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sábado, 2 de outubro de 2010

Da Rússia, com amor

Vinte anos atrás, os russos nem existiam. Isto é, existiam no seu mundo circunscrito, indecifrável. Ninguém fora da cortina de ferro - sim, eles eram tão fechados que se definia assim a situação - podia dizer que sabia ao certo como os russos eram.

Para mim, a Rússia era a dos livros. De Miguel Strogoff, no Julio Verne, com ursos nas tempestades sobre os urais, estradas cortadas pelas rodas da quibitca, barqueiros com suas varas a deslizar pelo Volga, os tártaros a escalavrar a terra com a pata dos cavalos.

Depois foi a Rússia romântica, do doutor Jivago e a loura Julie Christie como Lara, rosto perfeito emoldurado pelo chapéu de pele, os olhos azuis cálidos diante da neve, a simplicidade rústica da dacha onde tiveram seu refúgio de fugaz felicidade: a música de um lirismo arrebatador da balalaica. A Rússia dos girassóis e da Sophis Loren, que era italiana, mas estrelou um dos mais belos épicos do cinema. País de romances, de Karênina, de Dostoievski na sua casa de mortos, dos revolucionários bolcheviques, das tropas a descer militarmente as escadas, atropelando o povo no Potenkin. Dos palanques improvisados em os Dez dias que abalaram o Mundo.

Minha infância foi do homem na Lua pela primeira vez, e os russos não eram mais russos, eram soviéticos, a confederação comunista, e tinham chegado primeiro ao espaço: podiam inventar aqueles foguetes, eram uma potência política, econômica e social. Descobri quāo frágil pode ser uma potência, mesmo antes dela desmanchar ou cair como castelo de cartas. Mas ainda havia lá dentro a velha Rússia, aquela força dos cossacos a dançar agachados e de braços cruzados, a beleza poética das bailarinas do Beriozka a deslizar pelo palco sem mover as barras da saia, o mistério siberiano daquela vastidão que eu imaginava terminar em Vladivostok, aquele lugar que se supunha o fim do undo e que eu adorava dominar no jogo de dados e estratégia do War, um sucesso da minha infância (e de muita gente).

A Rússia quem diria hoje é capitalista e vemos russos por toda parte, estive agora em Londres e havia deles por toda parte. Em Nova York são porteiros, encanadores; se vê de longe o russo, tem cara de mafioso, bêbado, ou ambos; as mulheres são de uma beleza rústica; ou não será nada disso, sou apenas eu a fantasiar aquilo que a gente não entende muito bem.

A Rússia dos sovietes e do ideal comunista da igualdade absoluta ruiu, e com ela todas as cortinas, e o que se viu foi um êxodo de gente ignorante. E ávida de conhecer o mundo. Passaram vinte anos desde que o comunismo faliu e deu lugar a uma Rússia não apenas visível como muito mais real, porém para mim encontrar um russo é ainda como presenciar uma espécie de milagre, da mesma forma que eu veria um alien ou outro ser improvável.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Vastas emoções


Doutor Jivago lembra do que são feitos os grandes romances
Revi na TV, domingo passado, o grande Doutor Jivago, clássico de Pasternak, tão belamente transposto para o cinema - a história de amor impossível protagonizada por um médico e poeta tragado pela revolução bolchevique na Rússia. Para mim, a mais bela cena do filme é a noite que ele e Lara passam em uma velha dacha, nos campos cobertos de neve da estepe russa, feita de amor pleno, sem saber que em breve serão separados para sempre.


No meio da madrugada, ele se levanta, acordado pelo uivo dos lobos; sai na noite gelada e espanta os animais, breve metáfora de alguém que decide esquecer o medo e as ameaças. A luz de uma vela tremula quando ele entra em casa e senta-se à mesma mesa onde aprendeu a escrever na infância. Atravessa a noite escrevendo poemas num país que condenou a poesia em nome de uma ideologia onde não se permite mais a individualidade. Sim, na Rússia revolucionária, a poesia era perseguida como a feitiçaria pela Inquisição.


Pela manhã, ao acordar, Lara encontra sobre a mesa aqueles papéis. Ela os lê e diz que o retrato pintado por ele é melhor do que ela; ele reafirma o que escreveu, lendo o nome de Lara, que é também o título do poema; é como ele a vê. Naquele mesmo dia eles voltarão a se separar, ameaçados pela chegada de revolucionários, e Lara levará no ventre um bebê em gestação; deixa para trás o amor de sua vida, salva por outro homem, aquele a quem mais odeia.


Eles desaparecem para sempre, mas seu amor tumultuado, entrecortado, proibido e pecador sobrevive nos poemas que, apesar da perseguição, resistem graças à paixão do povo russo pelo verso. A poesia sobrevive ao comunismo, assim como a religião. Está também na balalaica levada às costas pela moça que jamais conheceu os pais, herança que somente o tio compreende plenamente.


Isto, mais aquela música que quase leva a gente a chorar, ainda faz de doutor Jivago um grande romance em todos os sentidos; vi o filme e pensei que sempre quis escrever grandes histórias, romances que trouxessem estas vastas emoções, abarcassem a vida, atravessassem ao mesmo tempo o Tudo e o Nada. Doutor Jivago é algo assim, não uma reprodução da vida, mas o mais próximo que se pode chegar disso, e da forma mais sublime.