hans Weber, presidente da Tecop, uma consultoria aeronáutica de San Diego, levantou em entrevista no New York Times um problema gerado pelos aviões informatizados, dos quais o Airbus representa a última geração. Weber já trabalhou na análise de dois casos ocorridos em Airbus da companhia aérea australiana Qantas, no ano passado, que perderam altitude violentamente, embora sem consequências trágicas.


O Airbus A330 é um avião altamente digitalizado. No lugar do antigo manche, é controlado por um joy stick semelhante aos de videogame. Seu sistema de comando é chamado de "fly-by-wire", isto é, no lugar do antigo sistema mecânico e hidráulico, ele muda a direção e inclinação da aronave por sinais eletrônicos, enviados nos cabos ligados aos motores instalados nas asas.


Como o controle do Airbus é quase todo automatizado, ele reduz muito a margem de manobra do piloto, que depende inteiramente do sistema eletrônico para operá-lo. E, quando o sistema eletrônico falha, o piloto pode se tornar também um mero um passageiro. Todo mundo que tem um computador em casa sabe que computadores dão pau. O Airbus é um computador que voa. E, nesse caso, o “pau” pode significar o fim.


O sistema fly-by-wire não apenas conduz o avião como é programado para agir por conta própria em caso de pane. Em alguns deles, o piloto não pode simplesmente cancelar esse mecanismo de proteção – no caso, por exemplo, do computador estar lendo errado informações em uma situação de emergência.
Na prática, piloto e passageiros se tornam reféns de um verdadeiro HAL, o computador que no filme 2001, Uma Odisséia no Espaço, passa a controlar a nave e, quando tentam desligá-lo, começa a assassinar seus ocupantes – o clássico de ficção científica de Stanley Kubrick que vai se tornando cada vez menos ficção.


Há sinais de que o Airbus já sofreu algumas vezes com o que os especialistas têm chamado de “autoengano”. No acidente com o aparelho da TAM em Congonhas, o manche estava na posição de desaceleração, mas as imagens mostravam a turbina direita acelerando cada vez mais, num episódio que, a meu ver, ainda não foi totalmente esclarecido. Semana passada, outro Airbus da TAM mergulhou durante uma turbulência, ferindo passageiros e tripulantes.

Nos dois vôos da Qantas analisados pela Tecop, de acordo com o New York Times, os sensores inerciais do avião enviaram informações incorretas aos computadores de vôo, o que fez com que estes tomassem medidas de emergência para corrigir problemas inexistentes. Por conta disso, mergulharam sem nenhuma razão. Fatores climáticos, como uma determinada combinação de correntes de vento durante uma turbulência, podem dar margem ao “autoengano” dos computadores, segundo Weber.

É difícil ligar o acidente da Airbus a esses fatores, e talvez nunca se saiba exatamente o que aconteceu, mas os casos anteriores já são motivo suficiente para despertar cuidados. Ainda que esse tipo de investigação possa representar uma ameaça a um projeto de engenharia do qual depende a própria sobrevivência da companhia francesa.


Acima de tudo, está a segurança. À sensação de vazio sempre deixada pela morte absurda de tanta gente que literalmente parece ter desaparecido no ar e à tristeza das famílias que vai se tornando cada vez mais frequente, sucede-se o medo de todos aqueles que hoje ainda precisam embarcar.

sábado, 30 de maio de 2009

O futuro do jornal e do livro


O que muda - e o que vai melhorar


Os catastrofistas gostam de achar que a decadência dos jornais pelo mundo será o fim da imprensa. Assim como muitos apontam que a era digital nunca substituirá o livro. Em geral, os catastrofistas acertam apenas quanto a si mesmos. É preciso pensar o que a era digital pode trazer de bom para a imprensa e o livro. Ela pode.


Daqui a alguns anos, o jornal em papel certamente será lembrado como um anacronismo igual ao que é hoje a velha máquina de escrever. O custo de esperar a árvore crescer para fazer o papel, industrializá-lo, imprimi-lo e distribui-lo é incomparavelmente maior que o do meio eletrônico. É a única razão pela qual o jornal desaparecerá e isso não está longe, já que a internet tem agora um alcance suficiente para cobrir os leitores que antes só tinham acesso à imprensa da maneira convencional, em bancas ou assinaturas.


Quando quebraram as mãos do jornalista Antonio Maria por conta do que escrevia, ele disse: “Tolos, pensam que a gente escreve com as mãos”. O mesmo se pode dizer da imprensa. São tolos os que pensam que a imprensa se faz com o papel. Não importa o meio onde ela se propaga, mas os seus princípios: informação com credibilidade, facilidade de acesso, defesa da liberdade de expressão e de opinião. A internet traz também vantagens nessa área. Permite atualização constante e consulta permanente ao que já foi publicado.

Se os veículos de imprensa hoje estão em dificuldades, é porque estão em sua fase de transição – enquanto entram na era digital, ainda têm de carregar o velho negócio em papel. Em vez de investir no novo, precisam empregar esforços em sustentar o decadente. É difícil a decisão de simplesmente acabar com o jornal impresso e ficar só na internet. A sensação é de diluição no mar virtual. Porém, quem tem um serviço de qualidade, e uma marca de prestígio, tem mais chances de consolidação no mercado de informação virtual.

O mesmo deve acontecer com o livro. Já tive a oportunidade de manusear o Kindle, o livro eletrônico da Amazon, o mais conhecido do gênero. Ele ainda é caro (cerca de 700 dólares nos Estados Unidos), ainda não há uma plataforma para produzi-lo com obras em português, e não sabemos se as pessoas comprarão um aparelho exclusivamente para ler livros ou jornais. Ele tem, porém, uma série de vantagens incomparáveis sobre o livro convencional.

Para começar, ao contrário do que dizem os preconceituosos, ele é mais amigável . Como um palmtop um pouco maior, pode ser segurado com uma única mão, ao contrário do livro, que a gente tem de abrir – e por vezes administrar as duas partes, que tendem a fechar-se novamente. É possível fazer marcações no texto. E, sobretudo, ali cabe uma biblioteca inteira. Assim, você pode ir para a praia levando não apenas o livro da vez, como toda sua biblioteca. E ler ainda o jornal do dia.

Assim como no caso dos jornais, o livro eletrônico elimina enormes custos de produção e armazenagem de volumes impressos. Mesmo o custo do aparelho é relativo: basta pensar que sai muito mais barato do que comprar uma biblioteca de 3.000 livros, sua capacidade de instalação. Com a erradicação dos custos de papel, impressão e estocagem, o livro novo pode ser barateado, e muito. Isso com certeza difundirá a leitura ainda mais, já que o principal impedimento da expansão do mercado, sobretudo no Brasil, é o preço.

Claro, há dúvidas. Uma ameaça é a pirataria. Se as editoras e autores forem atropelados pelos piratas, com a distribuição gratuita das obras, não haverá muito mais gente disposta a escrever, produzir e divulgar livros. Os direitos autorais não podem ser reduzidos, mesmo em face da queda no preço unitário do livro, sob a mesma pena de eliminar o seu produtor. Isso já tem acontecido na música com a troca do CD pelo Ipod.

Pode ser que a literatura, assim como a música, deixem de ser atividades profissionais, para se tornarem novamente produto do diletantismo de pessoas que fazem outras coisas na vida e escrevem, compõem ou tocam como uma atividade secundária, por prazer ou necessidade pessoal. Se isso acontecer, teríamos um grande retrocesso. Cabe aos cérebros digitais estudar como evitar melhor a pirataria e o desmanche de uma indústria fundamental para a educação e o entretenimento.


Não importa o veículo onde se coloque a imprensa e a arte; ambas são uma necessidade da sociedade e do indivíduo; por isso, sempre existirão. A profissionalização de ambas é que garante sua qualidade e por isso deve ser respeitada e incentivada, em vez de destruída. A boa imprensa e o bom livro são indispensáveis e parte da vida contemporânea, contraponto do barbarismo das civilizações antigas que perseguiam iconoclastas e queimavam livros para manter o povo na obscuridade.


A era digital tem, acima de tudo, essa virtude: o acesso a tudo, por qualquer um, em qualquer tempo. É um enorme passo para um futuro melhor.

Casa de escritor

quinta-feira, 28 de maio de 2009

As palavras e o amor


Por que casais não conseguem falar sobre o relacionamento

Entre os muitos e-mails que recebo comentando o que aqui vai publicado chegam, um pouco para meu espanto, muitos agradecimentos de mulheres. Elas dizem que aqui, assim como em meus romances, aprendem mais sobre como os homens pensam e sentem. E que isso as ajuda em sua vida pessoal.Itálico

O último desses contatos foi de uma moça que elogiava o texto confessional que escrevi sobre minha visita com o pequeno André a um estádio de futebol e a relação de amor entre os homens tendo o esporte como intermediário. Segundo ela, o que escrevi a teria feito entender afinal a maneira como seu pai procurava relacionar-se com ela. E diz que isso colaborou para entendê-lo melhor – e entender-se com ele.

Não vêm somente daí os sinais de que os homens permanecem um mistério para as mulheres. Outro dia, durante o Autores e Idéias, debate que promovo uma vez por mês no auditório da Livraria de Vila no Shopping Cidade Jardim, a jornalista Marília Gabriela queixou-se perante a platéia lotada de que sempre gostou de conversar sobre o relacionamento – e os homens, não.

“Homens não gostam de falar sobre o que estão sentindo, enquanto eu falo até demais”, disse ela. Com um sorriso, acrescentou que tivera um marido que pelo menos “sabia lidar” com ela. Desviava de suas tentativas de botar a vida em pratos limpos com alguma frase com aquele velho sentido: “...Lá vem você de novo criando caso à toa...”

Marília é uma pensadora, uma mulher inquisitiva e inquieta – o que provavelmente colaborou para que se tornasse a melhor entrevistadora de TV do país. Diante da platéia, ela perguntou o que eu achava. “Não posso achar que os homens não gostam de falar sobre relacionamentos”, respondi. “Como romancista, é só o que eu faço.”

A idéia de que homens não gostam de falar sobre a vida amorosa é equivocada, mas vastamente difundida. Falar de amor não é peculiaridade feminina. É verdade que homens muitas vezes manifestam seu afeto de uma forma não verbal, especialmente com outros homens, como é o caso da camaradagem do futebol. Isso não significa, porém, que evitem o assunto por princípio – principalmente com suas próprias mulheres. E elas também demonstram afeto de maneiras não verbais, à sua maneira: quando preparam uma comida especial, por exemplo.

Dizer que homens não falam sobre questões afetivas é o mesmo que acusá-los de não ter coração – não se preocupar nem se ocupar do amor como deveriam. Homens, porém, amam tanto quanto as mulheres. E podem falar sobre a vida afetiva com a mesma vontade ou desembaraço.

Não há qualquer razão para se acreditar que homens protegem seus sentimentos como algo secreto. Basta dizer que, se fizermos um recenseamento entre os romancistas, verificaremos que não há um número menor de homens que de mulheres a contar histórias cuja base é afetiva e emocional. E o fazem da maneira mais pública e aberta possível – eu diria, até, bastante corajosa.

O diálogo honesto sobre a vida emocional é uma condição essencial para os relacionamentos, sobretudo os de longo prazo. Viver a dois é difícil e exige atenção permanente. E o bloqueio do parceiro em falar sobre problemas afetivos, seja de qual sexo for, é em geral consequência, e não causa das dificuldades de relacionamento.

Na maioria dos relacionamentos duradouros, o grande desafio é fazer com que a rotina e as dificuldades do dia a dia não desgastem o amor. Quando amamos, o outro sempre está em primeiro lugar. Damos o melhor de nós, e isso implica muitas vezes em ceder.

Ao longo do tempo, porém, o cansaço vai trazendo o que há de pior em nós. A antiga flexibilidade vai desaparecendo. As pessoas vão se lembrando mais de suas necessiddes, principalmente as não atendidas. Passamos a querer mais atenção para nós do que estamos dispostos a dar. Isso se confunde com o esvaziamento do amor. Sentimos falta da antiga liberdade.

Quando isso acontece, o indivíduo se fecha para o diálogo. Não aceita fazer mais do que recebe. Quando lhe fazem uma solicitação, pensa no que estão lhe devendo. Deixa de querer escutar. O que frustra os ralacionamentos não é quando deixamos de falar, mas este momento, quando deixamos de ouvir, de levar em consideração as necessidades do outro, colocando as nossas de novo em primeiro lugar.

Nesse cenário, o diálogo perde o sentido: não adianta falar, se sabemos que não seremos ouvidos, que não adianta, que nossos sentimentos não estão sendo considerados ou respeitados, que nada vai mudar.

Aqueles que se queixam de que o parceiro não conversa deveriam, em primeiro lugar, pensar no que estão deixando de escutar. Poderiam primeiro se interessar em ouvir, a melhor forma de se ir ao encontro de alguém que mereceu o nosso amor. Apenas falar não é provocar o diálogo, mas impôr e aumentar a distância. Ouvir é o primeiro caminho para sermos ouvidos – e assegurar uma felicidade mais duradoura.

Lição para o futuro


O fim de um jornal melhor que os seus donos

A imprensa anda de luto pela Gazeta Mercantil, o jornal que estertorou nas mãos da CBM, Companhia Brasileira de Multimídia, de Nelson Tanure. Seu fim não se dá pela crise da imprensa, que vai abalando grandes jornais do mundo, a começar pelo New York Times, nos Estados Unidos, com a prevalência crescente da internet sobre a mídia impressa. É apenas um caso de má administração e incompreensão da natureza de um negócio. Com a Gazeta, vai se encerrando parte da história do jornalismo brasileiro, mas ela ainda nos dá uma lição, sua última contribuição para o futuro.

Comecei a trabalhar na Gazeta em 1986, recém-saído da faculdade, depois de rápido estágio na TV Bandeirantes. Instalada num edifício da rua Major Quedinho, a Gazeta era um jornal venerável, considerado leitura obrigatória no mundo profissional. Sua circulação era menor que a da Folha de S. Paulo e de O Estado de S. Paulo, porém seu público era mais qualificado.

Possuía também um braço na TV, o programa Crítica e Autocrítica, capitaneado pelo seu diretor editorial, Roberto Muller, que ia ao ar no domingo à noite. Era uma alternativa para o público que queria ver uma conversa mais séria, ainda que às vezes meio sonolenta, em lugar das mesas redondas de futebol.
Na redação do jornal, havia uma constelação de estrelas do jornalismo, a começar pelo seu diretor, Matias Molina, o secretário de redação, Alexandre Gambirasio, e um time de repórteres tratados como primas-donas: Celso Pinto, José Casado, Getúlio Bittencourt, entre outros - todos premiados e com vasta folha de serviços prestados ao jornalismo brasileiro.
A Gazeta era não apenas um grande jornal de negócios, como uma escola de jornalismo. Isso incluía princípios como a imparcialidade e a honestidade absolutas; a obsessão pela informação correta, segundo elemento essencial para a credibilidade; a busca incansável pela notícia exclusiva, que fazia a diferença.
A disputa aberta e estimulada entre os repórteres pelo espaço da primeira página era uma forma de garantir a perseguição permanente pela qualidade, num mercado em que ainda não havia concorrentes importantes. A Gazeta valorizava o jornalista, que assinava todas as suas reportagens e era tratado como patrimônio da casa, a própria essência do negócio.
Parecia uma fortaleza inexpugnável, e teria sido, não fossem os seus proprietários: a familia Levy, cujo patrono, o deputado federal Herbert Levy, deixara a administração do jornal ao filho Luiz Fernando para cuidar de suas atividades políticas. A gestão fez da Gazeta Mercantil o único órgão de imprensa em que trabalhei a atrasar salário. Porto seguro para a publicidade de bancos e outras empresas que tinham no jornal um veículo perfeito, o uso dos recursos fazia com que volta e meia a empresa entrasse em dificuldades.
Por sorte, naquela época, havia um grupo de empresários que, nos momentos mais difíceis, socorriam o jornal. Sabiam que ele era melhor que os seus donos. Agiam não por amizade, compromisso, ou mesmo medo, mas pelo entendimento de que o serviço prestado pela Gazeta era importante e insubstituível para a comunidade de negócios e o país.
Assim, o jornal prosseguiu não por causa de seus criadores, mas apesar deles; pertencia não a uma família, mas à sociedade. Sempre foi respeitado muito graças ao espírito de corpo dos jornalistas que nele trabalhavam, enquanto seus proprietários eram tratados com reserva.
Lembro de certa tarde em que eu, ainda um repórter principiante, fui fazer uma entrevista com o então diretor do Banco Central, Wadico Bucchi, em São Paulo. Encontrei Luiz Fernando Levy já na ante-sala, à espera de uma audiência. Levy continuou esperando, enquanto eu entrei na sua frente, atendido primeiro.
Para Bucchi, o repórter principiante merecia preferência em relação ao dono do próprio jornal onde trabalhava. Ele sabia que eu estava ali em busca de notícia, fazendo meu serviço para uma publicação de prestígio. Levy estava lá para pedir alguma coisa.
Quando o mercado se torna mais difícil, uma má gestão fica mais evidente e faz a diferença, sempre para pior. Surgiu o Valor Econômico, um concorrente que tomou da Gazeta boa parte de seu principal ativo: os jornalistas. A empresa mergulhou em dívidas e mesmo os seus mais antigos defensores desistiram de salvá-la. Acossado pelos credores, Levy entregou o título a Nelson Tanure, empresário do ramo de transportes, que resolveu investir em comunicação e cobriu-lhe dívidas.
Tanure não tem a mesma familiaridade com as qualidades que fizeram da Gazeta um grande veículo e poderiam recuperá-la. E anunciou que fecharia o jornal por conta da cobrança na Justiça de dívidas trabalhistas anteriores à sua gestão e que, segundo explicou no próprio jornal, não lhe dizem respeito.
Há hoje uma onda de empresários que arriscam tornar-se editores sem compreender a dependência desse negócio de sua matéria-prima essencial – gente. A Gazeta teve seus quadros reduzidos, os salários aviltados. A qualidade do jornal era até miraculosa, dadas as condições de trabalho.
O que assusta hoje na imprensa não é a mudança da mídia impressa para a digital. A verdadeira ameaça ao negócio é a entrada de gente com dinheiro e ousadia, mas sem conhecimento do riscado – sobretudo, da importância da separação entre Igreja e Estado. Para mercadores vindos de outras áreas, é difícil aceitar que não se barganha conteúdo jornalístico por dinheiro, e que a credibilidade, que exige o sacrifício do ganho fácil, é a fonte do sucesso duradouro nesse tipo de negócio.
A Gazeta virará agora uma embrulhada jurídica para que se saiba quem pagará as contas, se Levy ou se Tanure – um tipo de disputa à qual ambos, por sinal, estão habituados. Esse, porém, não é o verdadeiro fim da história. Jornal que sempre analisou em suas reportagens as causas do sucesso e do fracasso empresarial, a Gazeta fez de sua própria trajetória uma parábola do assunto que explorava.
Em sua agonia, a Gazeta deixa como ensinamento o que é capaz de levantar e também derrubar um negócio de comunicação, não importa qual seja sua plataforma – o papel, a TV ou o mundo virtual. E, nesses tempos tão cheios de dúvidas sobre o futuro do negócio da informação, reafirma a convicção de que, enquanto os bons princípios do jornalismo forem praticados, sempre haverá uma imprensa livre e economicamente forte para proteger a sua e a nossa liberdade.

Vastas emoções


Doutor Jivago lembra do que são feitos os grandes romances
Revi na TV, domingo passado, o grande Doutor Jivago, clássico de Pasternak, tão belamente transposto para o cinema - a história de amor impossível protagonizada por um médico e poeta tragado pela revolução bolchevique na Rússia. Para mim, a mais bela cena do filme é a noite que ele e Lara passam em uma velha dacha, nos campos cobertos de neve da estepe russa, feita de amor pleno, sem saber que em breve serão separados para sempre.


No meio da madrugada, ele se levanta, acordado pelo uivo dos lobos; sai na noite gelada e espanta os animais, breve metáfora de alguém que decide esquecer o medo e as ameaças. A luz de uma vela tremula quando ele entra em casa e senta-se à mesma mesa onde aprendeu a escrever na infância. Atravessa a noite escrevendo poemas num país que condenou a poesia em nome de uma ideologia onde não se permite mais a individualidade. Sim, na Rússia revolucionária, a poesia era perseguida como a feitiçaria pela Inquisição.


Pela manhã, ao acordar, Lara encontra sobre a mesa aqueles papéis. Ela os lê e diz que o retrato pintado por ele é melhor do que ela; ele reafirma o que escreveu, lendo o nome de Lara, que é também o título do poema; é como ele a vê. Naquele mesmo dia eles voltarão a se separar, ameaçados pela chegada de revolucionários, e Lara levará no ventre um bebê em gestação; deixa para trás o amor de sua vida, salva por outro homem, aquele a quem mais odeia.


Eles desaparecem para sempre, mas seu amor tumultuado, entrecortado, proibido e pecador sobrevive nos poemas que, apesar da perseguição, resistem graças à paixão do povo russo pelo verso. A poesia sobrevive ao comunismo, assim como a religião. Está também na balalaica levada às costas pela moça que jamais conheceu os pais, herança que somente o tio compreende plenamente.


Isto, mais aquela música que quase leva a gente a chorar, ainda faz de doutor Jivago um grande romance em todos os sentidos; vi o filme e pensei que sempre quis escrever grandes histórias, romances que trouxessem estas vastas emoções, abarcassem a vida, atravessassem ao mesmo tempo o Tudo e o Nada. Doutor Jivago é algo assim, não uma reprodução da vida, mas o mais próximo que se pode chegar disso, e da forma mais sublime.

A força da poesia




Poucas palavras para grandes sentimentos

Pouca gente compra ou lê poesia. Esta é, para mim, a mais sublime das artes. É uma ação rápida para extravasar sentimentos. Por natureza, a poesia é extrema. Sua virtude está em colocar em poucas palavras grandes sentimentos.

Ver Doutor Jivago me deu de repente vontade de escrever poesia. Mas ando vazio. Com a morte de minha mãe, escrevi o último de meus poemas ano passado, justamente sobre ela. Divido-o aqui com vocês. E acrescento dois poeminhas anteriores, que mostram bem a relação entre a poesia e o estado de espírito de quem os escreve.


Amor que fica


O tempo é tão sem tempo
Que começa quando acaba
Assim ao menos que parece
Na parede da memória

O tempo é tão sem tempo
Que constrói quando desaba
A gente nunca esquece
Uma saudade com história

Permanente é o amor
Que é fruto da estação
Na primavera ele é flor
E tempestade de verão

Quem ama, tudo quer
Amor de mãe e protetora
Amor de filha e mulher
Amor de amiga e professora

Esse amor que enche a gente
Não tem dia nem tem hora
O que termina está presente
Faz da gente o que é agora

Tantos erros neste mundo
Ainda há por reparar
Se eu tivesse um segundo
Eu fazia o amor ficar

Se eu tivesse o poder
De criar vida, fazer luz
Se pudesse mesmo ser
O Deus que nos conduz

Fazia mais gente assim
De sonho e pé de feijão
E deixaria o amor pra mim
Pra salvar meu coração