Em A Conquista do Brasil, está contada uma história nada edificante sobre a origem dos brasileiros. Ali se mostra, por exemplo, como os tupinambás fundavam sua sociedade na rivalidade entre as tribos, faziam da guerra um sistema de vida e cultivavam a raiva vingativa até as raias do absurdo. Desde pequenos, os curumins eram ensinados a ter raiva do "inimigo" e a não perdoar ou poupar ninguém. Para demonstrar seus estado de espírito em relação a qualquer oponente, matavam a dentadas os piolhos que catavam na cabeça.
Com o passar dos séculos, e não foram tantos assim, ocultamos ou esquecemos essas origens, sem enxergar o que há dessa herança dentro de nós: a sociedade brasileira. Uma boa demonstração da nossa índole raivosa e selvagem está sendo dada na Olimpíada, um congraçamento entre os povos, que coloca acima de tudo a igualdade, a esportividade e o fair play. Mas nada disso influencia a torcida brasileira, que vem chocando os povos ditos civilizados.
Que o diga o francês Renaud Lavillenie, que tem a vilania até no nome, mas não podia ter sido apupado na disputa do salto com vara, como foi. Além das vaias durante a competição, foi vaiado no pódio, ao receber a medalha de prata. Num momento que deveria ser de glória, e de valorização e respeito a um adversário, o atleta chorou. De tristeza. O brasileiro Thiago Braz, medalha de ouro, tentou consertar, pedindo aplausos à plateia.
O comportamento da arquibancada, que invariavelmente se manifesta nos jogos como está acostumada em jogos de futebol, onde nunca prima o fair play e o respeito ao adversário, acabou tirando um pouco do brilho da extraordinária vitória de Braz. E demonstra qual é o principal problema brasileiro, fonte de todas as nossas crises, políticas, econômicas e sociais: a falta de educação.
Quem está nos estádios olímpicos não é a massa ignara dos grotões. É gente que pode pagar 900 reais por um ingresso para cada membro da família. É a elite brasileira, que em matéria de civilidade se compara ainda aos seus ancestrais de cocar e bodoque nos lábios.
Os brasileiros resolveram participar dos jogos como um cão feroz, presente em todas as disputas, mesmo as que não envolvem a camisa amarela. No atletismo, o astro Usain Bolt, preferido pelo público, manifestou sua estranheza quando a plateia apupou seu maior rival, o americano Justin Gatlin. "Nunca vi nada parecido", disse ele. Antes de correr, Bolt se acostumou a colocar um dedo nos lábios, mandando a torcida que o adotou calar a boca.
Só isso bastaria para passarmos vergonha, ainda mais vindo o gesto de um homem que não tem uma origem menos humilde que a do nosso próprio povo. A histeria brasileira, porém, é imune a lições de moral. Incomodou até mesmo os atletas da natação. Michael Phelps declarou que nunca ouviu tanto barulho na vida - mesmo numa disputa dentro da água.
Em qualquer esporte, o brasileiro põe para fora o velho índio que mora dentro dele. Não respeita o esforço dos competidores, quaisquer que sejam. Idolatra os vencedores, e condena os perdedores à execração, como se não tivessem valor e fossem zeros à esquerda.
O brasileiro só quer e respeita a vitória. Sua pressão, em vez de útil, se torna contraproducente; coloca uma carga absurda sobre a maioria dos atletas brasileiros. Além do desafio natural das provas, eles têm que lidar ainda com o humor de um país que não perdoa, tantos os inimigos quanto a derrota.
Estaria errado, mesmo que funcionasse. O agravante, porém, é que nem funciona. Se dependesse do furor da torcida, o Brasil é que teria goleado a Alemanha na Copa do Mundo, há dois anos, por 7 a 1. Mas não foi o que aconteceu. Derrotado fragorosamente dentro e fora de campo, o brasileiro, na sua brutal ignorância coletiva, mostra nos Jogos Olímpicos que não entendeu nada. Nem mesmo do que se trata no evento que está patrocinando.
terça-feira, 16 de agosto de 2016
sexta-feira, 22 de julho de 2016
O espetáculo da loucura e o esgotamento do capitalismo
Atiradores percorrem as ruas de Munique, matam gente dentro de um shopping, a cidade fecha, escondida atrás das portas. Um jovem de 17 anos invade um trem em Wurzburg e ataca os passageiros com um machado. Quatro pessoas ficam feridas e o atacante, que teria jurado lealdade ao grupo terrorista Estado Islâmico, é morto pela polícia.
Um homem aluga um caminhão para matar quase uma centena de pessoas na orla de Nice. No Brasil, dez pessoas foram presas depois de trocar mensagens digitais em favor do Estado Islâmico e sugerindo à Polícia estar preparando um atentado na Olimpíada. Este ano, atentados em Bruxelas e Istambul também deixaram mortos em nome do Terror.
O que está acontecendo? Pelo que se sabe, o Estado Islâmico não tem uma rede Internacional. Seus "agentes" seriam recrutados pela Internet. Isso não é recrutamento.
O que está acontecendo é um sintoma da crise da sociedade contemporânea. Num mundo em crise, sem oportunidades, especialmente os jovens perdem o sentido de viver. A espetacularização da midia digital lhes dá uma oportunidade. Dá sentido pelo menos à sua morte. O El representa hoje o protesto contra o sistema. Poderia ser qualquer outra coisa.
Gente que, sob qualquer pretexto, vai para rua para matar ou morrer está no limite da loucura. A ideia de pertencer a um grupo suicida lhes dá força. E saber que a ação lhes dará notoriedade, dá coragem.
Isso só acontece num mundo em que a vida não vale nada. Os valores que são sentido à existência - o amor, o trabalho, a conquista, a recompensa, o conforto familiar, os sonhos de felicidade - não existem ou não têm importância. Hoje qualquer um aparece na mídia mas entra apenas na bacia das almas que é o mundo digital.
Um homem aluga um caminhão para matar quase uma centena de pessoas na orla de Nice. No Brasil, dez pessoas foram presas depois de trocar mensagens digitais em favor do Estado Islâmico e sugerindo à Polícia estar preparando um atentado na Olimpíada. Este ano, atentados em Bruxelas e Istambul também deixaram mortos em nome do Terror.
O que está acontecendo? Pelo que se sabe, o Estado Islâmico não tem uma rede Internacional. Seus "agentes" seriam recrutados pela Internet. Isso não é recrutamento.
O que está acontecendo é um sintoma da crise da sociedade contemporânea. Num mundo em crise, sem oportunidades, especialmente os jovens perdem o sentido de viver. A espetacularização da midia digital lhes dá uma oportunidade. Dá sentido pelo menos à sua morte. O El representa hoje o protesto contra o sistema. Poderia ser qualquer outra coisa.
Gente que, sob qualquer pretexto, vai para rua para matar ou morrer está no limite da loucura. A ideia de pertencer a um grupo suicida lhes dá força. E saber que a ação lhes dará notoriedade, dá coragem.
Isso só acontece num mundo em que a vida não vale nada. Os valores que são sentido à existência - o amor, o trabalho, a conquista, a recompensa, o conforto familiar, os sonhos de felicidade - não existem ou não têm importância. Hoje qualquer um aparece na mídia mas entra apenas na bacia das almas que é o mundo digital.
O homem é insignificante.
Pode parecer estranho, mas a maneira de combater o terror, além de abater na rua os loucos que saíram do armário, é atacar as raízes dessa crise. Um mundo com oportunidades de emprego, de crescimento, e relações interpessoais melhores, numa era de individualização extrema. O problema não é o El, o Islamismo, ou o Oriente. É um certo esgotamento do capitalismo, agora que entra na sua fase digital, pedindo um novo modelo para viabilizar novamente o futuro.
Pode parecer estranho, mas a maneira de combater o terror, além de abater na rua os loucos que saíram do armário, é atacar as raízes dessa crise. Um mundo com oportunidades de emprego, de crescimento, e relações interpessoais melhores, numa era de individualização extrema. O problema não é o El, o Islamismo, ou o Oriente. É um certo esgotamento do capitalismo, agora que entra na sua fase digital, pedindo um novo modelo para viabilizar novamente o futuro.
quarta-feira, 20 de julho de 2016
O meu Poema Sujo, ou a arte de escrever para ninguém
- A gente precisa mudar.
- Eu sei, mas mudar como?
- A gente devia parar de ficar escrevendo para ninguém.
- Mas escrever para ninguém é a única coisa que eu sei fazer.
- Eu sei, mas mudar como?
- A gente devia parar de ficar escrevendo para ninguém.
- Mas escrever para ninguém é a única coisa que eu sei fazer.
Minha mulher sempre tem razão. Mesmo assim eu vou contra - como diria o Llosa, sigo seguindo contra vento e maré. Secretamente venho escrevendo recentemente muito para mim mesmo, ou para ninguém. Escrevo sobre a infância, aquilo em que mais penso, quanto mais idade tenho.
Isso acabou me tomando a cabeça, um tempo enorme, as vontades: da evocação de um tempo sem palavras, começou a surgir um poema, e foi ficando tão longo que virou um poema-livro, o meu "poema sujo", sem nenhuma pretensão de comparações com o grande Ferreira Gullar.
Fico olhando isso e penso se é mesmo para ninguém: talvez possa ser para alguns, pelo menos as pessoas que nasceram como eu na década de 1960, que conheceram uma certa São Paulo, um certo país, um certo tempo. E suas mudanças: nos costumes, na família, na política, na informação. Na sociedade, ou no homem, enfim.
Aqui um trechinho, agora que começo a revisar o texto; e vou pensando em todas as coisas importantes que eu tinha a fazer e, no final, deixei de fazer; de todas, no fim, esta é a única que importa, ainda que seja para ninguém.
(...)
Raízes primeiras extremas
De onde nem há memória
O passado dos filósofos orientais
A alquimia genética
O encontro de raças
A combinação de histórias
A formação determinista do que somos
Antes mesmo de ser
Raízes primeiras extremas
De onde nem há memória
O passado dos filósofos orientais
A alquimia genética
O encontro de raças
A combinação de histórias
A formação determinista do que somos
Antes mesmo de ser
Resultante do que trazemos sem saber
Escrito na terra
Na mão lavrada dos ancestrais
Nos amores perdidos
Nos sonhos perdidos
Nas vontades primevas
No acaso certeiro
Daqueles que vieram primeiro
Prepararam terreno
Jogaram a semente
Até que de repente
Brotou o que achamos ser
Nosso livre arbítrio
Escrito na terra
Na mão lavrada dos ancestrais
Nos amores perdidos
Nos sonhos perdidos
Nas vontades primevas
No acaso certeiro
Daqueles que vieram primeiro
Prepararam terreno
Jogaram a semente
Até que de repente
Brotou o que achamos ser
Nosso livre arbítrio
Fihos do vento
Filhos do tempo
Filhos da coincidência
Filhos de gente
Filhos do amor
Tanto o de mentirinha
Quanto do amor verdadeiro
Do amor enganado e desenganado
Do amor roubado
Do amor proibido
Do amor ganho e perdido
Filhos do tempo
Filhos da coincidência
Filhos de gente
Filhos do amor
Tanto o de mentirinha
Quanto do amor verdadeiro
Do amor enganado e desenganado
Do amor roubado
Do amor proibido
Do amor ganho e perdido
Qualquer amor que gerou amor que gerou amor
E moldou o que somos e seremos
E fez me de mim desbravador
Herdeiro de antigas e violentas paixões
De conquistadores da terra
Homens ardentes
Barqueiros ao leme rumo à Guiné
De velhos guerreiros
De homens sem fé
De mães sagradas
E mulheres profanas
De obscuras ciganas
E valquírias aladas
Filho do amor que veio do amor
Um amor que ainda não entendo qual é (...)
E moldou o que somos e seremos
E fez me de mim desbravador
Herdeiro de antigas e violentas paixões
De conquistadores da terra
Homens ardentes
Barqueiros ao leme rumo à Guiné
De velhos guerreiros
De homens sem fé
De mães sagradas
E mulheres profanas
De obscuras ciganas
E valquírias aladas
Filho do amor que veio do amor
Um amor que ainda não entendo qual é (...)
segunda-feira, 18 de julho de 2016
Desnudando a Playboy
Está saindo do forno um livrinho tão delicioso de ler quanto importante e expressivo do jornalismo brasileiro. "Histórias secretas: os bastidores dos 40 anos de Playboy no Brasil" é uma coletânea de textos de alguns dos principais colaboradores de Playboy, no longo período em que foi publicada pela Editora Abril. Entre eles, eu, integrante da ilustre e seleta galeria dos jornalistas que tiveram pela frente o desafio de dirigir a revista.
Pela primeira vez, se pode ter uma boa ideia de como era feita a "revista mais gostosa do Brasil".
Vista pelo lado de dentro, (ou tirando a sua roupa), ao contrário da imagem corrente de "o melhor emprego do mundo", Playboy na verdade era trabalho muito árduo. Somente graças a um imenso esforço coletivo, em redações sucessivas de gente muito competente, se estabeleceu na publicação brasileira um padrão de excelência ímpar, assim reconhecido pela matriz americana.
As "Histórias Secretas" são crônicas instigantes e elucidativas sobre como Playboy funcionava. O relato daquilo que não deu certo é tão ou mais interessantes do que o daquilo que deu certo. Nesse mosaico, esboça-se o quadro de uma era destinada a nunca mais se repetir, tempos que hoje podemos chamar de pioneiros do papel impresso. Por isso, o livro ganha contornos de documento histórico.
Uma das virtudes da obra, ao mostrar quem fazia a revista, é justamente jogar luz sobre o outro lado: aqueles que trabalhavam para jogar luz sobre os outros, tanto as estrelas que ilustravam os ensaios sensuais como as celebridades que povoavam suas páginas em entrevistas e reportagens. Pode-se assim ter uma boa ideia de como Playboy decolou, firmou seu padrão de qualidade, inclusive em jornalismo, e das condições de seu declínio, até ser encerrada na Editora Abril.
Esse é o capítulo que faltou ao livro: falar um pouco mais sobre o grande defensor de Playboy na Abril, que foi seu editor, Roberto Civita. Com sua morte, a empresa perdeu não somente o homem que trouxe Playboy ao Brasil como foi seu sustentáculo, até o dia de sua morte.
O caso de Playboy é significativo de uma era de ouro da imprensa brasileira. E revela que a morte das publicações não ocorre apenas em função da mutação das mídias, como à perda de seus líderes e à incapacidade de adaptação às transformações sociais e de mercado. Uma das funções do jornalismo é refletir e comprender os tempos e o público leitor. Por isso, Playboy é um interessante estudo de caso para a imprensa refletir sobre si mesma. Se quiser mesmo subsistir.
Pela primeira vez, se pode ter uma boa ideia de como era feita a "revista mais gostosa do Brasil".
Vista pelo lado de dentro, (ou tirando a sua roupa), ao contrário da imagem corrente de "o melhor emprego do mundo", Playboy na verdade era trabalho muito árduo. Somente graças a um imenso esforço coletivo, em redações sucessivas de gente muito competente, se estabeleceu na publicação brasileira um padrão de excelência ímpar, assim reconhecido pela matriz americana.
As "Histórias Secretas" são crônicas instigantes e elucidativas sobre como Playboy funcionava. O relato daquilo que não deu certo é tão ou mais interessantes do que o daquilo que deu certo. Nesse mosaico, esboça-se o quadro de uma era destinada a nunca mais se repetir, tempos que hoje podemos chamar de pioneiros do papel impresso. Por isso, o livro ganha contornos de documento histórico.
Uma das virtudes da obra, ao mostrar quem fazia a revista, é justamente jogar luz sobre o outro lado: aqueles que trabalhavam para jogar luz sobre os outros, tanto as estrelas que ilustravam os ensaios sensuais como as celebridades que povoavam suas páginas em entrevistas e reportagens. Pode-se assim ter uma boa ideia de como Playboy decolou, firmou seu padrão de qualidade, inclusive em jornalismo, e das condições de seu declínio, até ser encerrada na Editora Abril.
Esse é o capítulo que faltou ao livro: falar um pouco mais sobre o grande defensor de Playboy na Abril, que foi seu editor, Roberto Civita. Com sua morte, a empresa perdeu não somente o homem que trouxe Playboy ao Brasil como foi seu sustentáculo, até o dia de sua morte.
O caso de Playboy é significativo de uma era de ouro da imprensa brasileira. E revela que a morte das publicações não ocorre apenas em função da mutação das mídias, como à perda de seus líderes e à incapacidade de adaptação às transformações sociais e de mercado. Uma das funções do jornalismo é refletir e comprender os tempos e o público leitor. Por isso, Playboy é um interessante estudo de caso para a imprensa refletir sobre si mesma. Se quiser mesmo subsistir.
domingo, 17 de julho de 2016
A cura para o estresse e a depressão
Estima-se que uma em cada cinco pessoas em todo o mundo passe pelo menos uma vez na vida por um processo depressivo. Ele pode ser causado por um trauma e não voltar mais, ou ser recorrente. Mais frequente ainda é o quadro de estresse e ansiedade, que muitas vezes se tornam crônicos, a ponto de afetar a vida de uma pessoa e assim se configurar como doença.
À frente de uma série de outros transtornos de comportamento, a ansiedade, o estresse e a depressão são o tema mais frequente no gabinete do psiquiatra Breno Serson, que fica no Jardim Paulistano, em São Paulo. Por conta de seu trabalho, e do seu próprio temperamento, Breno é um explorador da alma humana. Para os males mais contemporâneos da civilização, ele busca respostas em todo lugar - na psicoterapia, na alimentação, no estilo de vida e, quando é o caso, nos remédios.
O importante para ele, no entanto, é a compreensão desses males frequentemente impossíveis de diagnosticar clinicamente, porque possuem diversas manifestações que formam um quadro clínico vago e e impreciso - coisas que doem ou incomodam aqui e ali, mas cuja causa está em outro lugar. Breno olha o ser humano como um todo, complexo, e que tem de viver melhor também em todos os aspectos. Ele é adepto de um certo holismo, que tem tudo a ver com as necessidades do homem contemporâneo.
Essa é a receita que ele prega em seu livro "Transtornos de ansiedade, estresse e depressões: conhecer e tratar", publicado pelo selo MG, da editora Summus. Ali é possível mesmo para um leigo reconhecer a si mesmo, entender seu problema melhor e o caminho para o tratamento, que, para Breno, nunca é apenas o remédio. A medicação, para o grupo de transtornos mais comuns aos quais ele dedica o livro, nunca é a solução completa, porque a causa desses males geralmente está na própria vida do indivíduo - no relacionamento com a família e o trabalho, na alimentação, no sono, nos seus dilemas psíquicos.
Breno é um intelectual tão antigo quando moderno. Inspira-se na filosofia grega antiga, tanto quanto nos mais modernos manuais de psiquiatria. Vai ao seu consultório de bicicleta, mora numa casa coberta de plantas que ali parecem prosperar como num santuário. Ele cuida bem de tudo, das coisas, das plantas, das pessoas. A atenção que dá aos pacientes, sua compreensão a fundo, é o segredo de seu sucesso como clínico. E é também o principal ingrediente desse livro, que pode ser lido esclarecedoramente por profissionais do ramo e também qualquer um interessado em conhecer melhor a si mesmo ou ao próximo. E encontrar melhores caminhos.
*
Sentado em uma mesa de varanda em Gonçalves, onde almoçamos para comemorar a chegada do livro, Breno me diz que eu sou o "maiêutico", isto é, aquele que "dá à luz" alguma forma de conhecimento. A maiêutica consiste em um método filosófico imaginado por Sócrates para extrair a verdade "latente" no ser humano. Isto é, o conhecimento já está lá, precisa apenas vir à tona. A verdade aflora de uma série de perguntas, que primeiro questionam as ideias de quem as tem, e depois as reconstróem.
Ajudar alguém a escrever um livro funciona da mesma forma: nada mais é do que auxiliar aquele conhecimento a vir à tona. O conhecimento, as ideias, o pensamento são de Breno.Ele vinha há muitos anos pensando em escrever o livro, mas não conseguia colocá-lo no papel. Suas ideias, reflexões e conhecimento estavam lá. Eu lhe dei uma pequena ajuda na estruturação do texto e na linguagem, que ficou um pouco menos técnica e mais coloquial, para alcançar um número maior de leitores. Dessa forma, a obra saiu da mera ideia ou vontade para a realização no papel, da forma que ele desejava.
Para mim, foi um prazer. Primeiro, porque é raro ter a oportunidade de ajudar alguém e receber mais benefícios que a pessoa a quem se auxilia. Aprendi muito com Breno, não apenas sobre ansiedade e depressão. Ele é um livre pensador original, interessante e sobretudo humano, o que lhe dá outra dimensão como profissional. Sua abordagem tem ajudado efetivamente a muitos pacientes. É um prazer poder colaborar, não apenas com o livro em si e Breno, mas com todas as pessoas que agora poderão se beneficiar desse conhecimento e atingir, quando não a cura completa, pelo menos uma vida melhor.
À frente de uma série de outros transtornos de comportamento, a ansiedade, o estresse e a depressão são o tema mais frequente no gabinete do psiquiatra Breno Serson, que fica no Jardim Paulistano, em São Paulo. Por conta de seu trabalho, e do seu próprio temperamento, Breno é um explorador da alma humana. Para os males mais contemporâneos da civilização, ele busca respostas em todo lugar - na psicoterapia, na alimentação, no estilo de vida e, quando é o caso, nos remédios.
O importante para ele, no entanto, é a compreensão desses males frequentemente impossíveis de diagnosticar clinicamente, porque possuem diversas manifestações que formam um quadro clínico vago e e impreciso - coisas que doem ou incomodam aqui e ali, mas cuja causa está em outro lugar. Breno olha o ser humano como um todo, complexo, e que tem de viver melhor também em todos os aspectos. Ele é adepto de um certo holismo, que tem tudo a ver com as necessidades do homem contemporâneo.
Essa é a receita que ele prega em seu livro "Transtornos de ansiedade, estresse e depressões: conhecer e tratar", publicado pelo selo MG, da editora Summus. Ali é possível mesmo para um leigo reconhecer a si mesmo, entender seu problema melhor e o caminho para o tratamento, que, para Breno, nunca é apenas o remédio. A medicação, para o grupo de transtornos mais comuns aos quais ele dedica o livro, nunca é a solução completa, porque a causa desses males geralmente está na própria vida do indivíduo - no relacionamento com a família e o trabalho, na alimentação, no sono, nos seus dilemas psíquicos.
Breno é um intelectual tão antigo quando moderno. Inspira-se na filosofia grega antiga, tanto quanto nos mais modernos manuais de psiquiatria. Vai ao seu consultório de bicicleta, mora numa casa coberta de plantas que ali parecem prosperar como num santuário. Ele cuida bem de tudo, das coisas, das plantas, das pessoas. A atenção que dá aos pacientes, sua compreensão a fundo, é o segredo de seu sucesso como clínico. E é também o principal ingrediente desse livro, que pode ser lido esclarecedoramente por profissionais do ramo e também qualquer um interessado em conhecer melhor a si mesmo ou ao próximo. E encontrar melhores caminhos.
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Sentado em uma mesa de varanda em Gonçalves, onde almoçamos para comemorar a chegada do livro, Breno me diz que eu sou o "maiêutico", isto é, aquele que "dá à luz" alguma forma de conhecimento. A maiêutica consiste em um método filosófico imaginado por Sócrates para extrair a verdade "latente" no ser humano. Isto é, o conhecimento já está lá, precisa apenas vir à tona. A verdade aflora de uma série de perguntas, que primeiro questionam as ideias de quem as tem, e depois as reconstróem.
Ajudar alguém a escrever um livro funciona da mesma forma: nada mais é do que auxiliar aquele conhecimento a vir à tona. O conhecimento, as ideias, o pensamento são de Breno.Ele vinha há muitos anos pensando em escrever o livro, mas não conseguia colocá-lo no papel. Suas ideias, reflexões e conhecimento estavam lá. Eu lhe dei uma pequena ajuda na estruturação do texto e na linguagem, que ficou um pouco menos técnica e mais coloquial, para alcançar um número maior de leitores. Dessa forma, a obra saiu da mera ideia ou vontade para a realização no papel, da forma que ele desejava.
Para mim, foi um prazer. Primeiro, porque é raro ter a oportunidade de ajudar alguém e receber mais benefícios que a pessoa a quem se auxilia. Aprendi muito com Breno, não apenas sobre ansiedade e depressão. Ele é um livre pensador original, interessante e sobretudo humano, o que lhe dá outra dimensão como profissional. Sua abordagem tem ajudado efetivamente a muitos pacientes. É um prazer poder colaborar, não apenas com o livro em si e Breno, mas com todas as pessoas que agora poderão se beneficiar desse conhecimento e atingir, quando não a cura completa, pelo menos uma vida melhor.
quarta-feira, 13 de julho de 2016
Marco de Bari e a arte de viver com leveza
O fotógrafo Marco de Bari, que trabalhou por três décadas na Editora Abril, a maior parte delas em Quatro Rodas, costumava dizer de si mesmo que tinha um olho ruim e outro no qual faltava visão de profundidade. "Mas é o bastante para mim", emendava. Realizava tantas proezas, acho, por causa desse espírito. Bari fazia a vida parecer fácil. Mesmo diante das tarefas mais difíceis, encarava tudo com leveza. Lidava bem com as pessoas, que se tornavam suas amigas. E com o trabalho, apesar de muitas vezes complicado.
Eu o conheci em 1993, estranhamente, na África. Ele fotografava como freelancer para a revista Viagem e Turismo, então dirigida por Jorge de Souza, que estava conosco num grupo de jornalistas convidados a conhecer a África do Sul e o Quênia. Lá, entre outras peripécias, empurramos juntos uma van por oito quilômetros na lama, o "black cotton soil" da savana africana, num lugar infestado por hienas e leões.
Acompanhando o jogo por telefone, comemoramos quando o Palmeiras saiu de uma fila de 17 anos sem títulos. Ao final daquela dura viagem, pulávamos, ríamos, rodopiávamos no amplo saguão de um hotel de luxo em Joahnesburgo, em meio às senhoras britânicas, que nos olhavam com uma sobrancelha de espanto, enquanto tomavam o chá das 5.
Combinamos então que em toda decisão importante nós dois deveríamos estar em algum lugar distante do mundo, certos de que era isto o que tinha nos dado sorte. O Palmeiras foi campeão muitas vezes depois disso, mas sempre queríamos saber onde o outro estava nas decisões. E brincávamos com isso.
Quando voltamos ao Brasil, a capa de Viagem e Turismo foi a mais impactante: a foto fechada no rosto de um xamã, emplumado e pintado de múltiplas cores na pele negra e gretada, que dava toda a dimensão misteriosa e selvagem da África. Com ela, a revista ganhou naquele ano o prêmio Abril de "Melhor Capa". Quando saiu o resultado, ri quietinho. E Bari também.
O que a foto não contava era a esperteza de Bari e Jorge. Embora tenhamos entrado numa aldeia masai de verdade e conhecido um rei tribal, o personagem de capa na verdade era um malandro que ficava em um posto de gasolina, na estrada para Nairobi. Pintava-se e emplumava-se para fazer fotos com os turistas. Quando eu o vi, estava sentado numa cadeira, em frente à lanchonete, fumando um Marlboro. Jorge e Bari o levaram a um canto e ali fizeram a sua foto. Que lhes custou, como custaria a qualquer um, algo como cinco dólares.
Seu trabalho o levou a muitos países e Bari não hesitava em se arriscar de verdade para fazer a melhor imagem. Tinha uma visão original de tudo para o que apontava a lente, de um avião a um arranha-céu. Mas não se gabava nem tinha a vaidade de outros fotógrafos. Gostava de ensinar aos mais jovens e trabalhava em função da equipe, o que fazia dele um profissional ainda melhor.
Era um bom parceiro, boa companhia, e tecnicamente impecável. Em Quatro Rodas, firmou-se pelo detalhismo, o apuro técnico, a abordagem do jornalista. Fotografar um carro em jornalismo é muito difícil - e Bari sabia o que fazer. Ele conseguia mostrar o carro, ainda que estivesse em movimento. Você podia ver o cenário, ter a sensação de velocidade, mas podia enxergar a máquina, nas formas e em cada detalhe, como se ela estivesse parada sensualmente numa loja - e iluminada por dezenas de holofotes.
Ele também tinha paciência. Quatro Rodas, por exemplo, desmontava seus carros de teste, peça por peça, para mostrar seu desgaste. Aquilo tudo era perfilado no chão e fotografado, mostrando o carro inteiro desmanchado. Era uma composição: e Bari fazia aquilo como ninguém.
Com 53 anos, Bari era jovem e cheio de vida. Adorava falar de seu time, e eu costumava brincar com ele que, por entender tanto de carro e futebol, devia também entender alguma coisa de mulher. Era casado com Juliana, tinha uma filha, Nicolle, e era 100% família - ou coração. Estava trabalhando quando a viga de um estúdio caiu em sua cabeça, matando-o e ferindo gravemente seu assistente, Daniel, de 25 anos. Morreu como viveu, trabalhando, fazendo o que gosta. Procuro ter seu espírito leve e pensar no que ele diria para nos animar, depois da sua perda, tão repentina, injusta, inaceitável. Mas não é fácil ser como ele. Estou tentando.
Eu o conheci em 1993, estranhamente, na África. Ele fotografava como freelancer para a revista Viagem e Turismo, então dirigida por Jorge de Souza, que estava conosco num grupo de jornalistas convidados a conhecer a África do Sul e o Quênia. Lá, entre outras peripécias, empurramos juntos uma van por oito quilômetros na lama, o "black cotton soil" da savana africana, num lugar infestado por hienas e leões.
Acompanhando o jogo por telefone, comemoramos quando o Palmeiras saiu de uma fila de 17 anos sem títulos. Ao final daquela dura viagem, pulávamos, ríamos, rodopiávamos no amplo saguão de um hotel de luxo em Joahnesburgo, em meio às senhoras britânicas, que nos olhavam com uma sobrancelha de espanto, enquanto tomavam o chá das 5.
Combinamos então que em toda decisão importante nós dois deveríamos estar em algum lugar distante do mundo, certos de que era isto o que tinha nos dado sorte. O Palmeiras foi campeão muitas vezes depois disso, mas sempre queríamos saber onde o outro estava nas decisões. E brincávamos com isso.
Quando voltamos ao Brasil, a capa de Viagem e Turismo foi a mais impactante: a foto fechada no rosto de um xamã, emplumado e pintado de múltiplas cores na pele negra e gretada, que dava toda a dimensão misteriosa e selvagem da África. Com ela, a revista ganhou naquele ano o prêmio Abril de "Melhor Capa". Quando saiu o resultado, ri quietinho. E Bari também.
O que a foto não contava era a esperteza de Bari e Jorge. Embora tenhamos entrado numa aldeia masai de verdade e conhecido um rei tribal, o personagem de capa na verdade era um malandro que ficava em um posto de gasolina, na estrada para Nairobi. Pintava-se e emplumava-se para fazer fotos com os turistas. Quando eu o vi, estava sentado numa cadeira, em frente à lanchonete, fumando um Marlboro. Jorge e Bari o levaram a um canto e ali fizeram a sua foto. Que lhes custou, como custaria a qualquer um, algo como cinco dólares.
Seu trabalho o levou a muitos países e Bari não hesitava em se arriscar de verdade para fazer a melhor imagem. Tinha uma visão original de tudo para o que apontava a lente, de um avião a um arranha-céu. Mas não se gabava nem tinha a vaidade de outros fotógrafos. Gostava de ensinar aos mais jovens e trabalhava em função da equipe, o que fazia dele um profissional ainda melhor.
Era um bom parceiro, boa companhia, e tecnicamente impecável. Em Quatro Rodas, firmou-se pelo detalhismo, o apuro técnico, a abordagem do jornalista. Fotografar um carro em jornalismo é muito difícil - e Bari sabia o que fazer. Ele conseguia mostrar o carro, ainda que estivesse em movimento. Você podia ver o cenário, ter a sensação de velocidade, mas podia enxergar a máquina, nas formas e em cada detalhe, como se ela estivesse parada sensualmente numa loja - e iluminada por dezenas de holofotes.
Ele também tinha paciência. Quatro Rodas, por exemplo, desmontava seus carros de teste, peça por peça, para mostrar seu desgaste. Aquilo tudo era perfilado no chão e fotografado, mostrando o carro inteiro desmanchado. Era uma composição: e Bari fazia aquilo como ninguém.
Cristiano Ronaldo, Messi e a sina do ganhador
Até o final de semana passado, Cristiano Ronaldo enganava muita gente. Sofreu por muito tempo com o estigma do vaidoso: o carrão, as mulheres, a exuberância física, que ele não cansa de mostrar, faziam dele mais um galã brega do que ídolo nacional de futebol. Mesmo ganhador da bola de ouro, muita gente o colocava abaixo do argentino Messi no posto de melhor jogador do mundo. Porém, bastou uma fim de semana, em que ele jogou apenas 12 minutos, para tudo mudar.
Enquanto Messi perdia com a seleção argentina a disputa do terceiro título consecutivo, e deixava a imagem de joelhos no gramado, ao desperdiçar o pênalti fatídico que deu o título da última Copa América ao Chile, Cristiano Ronaldo desfrutava um título improvável: o de campeão da Eurocopa com a limitada, porém guerreira equipe de Portugal. E deixava clara, afinal, qual é a diferença na sina dos craques, que os faz serem não apenas campeões por seus clubes, como entrar para a história na primeira fila dos ídolos dos futebol.
Campeão da liga europeia este ano com o Real Madrid, CR7 levou seu Portugal ao maior título da história do país, coisa que outros grandes craques portugueses do passado, como Eusébio e Figo, jamais conseguiram. Surgiu um jogador diferente. Em vez do puro-sangue português, mostrou-se um líder. Viralizou na internet o vídeo em que ele estimula o companheiro Moutinho a cobrar um pênalti. "Você bate bem", diz ele no vídeo, convocando o companheiro, praticamente à força. "Se perdermos, que se foda", arrematou, no bom sotaque português.
Claro que Cristiano não queria perder: apenas dizia, com um palavrão, dentro do contexto do futebol, que a essência do jogo é não ter medo. Na final contra a França, favorita e dona da casa, depois de uma campanha sofrida, em que ganhou apenas uma partida de forma incontestável, ainda assim contra a mediana equipe do País de Gales, Portugal viu seu principal jogador ser tirado de campo por uma botinada maldosa do adversário aos 12 minutos de jogo. Porém, ao lado do campo, Cristiano continuou jogando com o time, praticamente ao lado do técnico. Uma liderança que fez a diferença.
Com isso, Ronaldo passou para a segunda categoria dos grandes craques da história. Na primeira, incontestável, está Pelé, que jogava um grande futebol e foi tricampeão mundial pela seleção brasileira, integrante maior de grandes esquadrões. Na segunda galeria, estão craques que levaram times não tão bons à conquista máxima do esporte. Como Romário, astro que liderou a diligente mas pouco brilhante equipe do Brasil ao tetra campeonato. Ou Maradona, que também foi uma vez campeão do mundo, com uma seleção argentina que praticamente carregou nas costas.
No terceiro estágio, há uma categoria de grandes craques que nunca conquistaram títulos importantes pela seleção. Astros campeões por seus clubes, nunca conseguiram o mesmo sucesso no time nacional. Cruyff, da Holanda de 1974, vice depois de derrota para a Alemanha, é o grande expoente dessa categoria. O segundo foi Zico. Craque incontestável, com seus dribles em diagonal para dentro da área, a cobrança de falta certeira, é o jogador com quem Messi mais se parece. Inclusive no destino.
Zico também perdeu o pênalti contra a França que poderia ter feito o Brasil ir até a final, na seleção de 1986. E também naufragou no Sarriá, com a grande seleção de 1982, diante da Itália que, frente ao Brasil, pareceu pequena e vencedora graças a golpes de sorte, mas também era uma grande equipe.
Messi é um grande craque, mas está, na qualidade e na sorte, no patamar de Cruyff e de Zico. Não chegou a Romário e Maradona, muito menos a Pelé. Perde diante de Cristiano Ronaldo pela falta de energia nas decisões: enquanto o português mostra fibra, se agiganta, ele decresce. Declarou após a derrota que a seleção "não é para mim". Aos 29 anos, tem agora poucas chances de mudar essa história.
Cristiano Ronaldo ainda não ganhou uma Copa do Mundo. Mas o título de Portugal é inédito e histórico e agora ninguém duvida que ele tem o DNA do campeão. Não apenas sabe jogar futebol. Tem o queixo erguido, a vontade férrea, a capacidade de lutar. E isso vale, mesmo quando não se está jogando. Porque não se é campeão apenas dentro de campo. Um campeão tem de fazer também parte de uma equipe, levá-la à vitória. Essa é a qualidade que deixa um jogador maior.
Enquanto Messi perdia com a seleção argentina a disputa do terceiro título consecutivo, e deixava a imagem de joelhos no gramado, ao desperdiçar o pênalti fatídico que deu o título da última Copa América ao Chile, Cristiano Ronaldo desfrutava um título improvável: o de campeão da Eurocopa com a limitada, porém guerreira equipe de Portugal. E deixava clara, afinal, qual é a diferença na sina dos craques, que os faz serem não apenas campeões por seus clubes, como entrar para a história na primeira fila dos ídolos dos futebol.
Messi de joelhos e Cristiano beijando a taça: a diferença do campeão |
Campeão da liga europeia este ano com o Real Madrid, CR7 levou seu Portugal ao maior título da história do país, coisa que outros grandes craques portugueses do passado, como Eusébio e Figo, jamais conseguiram. Surgiu um jogador diferente. Em vez do puro-sangue português, mostrou-se um líder. Viralizou na internet o vídeo em que ele estimula o companheiro Moutinho a cobrar um pênalti. "Você bate bem", diz ele no vídeo, convocando o companheiro, praticamente à força. "Se perdermos, que se foda", arrematou, no bom sotaque português.
Claro que Cristiano não queria perder: apenas dizia, com um palavrão, dentro do contexto do futebol, que a essência do jogo é não ter medo. Na final contra a França, favorita e dona da casa, depois de uma campanha sofrida, em que ganhou apenas uma partida de forma incontestável, ainda assim contra a mediana equipe do País de Gales, Portugal viu seu principal jogador ser tirado de campo por uma botinada maldosa do adversário aos 12 minutos de jogo. Porém, ao lado do campo, Cristiano continuou jogando com o time, praticamente ao lado do técnico. Uma liderança que fez a diferença.
Com isso, Ronaldo passou para a segunda categoria dos grandes craques da história. Na primeira, incontestável, está Pelé, que jogava um grande futebol e foi tricampeão mundial pela seleção brasileira, integrante maior de grandes esquadrões. Na segunda galeria, estão craques que levaram times não tão bons à conquista máxima do esporte. Como Romário, astro que liderou a diligente mas pouco brilhante equipe do Brasil ao tetra campeonato. Ou Maradona, que também foi uma vez campeão do mundo, com uma seleção argentina que praticamente carregou nas costas.
No terceiro estágio, há uma categoria de grandes craques que nunca conquistaram títulos importantes pela seleção. Astros campeões por seus clubes, nunca conseguiram o mesmo sucesso no time nacional. Cruyff, da Holanda de 1974, vice depois de derrota para a Alemanha, é o grande expoente dessa categoria. O segundo foi Zico. Craque incontestável, com seus dribles em diagonal para dentro da área, a cobrança de falta certeira, é o jogador com quem Messi mais se parece. Inclusive no destino.
Zico também perdeu o pênalti contra a França que poderia ter feito o Brasil ir até a final, na seleção de 1986. E também naufragou no Sarriá, com a grande seleção de 1982, diante da Itália que, frente ao Brasil, pareceu pequena e vencedora graças a golpes de sorte, mas também era uma grande equipe.
Messi é um grande craque, mas está, na qualidade e na sorte, no patamar de Cruyff e de Zico. Não chegou a Romário e Maradona, muito menos a Pelé. Perde diante de Cristiano Ronaldo pela falta de energia nas decisões: enquanto o português mostra fibra, se agiganta, ele decresce. Declarou após a derrota que a seleção "não é para mim". Aos 29 anos, tem agora poucas chances de mudar essa história.
Cristiano Ronaldo ainda não ganhou uma Copa do Mundo. Mas o título de Portugal é inédito e histórico e agora ninguém duvida que ele tem o DNA do campeão. Não apenas sabe jogar futebol. Tem o queixo erguido, a vontade férrea, a capacidade de lutar. E isso vale, mesmo quando não se está jogando. Porque não se é campeão apenas dentro de campo. Um campeão tem de fazer também parte de uma equipe, levá-la à vitória. Essa é a qualidade que deixa um jogador maior.
terça-feira, 5 de julho de 2016
O Brasil da Europa
Aeroporto de Antuérpia, onde desci num Fokker a hélice que me lembrou outros tempos, vindo de Londres. Uma fila maior para passar no setor de passaportes, outra menor, e eu, verdadeiramente distraído, vou na menor, é claro, e ao chegar ao guichê apresento meu passaporte brasileiro.
"Mas o senhor não viu que aqui é para passageiros da comunidade europeia"? - pergunta o homem da polícia federal deles. "Não", digo eu, erguendo os olhos para a placa. "Não tem problema", ele diz, e abre o passaporte mesmo assim. Pergunta o que vou fazer. "Estou acompanhando minha mulher, que é jornalista, vai escrever sobre as novidades no porto da cidade. " "Fica quanto tempo?", ele quer saber. "Dois dias." "Dois dias,mas que pena! É pouco!"
Saio com o passaporte na mão, carimbado, já meio desconfiado. Nao esperava tanta receptividade. Mas em Antuérpia todos dizem que estrangeiros são bem vindos. Inclusive para ficar por lá, se quiserem, para sempre. Como o Brasil, que também recebe qualquer estrangeiro de braços abertos. Até criminosos internacionais, como o simpático Ronald Biggs, falecido assaltante de trens na Inglaterra, que no Rio era celebridade e circulava no high society.
Na porta do aeroporto, devia estar o motorista do transfer reservado pela agência, que nos levaria ao hotel. Mas não havia ninguém: o saguão estava às moscas. Depois de quase duas horas de espera e alguns telefonemas, descobrimos que ele nos esperava, sim, no aeroporto - mas em Bruxelas. Tomamos um táxi. A Bélgica ia ficando estranhamente mais parecida com o Brasil.
Entramos um táxi comum: lá, uma Mercedes refrigerada. Para nossa surpresa, o motorista, um lourão com jeito de ex-surfista, fala com a gente em português. "Mas você é de Portugal?", pergunto. "Não", diz ele. "Este país é muito chato. Então tenho uma casa em Lisboa. Toda quarta-feira aqui tem um voo de 25 euros para Lisboa. Vou para lá." O belga fala mal de seu país assim como nós. Seu sonho também é ir embora. Só não se fica em Lisboa porque lá, segundo ele, não há emprego.
O saguão do hotel Radisson é bem diante da estação monumental de trem, um verdadeiro templo dos transportes, que os belgas inauguraram em Antuérpia para que todos os que estão de passagem prestem um pouco mais de atenção ali. Há um quase comovente esforço para agradar e chamar a atenção. A cidade, embora seja dentro do continente, graças ao rio Escalda é um antigo e célebre porto, hoje ultramovimentado, como uma das grandes portas para o comércio ao norte da Europa. Mas se acostumou a ver navios, ou melhor, marinheiros, que estão sempre de passagem. Hoje, na sua população de meio milhão de habitantes, há chineses, africanos e outros migrantes, além dos belgas, que parecem minoria. Mas ainda sinto no ar o cheiro do Brasil.
"Os senhores não têm reserva", diz o moço do balcão. Repetimos nome e sobrenome: é fácil o pessoal se confundir no estrangeiro quando entram no hotel brasileiros com nome de índio. Mas não foi essa a questão. A agência, a mesma que marcara a passagem aérea e o transfer, havia feito a reserva do hotel, sim, mas para o dia anterior. "Xi", pensei. "Não tem problema", disse o moço do balcão. "Os senhores podem deixar a mala aqui e dar uma volta, daqui uma hora estará tudo resolvido." E assim aconteceu.
A Bélgica é um país pequeno. Antuérpia é uma linda cidade, meio caótica, com um porto que representa a maior parte do município, mas tem um centro adorável, de edifícios antigos, onde se anda entre bares e monumentos históricos. O povo é acolhedor e faz de tudo pelo visitante. Parece o paraíso, como o Brasil. Mas é estranha essa sensação de que ali nada dá muito certo, ainda que haja sempre um jeitinho para resolver. O jeitinho belga. Primo do jeitinho brasileiro.
Esse não é o único traço do comportamento belga que me fez sentir em casa em Antuérpia. Fomos a uma recepção na prefeitura, um prédio clássico de pé direito alto, digno de reis e rainhas. Ali se realizam tradicionalmente os casamentos da cidade, no salão onde nos recebe o chefe do porto. Uma herança de tempos ricos, em que os belgas procuravam se equiparar aos franceses em riqueza e classe, amparados no movimento do porto e na tradição reluzente da cidade como centro mundial da lapidação e comércio de diamantes.
Diante de uma plateia internacional de jornalistas, o homem do porto começa seu discurso. "Vou falar agora o que direi amanhã, na inauguração da nossa eclusa, para o nosso rei", começa ele. "O rei não manda nada, mas quem interessa ouvir o que vou falar vai estar lá também." Paro, maravilhado. Ali está, mais uma vez, a vocação do brasileiro. Que ele confirma ao desdenhar também do prefeito. Diz que faz piada com o principal mandatário local porque controla "a maior parte da cidade". E responde, claro, pela sua economia.
Vestido num paletó bem cortado, com um cavanhaque aparadíssimo, está no cargo há dez anos e no dia seguinte vai inaugurar sua grande obra, pela qual diz ter lutado toda aquela década - uma eclusa que vai facilitar o trânsito de uma importante área de docas. O porto de Antuérpia foi criado por Napoleão e ficou fechado por três séculos, devido à pressão estrangeira. Agora floresce e está livre. Mas o homem ali me parece mais Odorico Paraguaçu, o político provinciano de O Bem Amado.
Reza a lenda que o porto não surgiu com Napoleão, e sim um gigante mitológico, chamado Antigoon. Esse gigante ficaria ao lado do rio e cobrava pedágio daqueles que queriam entrar na Europa por ali. A quem se recusava a pagar, Antigoon cortava a mão, atirando-a ao rio. Até que o herói Brabo cortou a mão do próprio gigante e a jogou no Escalda. Sua estátua está diante da prefeitura de Antuérpia. É uma bela estátua, erguida sobre uma base de vinte metros de altura. Mas no pé do herói, no dia em que o vi, trazia dependurada uma calcinha, que algum gaiato deu jeito de enfiar ali.
Para quem gosta de semelhanças, não podia faltar o futebol. A Bélgica era apontada como uma das grandes favoritas à Eurocopa. Juntou um time respeitado em toda a Europa, com jogadores que atuam nos principais clubes europeus. Do goleiro Cortois ao jovem astro De Bruyne, passando pelo hábil meio-campo Hazard, o cabeludo Fellaini e o aplicado Kompany, essa é tratada como a "geração de ouro" do futebol belga. Pois de saída perdeu da desacreditada Itália e acabou desclassificada diante do inexpressivo País de Gales. Como o Brasil, a Bélgica também superestima seus dotes e talentos no futebol. E consegue fiascos como os nossos, na história recente.
A Bélgica ainda não tem um nível de corrupção monstruoso como o brasileiro, a única coisa em que parece levar desvantagem diante do Brasil. Mas não deixei de me consolar. Saí de lá aliviado. Podemos ser um país meio esquerdo, mas não somos os únicos. Claro, a Bélgica é menor que o Estado do Rio de Janeiro. Mas está provado que gerenciar um país não é questão de tamanho. Você pode administrar qualquer coisa como o Brasil. Seja do tamanho que for. E acreditar que, no final, dá certo.
"Mas o senhor não viu que aqui é para passageiros da comunidade europeia"? - pergunta o homem da polícia federal deles. "Não", digo eu, erguendo os olhos para a placa. "Não tem problema", ele diz, e abre o passaporte mesmo assim. Pergunta o que vou fazer. "Estou acompanhando minha mulher, que é jornalista, vai escrever sobre as novidades no porto da cidade. " "Fica quanto tempo?", ele quer saber. "Dois dias." "Dois dias,mas que pena! É pouco!"
Saio com o passaporte na mão, carimbado, já meio desconfiado. Nao esperava tanta receptividade. Mas em Antuérpia todos dizem que estrangeiros são bem vindos. Inclusive para ficar por lá, se quiserem, para sempre. Como o Brasil, que também recebe qualquer estrangeiro de braços abertos. Até criminosos internacionais, como o simpático Ronald Biggs, falecido assaltante de trens na Inglaterra, que no Rio era celebridade e circulava no high society.
Na porta do aeroporto, devia estar o motorista do transfer reservado pela agência, que nos levaria ao hotel. Mas não havia ninguém: o saguão estava às moscas. Depois de quase duas horas de espera e alguns telefonemas, descobrimos que ele nos esperava, sim, no aeroporto - mas em Bruxelas. Tomamos um táxi. A Bélgica ia ficando estranhamente mais parecida com o Brasil.
Entramos um táxi comum: lá, uma Mercedes refrigerada. Para nossa surpresa, o motorista, um lourão com jeito de ex-surfista, fala com a gente em português. "Mas você é de Portugal?", pergunto. "Não", diz ele. "Este país é muito chato. Então tenho uma casa em Lisboa. Toda quarta-feira aqui tem um voo de 25 euros para Lisboa. Vou para lá." O belga fala mal de seu país assim como nós. Seu sonho também é ir embora. Só não se fica em Lisboa porque lá, segundo ele, não há emprego.
O saguão do hotel Radisson é bem diante da estação monumental de trem, um verdadeiro templo dos transportes, que os belgas inauguraram em Antuérpia para que todos os que estão de passagem prestem um pouco mais de atenção ali. Há um quase comovente esforço para agradar e chamar a atenção. A cidade, embora seja dentro do continente, graças ao rio Escalda é um antigo e célebre porto, hoje ultramovimentado, como uma das grandes portas para o comércio ao norte da Europa. Mas se acostumou a ver navios, ou melhor, marinheiros, que estão sempre de passagem. Hoje, na sua população de meio milhão de habitantes, há chineses, africanos e outros migrantes, além dos belgas, que parecem minoria. Mas ainda sinto no ar o cheiro do Brasil.
"Os senhores não têm reserva", diz o moço do balcão. Repetimos nome e sobrenome: é fácil o pessoal se confundir no estrangeiro quando entram no hotel brasileiros com nome de índio. Mas não foi essa a questão. A agência, a mesma que marcara a passagem aérea e o transfer, havia feito a reserva do hotel, sim, mas para o dia anterior. "Xi", pensei. "Não tem problema", disse o moço do balcão. "Os senhores podem deixar a mala aqui e dar uma volta, daqui uma hora estará tudo resolvido." E assim aconteceu.
A Bélgica é um país pequeno. Antuérpia é uma linda cidade, meio caótica, com um porto que representa a maior parte do município, mas tem um centro adorável, de edifícios antigos, onde se anda entre bares e monumentos históricos. O povo é acolhedor e faz de tudo pelo visitante. Parece o paraíso, como o Brasil. Mas é estranha essa sensação de que ali nada dá muito certo, ainda que haja sempre um jeitinho para resolver. O jeitinho belga. Primo do jeitinho brasileiro.
Esse não é o único traço do comportamento belga que me fez sentir em casa em Antuérpia. Fomos a uma recepção na prefeitura, um prédio clássico de pé direito alto, digno de reis e rainhas. Ali se realizam tradicionalmente os casamentos da cidade, no salão onde nos recebe o chefe do porto. Uma herança de tempos ricos, em que os belgas procuravam se equiparar aos franceses em riqueza e classe, amparados no movimento do porto e na tradição reluzente da cidade como centro mundial da lapidação e comércio de diamantes.
Diante de uma plateia internacional de jornalistas, o homem do porto começa seu discurso. "Vou falar agora o que direi amanhã, na inauguração da nossa eclusa, para o nosso rei", começa ele. "O rei não manda nada, mas quem interessa ouvir o que vou falar vai estar lá também." Paro, maravilhado. Ali está, mais uma vez, a vocação do brasileiro. Que ele confirma ao desdenhar também do prefeito. Diz que faz piada com o principal mandatário local porque controla "a maior parte da cidade". E responde, claro, pela sua economia.
Vestido num paletó bem cortado, com um cavanhaque aparadíssimo, está no cargo há dez anos e no dia seguinte vai inaugurar sua grande obra, pela qual diz ter lutado toda aquela década - uma eclusa que vai facilitar o trânsito de uma importante área de docas. O porto de Antuérpia foi criado por Napoleão e ficou fechado por três séculos, devido à pressão estrangeira. Agora floresce e está livre. Mas o homem ali me parece mais Odorico Paraguaçu, o político provinciano de O Bem Amado.
Reza a lenda que o porto não surgiu com Napoleão, e sim um gigante mitológico, chamado Antigoon. Esse gigante ficaria ao lado do rio e cobrava pedágio daqueles que queriam entrar na Europa por ali. A quem se recusava a pagar, Antigoon cortava a mão, atirando-a ao rio. Até que o herói Brabo cortou a mão do próprio gigante e a jogou no Escalda. Sua estátua está diante da prefeitura de Antuérpia. É uma bela estátua, erguida sobre uma base de vinte metros de altura. Mas no pé do herói, no dia em que o vi, trazia dependurada uma calcinha, que algum gaiato deu jeito de enfiar ali.
Para quem gosta de semelhanças, não podia faltar o futebol. A Bélgica era apontada como uma das grandes favoritas à Eurocopa. Juntou um time respeitado em toda a Europa, com jogadores que atuam nos principais clubes europeus. Do goleiro Cortois ao jovem astro De Bruyne, passando pelo hábil meio-campo Hazard, o cabeludo Fellaini e o aplicado Kompany, essa é tratada como a "geração de ouro" do futebol belga. Pois de saída perdeu da desacreditada Itália e acabou desclassificada diante do inexpressivo País de Gales. Como o Brasil, a Bélgica também superestima seus dotes e talentos no futebol. E consegue fiascos como os nossos, na história recente.
A Bélgica ainda não tem um nível de corrupção monstruoso como o brasileiro, a única coisa em que parece levar desvantagem diante do Brasil. Mas não deixei de me consolar. Saí de lá aliviado. Podemos ser um país meio esquerdo, mas não somos os únicos. Claro, a Bélgica é menor que o Estado do Rio de Janeiro. Mas está provado que gerenciar um país não é questão de tamanho. Você pode administrar qualquer coisa como o Brasil. Seja do tamanho que for. E acreditar que, no final, dá certo.
quinta-feira, 30 de junho de 2016
O Brasil e uma esperança solitária
Caminho pela rua, onde os mendigos se multiplicaram: um deles levanta debaixo de uma coberta imunda e me pergunta a hora, com educação. Há nas ruas de Higienópolis muita gente morando em colchões jogados ao chão; estamos perto do centro, mas não havia aqui assim tanta gente antes: é impossível andar uma quadra sem ouvir um pedido de dinheiro.
Uma manicure senta na porta do salão de beleza, cigarro nos dedos da mão: não há clientes na tarde sem vento. Por volta das onze horas, um homem veio me visitar em casa: o filho mora na Europa, vem ao Brasil um tempo, para se operar, e assim que puder, vai voltar para lá. Em dois dias, é a quinta pessoa que me fala de alguém que saiu do Brasil.
Temos 11 milhões de desempregados, isso na contabilidade oficial: todos os que ouço dizem que os negócios estão parados. Muitos deixam a cidade grande, vão buscar a vida no interior, como já aconteceu na Roma antiga: a saída para a sobrevivência básica. A mudança, criada não pela esperança, e sim pela desilusão, é fuga, e não solução.
Levo meu filho ao futebol, o que deveria ser uma das poucas alegrias restantes: nosso Palmeiras está na liderança no campeonato. Mesmo lá, porém, o cenário é constrangedor. Nas partidas a que temos assistido, no Allianz Parque, ao ritmo da música, a torcida substitui a letra do hino nacional pela palavra "Palmeiras" durante toda a execução. Canto o hino, enquanto meu filho olha, confuso, o pai ser o único a fazer aquilo no meio daquela multidão, uma voz dissonante entre 30 mil pessoas, para não dizer duas centenas de milhões.
Ontem anunciaram os convocados para a seleção olímpica, mas pouca gente pensa agora na beleza épica da olimpíada, um momento especial que agora vai parecendo um espetáculo inconveniente, constrangedor, quase uma maldição. Meus amigos dizem que só se importam com os clubes, não com o time nacional. Penso que é por isso que estamos nessa situação; o futebol não é apenas o futebol, é comportamento. Por olhar somente para interesses próprios ou pequenos, por agir somente em função dos interesses individuais, inclusive desrespeitando a lei e o direito do próximo, ou preferindo fazer vista grossa ao governo corrupto enquanto a economia ainda estava bem, é que o brasileiro, e não o governo, deixou que chegássemos a esta situação.
Agora parece ser tarde demais e o brasileiro se desanima com a política, mas no fundo se desanima consigo mesmo. Há os alienados, os hipócritas e os insensatos de sempre, a quem se deu oportunidade de tomar o poder. O PT quebrou o governo, não apenas com os rios de dinheiro desviados de empresas antes sólidas como a Petrobras e até dos fundos de pensão; é difícil imaginar como puderam pensar que iriam sair bem do fim do túnel em um trem descarrilhado.
Um partido que tomou dinheiro até dos aposentados deveria tirar o "Trabalhadores" de sua legenda. Mas não vejo vergonha, nem arrependimento, e sim o orgulho cego e prepotente de sempre. Vejo as hostes do PT agitando suas bandeiras vermelhas e reafirmando os mesmos velhos bordões. Sinto que a Humanidade não aprende consigo mesma, repete seus erros, até a violência. O avanço da tecnologia e o iluminismo não avançam com a era digital, que divide e desintegra a sociedade civilizada por um lado, e por outro agrega e reafirma a bárbarie.
Se fosse apenas o Brasil, mas é um fenômeno global. O mundo andará melhor? Recentemente, extremistas religiosos explodiram a si mesmos em dois aeroportos, em Bruxelas e Istambul, matando com eles dezenas de pessoas. Inocentes foram dizimados a tiros de fuzil quando se divertiam em um clube noturno. O Oriente Médio é um barril de pólvora. O Brasil tinha condições de ser um exemplo de tolerância e progresso, mas nossa índole e falta de educação nos levam novamente ao desastre, em vez do futuro que sonhamos, sem persegui-lo de fato, com determinação.
O Brasil é um país fácil. Com um imenso mercado consumidor, de gente que precisa e só deseja melhorar de vida. Somos um país democrático. Não temos problemas como outros, que não têm espaço o bastante para plantar, ou enfrentam o clima inóspito, ou dependem de energia suja, ou lidam com radicais religiosos. Nascemos em berço esplêndido, mas talvez venha daí, das nossas facilidades, nossa propensão para a indolência e a irresponsabilidade.
Nós temos como desafio apenas a nossa própria pobreza, ou a nossa ganância, ou nossa incapacidade de agir coletivamente. Somos ainda índios, ou melhor, dispersos como nossos tribos ancestrais, infectados com a ganância dos primeiros portugueses, que entraram nesta terra com o único objetivo de fazer fortuna e voltar a Portugal.
Somos um país de uma única língua, com grande identidade cultural, que poderia ser uma grande força, mas nos perdemos com nós mesmos. Os grandes esforços de reconstrução, após o belo capítulo da nossa história que foi a reconstituição do Estado de Direito e do regime democrático após o regime militar, parecem ter sido debalde: voltamos ao Brasil de sempre.
Hoje eu vou a jogo do Palmeiras, e vou cantar o hino nacional, ainda que seja o único em todo o estádio: no meio da multidão ingrata, eu me sinto quixotesco, deslocado, louco, mas, por meu filho, ainda acho que a esperança tem de recomeçar de algum ponto, de algum lugar, de algum coração.
Uma manicure senta na porta do salão de beleza, cigarro nos dedos da mão: não há clientes na tarde sem vento. Por volta das onze horas, um homem veio me visitar em casa: o filho mora na Europa, vem ao Brasil um tempo, para se operar, e assim que puder, vai voltar para lá. Em dois dias, é a quinta pessoa que me fala de alguém que saiu do Brasil.
Temos 11 milhões de desempregados, isso na contabilidade oficial: todos os que ouço dizem que os negócios estão parados. Muitos deixam a cidade grande, vão buscar a vida no interior, como já aconteceu na Roma antiga: a saída para a sobrevivência básica. A mudança, criada não pela esperança, e sim pela desilusão, é fuga, e não solução.
Levo meu filho ao futebol, o que deveria ser uma das poucas alegrias restantes: nosso Palmeiras está na liderança no campeonato. Mesmo lá, porém, o cenário é constrangedor. Nas partidas a que temos assistido, no Allianz Parque, ao ritmo da música, a torcida substitui a letra do hino nacional pela palavra "Palmeiras" durante toda a execução. Canto o hino, enquanto meu filho olha, confuso, o pai ser o único a fazer aquilo no meio daquela multidão, uma voz dissonante entre 30 mil pessoas, para não dizer duas centenas de milhões.
Ontem anunciaram os convocados para a seleção olímpica, mas pouca gente pensa agora na beleza épica da olimpíada, um momento especial que agora vai parecendo um espetáculo inconveniente, constrangedor, quase uma maldição. Meus amigos dizem que só se importam com os clubes, não com o time nacional. Penso que é por isso que estamos nessa situação; o futebol não é apenas o futebol, é comportamento. Por olhar somente para interesses próprios ou pequenos, por agir somente em função dos interesses individuais, inclusive desrespeitando a lei e o direito do próximo, ou preferindo fazer vista grossa ao governo corrupto enquanto a economia ainda estava bem, é que o brasileiro, e não o governo, deixou que chegássemos a esta situação.
Agora parece ser tarde demais e o brasileiro se desanima com a política, mas no fundo se desanima consigo mesmo. Há os alienados, os hipócritas e os insensatos de sempre, a quem se deu oportunidade de tomar o poder. O PT quebrou o governo, não apenas com os rios de dinheiro desviados de empresas antes sólidas como a Petrobras e até dos fundos de pensão; é difícil imaginar como puderam pensar que iriam sair bem do fim do túnel em um trem descarrilhado.
Um partido que tomou dinheiro até dos aposentados deveria tirar o "Trabalhadores" de sua legenda. Mas não vejo vergonha, nem arrependimento, e sim o orgulho cego e prepotente de sempre. Vejo as hostes do PT agitando suas bandeiras vermelhas e reafirmando os mesmos velhos bordões. Sinto que a Humanidade não aprende consigo mesma, repete seus erros, até a violência. O avanço da tecnologia e o iluminismo não avançam com a era digital, que divide e desintegra a sociedade civilizada por um lado, e por outro agrega e reafirma a bárbarie.
Se fosse apenas o Brasil, mas é um fenômeno global. O mundo andará melhor? Recentemente, extremistas religiosos explodiram a si mesmos em dois aeroportos, em Bruxelas e Istambul, matando com eles dezenas de pessoas. Inocentes foram dizimados a tiros de fuzil quando se divertiam em um clube noturno. O Oriente Médio é um barril de pólvora. O Brasil tinha condições de ser um exemplo de tolerância e progresso, mas nossa índole e falta de educação nos levam novamente ao desastre, em vez do futuro que sonhamos, sem persegui-lo de fato, com determinação.
O Brasil é um país fácil. Com um imenso mercado consumidor, de gente que precisa e só deseja melhorar de vida. Somos um país democrático. Não temos problemas como outros, que não têm espaço o bastante para plantar, ou enfrentam o clima inóspito, ou dependem de energia suja, ou lidam com radicais religiosos. Nascemos em berço esplêndido, mas talvez venha daí, das nossas facilidades, nossa propensão para a indolência e a irresponsabilidade.
Nós temos como desafio apenas a nossa própria pobreza, ou a nossa ganância, ou nossa incapacidade de agir coletivamente. Somos ainda índios, ou melhor, dispersos como nossos tribos ancestrais, infectados com a ganância dos primeiros portugueses, que entraram nesta terra com o único objetivo de fazer fortuna e voltar a Portugal.
Somos um país de uma única língua, com grande identidade cultural, que poderia ser uma grande força, mas nos perdemos com nós mesmos. Os grandes esforços de reconstrução, após o belo capítulo da nossa história que foi a reconstituição do Estado de Direito e do regime democrático após o regime militar, parecem ter sido debalde: voltamos ao Brasil de sempre.
Hoje eu vou a jogo do Palmeiras, e vou cantar o hino nacional, ainda que seja o único em todo o estádio: no meio da multidão ingrata, eu me sinto quixotesco, deslocado, louco, mas, por meu filho, ainda acho que a esperança tem de recomeçar de algum ponto, de algum lugar, de algum coração.
sexta-feira, 10 de junho de 2016
Uma razão de viver
"Pensei que você iria achar tudo muito sem graça", diz ela, enquanto repousa os pés cansados no meu colo, dentro de um estudio em Londres, com uma parede de vidro para um jardim à moda inglesa: o backyard longo, com árvores que parecem pender de algum quadro imoldurável, e uma igreja de tijolos escuros que já encampou um dia rezas de religiosos medievais.
Fala não porque duvida, ou não me conhece. Fala justamente porque não é verdade: gosta de provocar, quer que eu diga o que ela já sabe.
Tem os olhos vermelhos, cansados da semana quase sem dormir; hoje madrugou em Antuérpia e termina o dia em Londres; conheceu e almoçou com um rei e acabou o dia num proletário trem de subúrbio; andou de roda-gigante, entrou pela primeira vez num avião a hélice, passeou comigo por uma "catedral" que não é igreja, e sim uma estação de trem. Ganhou bombons, um guarda-chuva branco e muitos sorrisos de despedida dos amigos que fez com o encanto imediato dos meteoros. Assim cansada, fez questão de carregar como sempre a bagagem pelo labirinto subterrâneo do metrô londrino, como gosta de fazer, dizendo sempre: "sou muito forte".
Nós dois nesta casa temporária onde há pouco espaço para algo além de nós dois: sim, ela trabalhou a semana inteira, quase sem dormir, quase sem me ver, apesar de eu estar ao seu lado o tempo todo. E assim, quase invisível, eu não poderia achar a vida sem graça, pois a graça está justamente nela.
Eu a vi iluminar homens sisudos e assuntos áridos, emprestar brilho à festa de um rei sem fama e ornar com feminina beleza os salões ricamente decorados da cidade dos diamantes. Ela tem aquele sorriso para cada um; a palavra amiga e a modéstia de quem é elegante em qualquer lugar. No salão dos reis, comeu zabaione com cerveja, riu um pouco tonta, contou histórias e desceu as escadarias monumentais, deixando atrás a desolação dos palácios, que dela sentirão falta e perderão o sentido pelos próximos trezentos anos.
Vi tudo, invisível, mas feliz. Para mim, tive muito. A tarde em que festejamos o fim do seminário em Londres; fomos para casa a pé; atravessamos o Hyde Park, caminhamos toda a Oxford Street e comemos num restaurante turco, com cerveja turca, e risos transcontinentais. Ela ao fim de tudo, com trabalho extra que apareceu na hora errada, e ainda assim sorriu, brincou, dançou diante da lareira com a echarpe negra. Criança, adolescente, mulher.
Ela sabe fazer todos felizes: eu e os outros. E mais a mim, que já fui tão difícil de contentar, e hoje me dobro diante dela, observando: diligente, concentrada, atenciosa, comedida ao falar, como se a radiação que lhe deu a natureza pedisse sua mansidão como um fator de equilíbrio. Ela poderia ser cheia de exigências e certezas e sentenças, mas fala quando é a hora, pergunta, escreve - o que pensam e dizem os outros. Ela, que poderia ter tudo, ou o que quisesse, onde quisesse.
Por fazer tanto por todos, e por mim, ela que já me acompanhou discreta e prestativamente em outras tantas viagens a trabalho; por ser comigo o que ela é com todos, generosa e pronta, com alguns privilégios mais, eu posso experimentar como é estar do outro lado com prazer. Posso fazer por ela o que ela faz por mim.
Estar em um lugar apenas como o companheiro; saber dela, ela que sabe tudo de mim: quando estou ou não triste, o quanto eu gosto, o quanto eu sinto. Incluindo saber que estou aqui assim como vivo com ela, de boa fé, não porque é Londres, não porque esse é o único tempo que temos, mas porque é ela que me faz alegre, que me faz sorrir, me faz viver.
Fala não porque duvida, ou não me conhece. Fala justamente porque não é verdade: gosta de provocar, quer que eu diga o que ela já sabe.
Tem os olhos vermelhos, cansados da semana quase sem dormir; hoje madrugou em Antuérpia e termina o dia em Londres; conheceu e almoçou com um rei e acabou o dia num proletário trem de subúrbio; andou de roda-gigante, entrou pela primeira vez num avião a hélice, passeou comigo por uma "catedral" que não é igreja, e sim uma estação de trem. Ganhou bombons, um guarda-chuva branco e muitos sorrisos de despedida dos amigos que fez com o encanto imediato dos meteoros. Assim cansada, fez questão de carregar como sempre a bagagem pelo labirinto subterrâneo do metrô londrino, como gosta de fazer, dizendo sempre: "sou muito forte".
Nós dois nesta casa temporária onde há pouco espaço para algo além de nós dois: sim, ela trabalhou a semana inteira, quase sem dormir, quase sem me ver, apesar de eu estar ao seu lado o tempo todo. E assim, quase invisível, eu não poderia achar a vida sem graça, pois a graça está justamente nela.
Eu a vi iluminar homens sisudos e assuntos áridos, emprestar brilho à festa de um rei sem fama e ornar com feminina beleza os salões ricamente decorados da cidade dos diamantes. Ela tem aquele sorriso para cada um; a palavra amiga e a modéstia de quem é elegante em qualquer lugar. No salão dos reis, comeu zabaione com cerveja, riu um pouco tonta, contou histórias e desceu as escadarias monumentais, deixando atrás a desolação dos palácios, que dela sentirão falta e perderão o sentido pelos próximos trezentos anos.
Vi tudo, invisível, mas feliz. Para mim, tive muito. A tarde em que festejamos o fim do seminário em Londres; fomos para casa a pé; atravessamos o Hyde Park, caminhamos toda a Oxford Street e comemos num restaurante turco, com cerveja turca, e risos transcontinentais. Ela ao fim de tudo, com trabalho extra que apareceu na hora errada, e ainda assim sorriu, brincou, dançou diante da lareira com a echarpe negra. Criança, adolescente, mulher.
Ela sabe fazer todos felizes: eu e os outros. E mais a mim, que já fui tão difícil de contentar, e hoje me dobro diante dela, observando: diligente, concentrada, atenciosa, comedida ao falar, como se a radiação que lhe deu a natureza pedisse sua mansidão como um fator de equilíbrio. Ela poderia ser cheia de exigências e certezas e sentenças, mas fala quando é a hora, pergunta, escreve - o que pensam e dizem os outros. Ela, que poderia ter tudo, ou o que quisesse, onde quisesse.
Por fazer tanto por todos, e por mim, ela que já me acompanhou discreta e prestativamente em outras tantas viagens a trabalho; por ser comigo o que ela é com todos, generosa e pronta, com alguns privilégios mais, eu posso experimentar como é estar do outro lado com prazer. Posso fazer por ela o que ela faz por mim.
Estar em um lugar apenas como o companheiro; saber dela, ela que sabe tudo de mim: quando estou ou não triste, o quanto eu gosto, o quanto eu sinto. Incluindo saber que estou aqui assim como vivo com ela, de boa fé, não porque é Londres, não porque esse é o único tempo que temos, mas porque é ela que me faz alegre, que me faz sorrir, me faz viver.
quarta-feira, 18 de maio de 2016
Lembrando Cauby
Em 2009, quando fui convidado pela primeira vez a escrever o perfil dos vencedores do prêmio Paulistanos do Ano, promovido pela revista Veja São Paulo, conheci pessoalmente Cauby Peixoto, destaque na categoria musical. Cauby acabara de ganhar o Grammy Latino, o prêmio Tim, e lotava as suas noites do bar Brahma, no centro velho de São Paulo, com um show em que desfilava seu repertório quase invariável.
Ali, Cauby ainda realizava a mágica que o mantinha vivo, a verdadeira mágica da transformação. Ao colocar suas roupas fulgurantes, a peruca que o deixava com uma cabeleira cheia de anéis, a verdadeira máscara de pintura com que redesenhava seu rosto e lhe dava um semblante um tanto trágico, sua figura ganhava a antiga extravagância e acompanhava o vigor da voz, que já não era a mesma de outros tempos, porém mantinha-se superior à da maioria dos intérpretes de gerações subsequentes.
O Cauby que me recebeu, porém, era um pouco diferente. Foi pouco antes do show, no improvisado camarim do Brahma, uma salinha meio escura, onde mal cabíamos os dois. Sentado numa cadeira de madeira, estava sem a sua clássica peruca: completamente calvo, com o rosto já pintado para o show, mostrava-se envelhecido e frágil, o que explicava ser carregado para o palco, onde cantava sentado, durante todo o espetáculo. Pela proximidade e o despojamento, caí de repente e sem aviso na sua intimidade.
Quando lhe falei que ganhara o prêmio e e eu escreveria sobre ele na revista, ele não pareceu surpreso, mas não deixou de sentir-se lisonjeado. Falou de seu momento e de sua história, desde os tempos em que foi ganhar a vida cantando em bares nos Estados Unidos. Nessa época, pintava já os cabelos de preto, porque os americanos queriam ouvir um latino que se parecesse com o cantor então da moda, o argentino Carlos Gardel.
Com sua voz grave, empostada e calma, Cauby falou ainda de sua vida reclusa, num apartamento de Higienópolis, do qual saía apenas para trabalhar. Achava que assim preservava sua imagem: não era visto nem reconhecido como outra coisa além do personagem que o fizera famoso e que gostaria de preservar.
O que mais me impressionou, no entanto, foi outra coisa. A certa altura, lhe perguntei se não ficara magoado com tudo o que Veja escrevera sobre ele no passado, quando foi taxado de cantor brega e usado incansavelmente como piada. Disse que estava admirado de que ele, apesar daquilo, estivesse me recebendo tão bem daquela forma.
Cauby respondeu que o artista vivia para ser visto: "o mais importante não é o que falam de mim, mas falarem de mim", ele me disse. "A única coisa que me importa, e é sempre uma honra, é ser lembrado." Sem os trajes nos quais brilhava, nesse instante ele me pareceu ao mesmo tempo pequeno e grande: pequeno como ser, frágil, vaidoso, angustiado, e grande, por conta de uma inesperada e superlativa humildade.
Fiquei com ele até o momento de sair, carregado por dois garçons, até o palco. Cauby tinha vencido tudo: a idade, a fama de brega, o esquecimento, e até a revista Veja. Era venerado pela plateia, como poucas vezes vi um artista: havia no ar um certo saudosismo de tempos dos quais todos sentiam falta, e ele simbolizava essa era, como se todos ali de repente pudessem rejuvenescer. E mesmo os jovens pareciam sintonizados com aquele artista que, no final, já parecia não ter tempo.
Agora que o tempo enfim levou Cauby, penso nele, no seu olhar grato e triste, na alma do artista que vive do calor humano, porém na mais completa solidão. E concluo que ele,na sabedoria de toda uma vida, estava certo: o que importa é deixar alguma coisa aos outros, nossa herança, nosso sentimento, literalmente a nossa voz; e por isso ser lembrado, apenas ser lembrado.
Leia também a reportagem em Veja SP
Ali, Cauby ainda realizava a mágica que o mantinha vivo, a verdadeira mágica da transformação. Ao colocar suas roupas fulgurantes, a peruca que o deixava com uma cabeleira cheia de anéis, a verdadeira máscara de pintura com que redesenhava seu rosto e lhe dava um semblante um tanto trágico, sua figura ganhava a antiga extravagância e acompanhava o vigor da voz, que já não era a mesma de outros tempos, porém mantinha-se superior à da maioria dos intérpretes de gerações subsequentes.
O Cauby que me recebeu, porém, era um pouco diferente. Foi pouco antes do show, no improvisado camarim do Brahma, uma salinha meio escura, onde mal cabíamos os dois. Sentado numa cadeira de madeira, estava sem a sua clássica peruca: completamente calvo, com o rosto já pintado para o show, mostrava-se envelhecido e frágil, o que explicava ser carregado para o palco, onde cantava sentado, durante todo o espetáculo. Pela proximidade e o despojamento, caí de repente e sem aviso na sua intimidade.
Quando lhe falei que ganhara o prêmio e e eu escreveria sobre ele na revista, ele não pareceu surpreso, mas não deixou de sentir-se lisonjeado. Falou de seu momento e de sua história, desde os tempos em que foi ganhar a vida cantando em bares nos Estados Unidos. Nessa época, pintava já os cabelos de preto, porque os americanos queriam ouvir um latino que se parecesse com o cantor então da moda, o argentino Carlos Gardel.
Com sua voz grave, empostada e calma, Cauby falou ainda de sua vida reclusa, num apartamento de Higienópolis, do qual saía apenas para trabalhar. Achava que assim preservava sua imagem: não era visto nem reconhecido como outra coisa além do personagem que o fizera famoso e que gostaria de preservar.
O que mais me impressionou, no entanto, foi outra coisa. A certa altura, lhe perguntei se não ficara magoado com tudo o que Veja escrevera sobre ele no passado, quando foi taxado de cantor brega e usado incansavelmente como piada. Disse que estava admirado de que ele, apesar daquilo, estivesse me recebendo tão bem daquela forma.
Cauby respondeu que o artista vivia para ser visto: "o mais importante não é o que falam de mim, mas falarem de mim", ele me disse. "A única coisa que me importa, e é sempre uma honra, é ser lembrado." Sem os trajes nos quais brilhava, nesse instante ele me pareceu ao mesmo tempo pequeno e grande: pequeno como ser, frágil, vaidoso, angustiado, e grande, por conta de uma inesperada e superlativa humildade.
Fiquei com ele até o momento de sair, carregado por dois garçons, até o palco. Cauby tinha vencido tudo: a idade, a fama de brega, o esquecimento, e até a revista Veja. Era venerado pela plateia, como poucas vezes vi um artista: havia no ar um certo saudosismo de tempos dos quais todos sentiam falta, e ele simbolizava essa era, como se todos ali de repente pudessem rejuvenescer. E mesmo os jovens pareciam sintonizados com aquele artista que, no final, já parecia não ter tempo.
Agora que o tempo enfim levou Cauby, penso nele, no seu olhar grato e triste, na alma do artista que vive do calor humano, porém na mais completa solidão. E concluo que ele,na sabedoria de toda uma vida, estava certo: o que importa é deixar alguma coisa aos outros, nossa herança, nosso sentimento, literalmente a nossa voz; e por isso ser lembrado, apenas ser lembrado.
Leia também a reportagem em Veja SP
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