quinta-feira, 27 de junho de 2013
Escreva Bem volta como curso regular
A partir do segundo semestre, quero dar de forma regular o curso Escreva Bem, Pense Melhor, depois da boa experiência que tive ao inaugurá-lo em janeiro, na Casa do Saber.
Primeiro, pelo interesse: num mês de férias, e meio desacreditado a princípio, o curso acabou tendo mais procura do que se esperava. Tanto que, da sala normal da Casa do Saber, que superlotou no primeiro dia de curso, com um grande número de inscrições adicionais na última hora, tivemos de ser transferidos para o auditório a partir do segundo dia.
Constato que hoje as pessoas têm uma necessidade muito grande de escrever, por conta da internet. Tanto no âmbito privado quanto profissional. A educação no Brasil é muito falha no que diz respeito à redação, e o processo de escrever tem suas dificuldades naturais, que envolvem a capacidade de organização mental e expressão do indivíduo.
Um das coisas estranhas que aconteceram na Casa do Saber foi me chamarem de "professor". Sou de uma família cheia de professores, uma dúzia deles, entre tios e primos. Minha mãe era professora. Mas eu não sou professor, algo que para mim tem algo de acadêmico. Acho que essa é justamente a diferença do Escreva Bem, Pense Melhor, para outros cursos de redação. Como autor de livros de reportagem e de ficção, além do meu trabalho como jornalista e editor, sempre tive de atrair o leitor - disputamos seu tempo e atenção com outras coisas que podem ser do seu interesse. É algo muito diferente de escrever um texto, por exemplo, que será lido obrigatoriamente por um examinador, embora esse texto também tenha seus desafios.
Saber que o leitor não tem a obrigação de ler o que a gente escreve nos força a sermos bons, realmente bons. Para sermos lidos, precisamos fazer algo sempre importante, interessante, divertido - ou as três coisas ao mesmo tempo. É isso o que transforma alguém que escreve realmente num profissional de mercado, ou em alguém que, mesmo sem objetivos profissionais, deseja ter leitores espontâneos.
Além dos meus próprios livros, ao longo de minha carreira como editor de jornal, revistas e livros, tive o desafio de formar ou orientar centenas de profissionais que necessitavam escrever. Daí surgiu minha experiência nisso. Nunca fiz curso de pedagogia. Minha prática na orientação de escrever vem do dia a dia das redações e no trato direto com autores e jornalistas.
Estou dividindo o curso em dois módulos. O primeiro é o básico, no qual apresento as questões elementares da redação, que envolve muito mais do que simplesmente escrever. Pelo curso, entramos no processo mental de escrever, o que acaba se tornando útil para a vida de uma forma mais ampla: como definir o que é mais importante; o encadeamento das ideias, para uma apresentação clara; como concluir de uma forma interessante ou de impacto.
Pelo curso, procuro mostrar que a clareza mental é algo treinado: aprendemos a definir o mais importante e apresentar as ideias de uma forma organizada. Com isso, podemos nos expressar melhor. E isso é cada vez mais importante tanto na vida pessoal como no meio corporativo.
Como para escrever é preciso utilizar nossa motivação e a bagagem pessoal, que é tanto de informação quanto cultural e afetiva, o exercício de escrever é também um processo de autoconhecimento, aspecto também discutido ao longo das aulas, asim como de onde vem a inspiração e a criatividade.
O segundo módulo do Escreva Bem, Pense Melhor será mais dedicado às formas literárias de escrever e a workshops. Os elementos do módulo anterior são reutilizados de forma a que se possa colocar os conceitos em prática e trabalhar em textos com cunho mais pessoal ou criativo.
Cada curso é um pouco diferente do outro. Escrever é um processo artesanal, que depende completamente do indivíduo; cada curso segue conforme seus participantes e procuro atender ao máximo as dúvidas e problemas individuais. Essa é a parte mais interessante e que torna cada curso um rico aprendizado também para mim.
segunda-feira, 3 de junho de 2013
Civita e a importância de um editor
Entre as muitas lições deixadas por Roberto Civita, falecido em 26 de maio último, a que mais me fascinava era sua definição do que é um editor. Para Roberto, o editor era o homem que acreditava. Um homem de fé. Que acreditava não em Deus, mas que tinha pontos de vista, e acreditava neles, custasse o que custasse. O editor era o homem que achava que sabia o que as outras pessoas queriam, muitas vezes antes delas mesmas. Ou que reafirmava suas ideias e convicções de tal forma que influía de fato no que elas pensavam e queriam.
Nos últimos tempos, andaram dizendo que o editor está em vias de extinção. Hoje, mecanismos automáticos de busca como o Google parecem identificar o interesse das pessoas e seus grupos (as "redes sociais"), por meio de algoritmos que pesquisam palavras ou aglutinam gente por algum tipo de proximidade, pessoal ou profissional. Fariam de forma matemática, ou computacional, o que antes parecia, pelo menos aos olhos do editor, uma função que tinha muito de intuitiva. Porém, o editor continua insubstituível. Porque sua especialidade não é apenas reconhecer o que as pessoas querem; é dar a elas aquilo que ainda não sabem o que querem. Parte da tarefa do editor é, como observador e analista da sociedade, inventar o que as pessoas ainda vão gostar. E isso se faz a partir de suas próprias ideias, sua visão do mundo, do mercado, e de seus ideais.
Com Civita, foi assim. Não poucas vezes, ele produziu revistas para as quais o mercado brasileiro ainda não existia ou não estava preparado. Fez sua primeira revista de informação, Quatro Rodas, quando praticamente não havia estradas asfaltadas no país e a indústria automobilística estava apenas sendo implantada para o consumo de massa. Durante sete anos, a Editora Abril arcou com o prejuízo semanal de Veja, uma revista de informação que dependia de um sistema de vendas que ainda não existia - as assinaturas - para garantir circulação e, assim, a publicidade.
Civita percebeu que essas duas coisas - circulação e publicidade - é que garantiam a independência editorial e vice-versa. Essa independência financeira apoiada no mercado, e não em dinheiro ou favores de governo, era a condição essencial para o exercício da liberdade de expressão que ele identificava como algo fundamental para a democracia brasileira. E podia perenizar uma publicação, que se transformava assim em uma instituição brasileira em defesa da verdade, independente da cor dos diversos governos que se sucedem na história democrática.
Como editor, ele sustentou Veja, até dar certo, por acreditar - acreditava que o Brasil precisava da democracia, que a democracia precisava de uma revista independente, e que isso seria inevitável. Até que, sete anos depois, o inevitável chegou com a inversão da curva que levaria Veja a ser, como é hoje, a segunda maior revista semanal de informação do mundo, apenas atrás da americana Time.
É admirável como a visão de um fato que ainda não existe pode se transformar no próprio fato, apenas pelo trabalho do editor - o homem que acredita nas suas próprias ideias. Ao dar às pessoas aquilo que elas ainda nem sabiam o que queriam, Civita na realidade implantava o seu próprio ponto de vista, uma versão bastante particular e brasileira da verdade universal de que a democracia depende da imprensa livre. Com seu jeito um tanto blasé, ele chegava por vezes a minimizar a importância do papel de Veja, mas a revista contribuiu de maneira decisiva para transformações importantes no país: a construção de uma democracia sólida, pela qual Veja lutou, no processo de redemocratização; a formação de um capitalismo liberal, mais livre das amarras impostas no passado pelo Estado xenófobo e autoritário do regime militar; o combate à corrupção e aos descalabros no manejo do dinheiro público, no sentido de uma política mais ética e voltada para o interesse público; por fim, e não menos relevante, a formação de uma classe média mais educada e bem informada e com uma renda capaz de transformar o Brasil num mercado consumidor importante.
Por vezes, o editor está errado - coloca seu ponto de vista muito à frente do que pode, ou não enxerga o melhor caminho. Alguns dos produtos de Civita não deram certo, ou deram certo apenas por algum tempo, como a revista Realidade, uma publicação inovadora para sua época, mas que teve um prazo limitado de validade. Porém, a maioria das coisas em que Civita acreditou estavam certas, porque partiam de princípios mais que justos. Sua postura de colocar-se ao lado do leitor, de forma a lhe garantir uma publicação independente de outros interesses que não o compromisso jornalístico com a verdade, combinava perfeitamente com a liberdade de expressão, a defesa da democracia e a procura de uma sociedade mais justa.
Essas ideias e ideais não são apenas dele, mas Civita soube capitalizá-las em produtos que agregaram ao seu redor interesses muito poderosos, porque combinam com o próprio interesse do Brasil como Nação. É assim que se consolidam as instituições. Por isso, Civita, que nasceu em Milão e foi criado em Nova York, foi um brasileiro essencial para o bom caminho que o Brasil tem trilhado, com uma democracia voltada para a busca de uma sociedade mais livre e ao mesmo tempo justa, que busca a riqueza sem perder as preocupações sociais, e capaz de explorar racionalmente seu imenso potencial natural e de mercado. Cabe a todos nós que carregamos a mesma bandeira fazê-la tremular com o mesmo empenho, entusiasmo e coragem. Pois, como Civita mesmo dizia, a liberdade e a democracia dependem de um trabalho cotidiano de manutenção.
Nos últimos tempos, andaram dizendo que o editor está em vias de extinção. Hoje, mecanismos automáticos de busca como o Google parecem identificar o interesse das pessoas e seus grupos (as "redes sociais"), por meio de algoritmos que pesquisam palavras ou aglutinam gente por algum tipo de proximidade, pessoal ou profissional. Fariam de forma matemática, ou computacional, o que antes parecia, pelo menos aos olhos do editor, uma função que tinha muito de intuitiva. Porém, o editor continua insubstituível. Porque sua especialidade não é apenas reconhecer o que as pessoas querem; é dar a elas aquilo que ainda não sabem o que querem. Parte da tarefa do editor é, como observador e analista da sociedade, inventar o que as pessoas ainda vão gostar. E isso se faz a partir de suas próprias ideias, sua visão do mundo, do mercado, e de seus ideais.
Com Civita, foi assim. Não poucas vezes, ele produziu revistas para as quais o mercado brasileiro ainda não existia ou não estava preparado. Fez sua primeira revista de informação, Quatro Rodas, quando praticamente não havia estradas asfaltadas no país e a indústria automobilística estava apenas sendo implantada para o consumo de massa. Durante sete anos, a Editora Abril arcou com o prejuízo semanal de Veja, uma revista de informação que dependia de um sistema de vendas que ainda não existia - as assinaturas - para garantir circulação e, assim, a publicidade.
Civita percebeu que essas duas coisas - circulação e publicidade - é que garantiam a independência editorial e vice-versa. Essa independência financeira apoiada no mercado, e não em dinheiro ou favores de governo, era a condição essencial para o exercício da liberdade de expressão que ele identificava como algo fundamental para a democracia brasileira. E podia perenizar uma publicação, que se transformava assim em uma instituição brasileira em defesa da verdade, independente da cor dos diversos governos que se sucedem na história democrática.
Como editor, ele sustentou Veja, até dar certo, por acreditar - acreditava que o Brasil precisava da democracia, que a democracia precisava de uma revista independente, e que isso seria inevitável. Até que, sete anos depois, o inevitável chegou com a inversão da curva que levaria Veja a ser, como é hoje, a segunda maior revista semanal de informação do mundo, apenas atrás da americana Time.
É admirável como a visão de um fato que ainda não existe pode se transformar no próprio fato, apenas pelo trabalho do editor - o homem que acredita nas suas próprias ideias. Ao dar às pessoas aquilo que elas ainda nem sabiam o que queriam, Civita na realidade implantava o seu próprio ponto de vista, uma versão bastante particular e brasileira da verdade universal de que a democracia depende da imprensa livre. Com seu jeito um tanto blasé, ele chegava por vezes a minimizar a importância do papel de Veja, mas a revista contribuiu de maneira decisiva para transformações importantes no país: a construção de uma democracia sólida, pela qual Veja lutou, no processo de redemocratização; a formação de um capitalismo liberal, mais livre das amarras impostas no passado pelo Estado xenófobo e autoritário do regime militar; o combate à corrupção e aos descalabros no manejo do dinheiro público, no sentido de uma política mais ética e voltada para o interesse público; por fim, e não menos relevante, a formação de uma classe média mais educada e bem informada e com uma renda capaz de transformar o Brasil num mercado consumidor importante.
Por vezes, o editor está errado - coloca seu ponto de vista muito à frente do que pode, ou não enxerga o melhor caminho. Alguns dos produtos de Civita não deram certo, ou deram certo apenas por algum tempo, como a revista Realidade, uma publicação inovadora para sua época, mas que teve um prazo limitado de validade. Porém, a maioria das coisas em que Civita acreditou estavam certas, porque partiam de princípios mais que justos. Sua postura de colocar-se ao lado do leitor, de forma a lhe garantir uma publicação independente de outros interesses que não o compromisso jornalístico com a verdade, combinava perfeitamente com a liberdade de expressão, a defesa da democracia e a procura de uma sociedade mais justa.
Essas ideias e ideais não são apenas dele, mas Civita soube capitalizá-las em produtos que agregaram ao seu redor interesses muito poderosos, porque combinam com o próprio interesse do Brasil como Nação. É assim que se consolidam as instituições. Por isso, Civita, que nasceu em Milão e foi criado em Nova York, foi um brasileiro essencial para o bom caminho que o Brasil tem trilhado, com uma democracia voltada para a busca de uma sociedade mais livre e ao mesmo tempo justa, que busca a riqueza sem perder as preocupações sociais, e capaz de explorar racionalmente seu imenso potencial natural e de mercado. Cabe a todos nós que carregamos a mesma bandeira fazê-la tremular com o mesmo empenho, entusiasmo e coragem. Pois, como Civita mesmo dizia, a liberdade e a democracia dependem de um trabalho cotidiano de manutenção.
terça-feira, 28 de maio de 2013
O legado de Civita
Em 1999, o financista aposentado Geraldo Forbes estava na mesa que lhe era diariamente reservada no restaurante Fasano, em São Paulo, quando entrou no salão o editor Roberto Civita. Conhecidos de longa data, Geraldo chamou Roberto à sua mesa. Cumprimentou-o e apontou, almoçando à sua frente, a filha Alexandra Forbes, que trabalhava, na época, em VIP. A revista, que fazia pouco deixara de ser um suplemento de Exame, então andava explorando aspectos mais bizarros do sexo para chamar a atenção. Geraldo não gostava nada daquilo, embora Alexandra fizesse, na publicação, somente a função de crítica gastronômica. “Roberto, quero te apresentar minha filha Alexandra, que trabalha numa de suas revistas, a VIP” , disse ele. “E quero também te dizer uma coisa: eu tenho vergonha de dizer que ela trabalha na VIP!” Roberto não se fez de rogado. Abriu seu sorriso de sempre e, com o sotaque levemente americano que o caracterizava, disse, simplesmente: “Se você tem vergonha de dizer que ela trabalha nessa revista, imagine então eu, que sou o dono dessa revista!”
Panache é uma maneira elegante e espirituosa de sair de situações difíceis ou delicadas. Ela define o homem, porque vem não somente da educação como de uma atitude perante o mundo. É um refinamento do verdadeiro cavalheiro, ao qual poucos chegam. Este pode até passar por apuros, mas não deixa de encarar a vida com certa leveza. É digno e, na vida prática, creio que funciona melhor. Roberto Civita tinha panache. Aparecia nas diversas situações que tinha de enfrentar, muitas como editor, especialmente em Veja. Não fosse isso, provavelmente teria muitas vezes deixado de lado suas convicções. Roberto sustentava corajosamente pontos de vista, mesmo quando pareciam ser os mais quixotescos, como se não fosse nada. “Os leitores que gostam compram”, disse certa vez, ao discorrer sobre a necessidade do editor de mostrar claramente o seu ponto de vista nas capas de Veja. “Os que não gostam, passam para ler outra coisa.”
Esse mesmo espírito aparecia nas decisões empresariais. Quando a Abril passava por uma séria crise financeira, em meados dos anos 1990, os consultores contratados pelo próprio Roberto diziam que era preciso cortar gastos, começando pelo overhead – os executivos e jornalistas que pertenciam à cúpula da empresa. Numa reunião, onde estes se encontravam todos presentes, ao chegar ao assunto dos cortes na diretoria, Roberto se levantou da mesa. “Eu vou embora, e vocês resolvem aí quem é que vai sair”, disse ele. “Eu simplesmente não consigo me livrar dos meus idiotas de estimação.” E saiu mesmo, deixando uns olhando para os outros, em silenciosa perplexidade.
Um dos que se tornaram ex-executivos da Abril, o jornalista Antonio Machado, lhe mandou um e-mail quando a Abril vendeu para a Folha da Manhã sua participação no UOL por um bom dinheiro, em 2001. Antonio lembrava que Roberto era descrente dos negócios da internet, e que ele, Antonio, levara adiante a primeira incursão da empresa no mundo virtual (o "Brasil Online, BOL), de forma que naquele momento podia colher o resultado. “A minha participação nessa venda eu deixo a você como doação”, escreveu Antonio. Roberto lhe enviou uma resposta, dando-lhe toda razão, reconhecendo o fato de Antonio ter insistido com ele para levar adiante o portal na internet. Assinava, no final, “Roberto”. Embaixo, um PS: “E muito obrigado pela sua doação!”
Roberto Civita faleceu no dia 26 de maio último. Assim como Ruy Mesquita, de O Estado de S. Paulo, falecido pouco antes, deixa no ar a sensação de que uma certa era da imprensa vai indo embora junto com seus ícones. Porém, Roberto deixa um legado importante para a imprensa, além do conjunto de seus negócios, que se espalham pelo meio do livro, da revista, da TV e dos veículos digitais. É algo mais impalpável, porém mais duradouro: o respeito à verdade, a coragem, o compromisso com o Brasil e com o leitor, que é o brasileiro. Deixa um modelo de imprensa exemplar e também de comportamento, que me lembra que mesmo para mover montanhas é bom ter um sorriso no rosto e algumas palavras gentis.
segunda-feira, 6 de maio de 2013
Escritos com o tempo
Certa vez, há muito tempo, visitei o escritor Luis Fernando Veríssimo em sua casa no bairro de Petrópolis, em Porto Alegre. A conversa, em si, foi muito desinteressante; embora seja muito produtivo e divertido quando escreve, Veríssimo é pessoalmente um sujeito lacônico - o encontro não durou mais que quinze minutos, por falta de assunto. Entrar na casa dele, porém, foi algo fascinante. Eu tinha a sensação de que a conhecia - e, aos poucos, entendi que a conhecia mesmo.
Trata-se da mesma casa onde morou seu pai, Erico, que o filho deixara exatamente como estava, e é descrita num livro de memórias que já foi publicado com dois títulos diferentes: Solo de Clarineta, ou O Homem no Espelho. Lá, Erico vai falando de como cada livro lhe permitia comprar algo para a casa. Cada peça da mobília representava um livro; quando olhava para o sofá, a cômoda, os tapetes, ia vendo... Clarissa, Olhai os Lírios do Campo...
Os objetos contam também uma história, ainda mais aqueles que nos permitem escrever os livros, e com os livros refletir sobre a vida - além, claro, de pagar as contas. Estou mudando de casa, e na mudança me dei conta de que guardei a maioria das máquinas de escrever com que trabalhei. Vou colocando as peças lado a lado, agora em cima de uma nova estante, e vejo um filme; cada uma vai contando a história de algum livro que escrevi e de um tempo que vivi. A cada máquina, um livro; a cada livro, um pedaço de memória, da minha vida e de uma época. São também um retrato da extraordinária evolução do próprio próprio instrumento da escrita, desde a velha máquina de escrever ao laptop contemporâneo. Minha sensação é de que a vida vai virando história. O tempo é vertiginoso; que esforço enorme de trabalho em meio a tantas mudanças!
Tiro a poeira que recobre a capa da Olivetti-Underwood Studio 44, a primeira máquina em que escrevi. Lembro da sensação de trabalhar nela, do orgulho; sonhava com ela desde menino, quando entrava no escritório de meu pai, enfumaçado por horas por seu cachimbo recheado do fumo achocolatado que incensava o lugar. Eu navegava entre as brumas até encontrá-lo, guiado apenas pelo tacleteclaque familiar que vinha da mesa onde ele trabalhava. Meu pai escrevia, sozinho, na sua neblina; essa lembrança me acompanhou quando comecei a transcrever na sua Studio, aos 17 anos de idade, as gravações das histórias que meu avô contava, e que, mais tarde, eu transformaria em meu primeiro romance, Filho da Terra.
Desenhada por um arquiteto, o italiano Marcello Nizzoli, com o engenheiro Giuseppe Beccio, a Studio 44 era fabricada em Barcelona, na Espanha. Tinha qualidades incomparáveis; era uma máquina de design harmonioso, com linhas que carregam a personalidade dos anos 1960, a última década realmente classuda da História; era pesada o suficiente para se manter firme na mesa, com teclas que pareciam impulsionadas por algo além dos dedos: um conjunto com o equilíbrio perfeito para se escrever.
Como lembrança, guardo ainda algumas páginas originais de Filhos da Terra, um livro que levaria sete anos para ser concluído. Comecei a escrevê-lo ainda na casa de meu pai, na mesma máquina que ele usava. Eu o terminaria em outras máquinas, quando já morava sozinho, mas compraria para mim, já numa loja de antiguidades, uma Olivetti igual.
Mesmo no tempo da máquina de escrever, eu já gostava da ideia de pode escrever em qualquer lugar. Admirava por isso Jack London, que dizia que o escritor é o único trabalhador a levar o "escritório embaixo do chapéu". Na verdade, aonde ele ia, seguia atrás seu fiel criado, o japonês Nakato, carregando a máquina de escrever do patrão. Sem poder me dar a esse luxo, antes de chegar ao lap top, ainda experimentei a Olivetti Lettera 82, cópia da Hermes Baby, com o mesmo design, menor e mais leve que a Studio: foi a primeira máquina de escrever realmente portátil.
O que parecia uma vantagem, porém, era o seu maior defeito; suas teclas não tinham força para bater no papel e o carro era tão leve que o conjunto pulava sobre na mesa, dificultando o trabalho. Foi lançada em 1983, e tentei fazer nela alguns trechos de Filhos da Terra, mas não rendia muito; assim, voltei à velha Studio 44, onde escreveria a segunda versão do texto, já convertido de mera transcrição das fitas de meu avô em um verdadeiro romance.
Passei então a uma Olivetti Praxis 20, animado com a ideia das máquinas elétricas, que pareciam um grande avanço sobre as mecânicas; as teclas eram mais suaves e acreditei que com isso escreveria mais rápido. Escaldado pelo meu primeiro romance, que anunciara um autor caudaloso, ueria algo que tornasse menos cansativas as horas e dias e semanas a fio de trabalho. Era uma máquina pesada como uma bigorna, e na realidade não representava real avanço sobre a velha e charmosa Studio 44, que recuperou novamente seu lugar.
A era que precedeu o computador foi bastante experimental; comprei, ainda, uma invenção de pouca duração, que hoje pode ser considerada uma raridade de museu: uma Panasonic Thermalwriter KX-W50TH, máquina que escrevia com raios de calor. Apresentava até 15 caracteres na tela de LCD, que podiam ser corrigidos antes de passarem para o papel. Imprimia o texto em papel sensível à luz, como o do fax. Logo se relevou inviável, porque o papel de fax era caro, e incômodo: vinha enrolado e se prestava, no máximo, a escrever bilhetes. Abandonei-a rapidamente, deixando-a quase sem uso; hoje é uma espécie de mosca branca da coleção.
Terminei de fato Filhos da Terra já na era do computador; um desktop montado no Brasil com peças importadas e marca balão que se tornou velharia pouco tempo depois de ser montado. E depois, numa Toshiba 1.000, o Fusca dos primeiros laptops. Quase não tinha memória interna; na tela negra funcionava o antigo sistema DOS, pré-história das telas contemporâneas com sistema Windows. Ele se desvalorizaria tão rápido e tanto que um amigo, ao colocá-lo à venda pela seção de classificados de um jornal, receberia em troca, como a melhor oferta, uma gaiola de passarinho. O meu deve ter ido para o lixo, desfalcando assim o meu acervo de uma peça fundamental.
Meu livro seguinte de ficção, A Quinta Estação, de 2003, foi escrito num já "ultramoderno" Canon Innova Boook 10C. Tinha um processador Intel de 33 MHZ, 170 Mega no HD, 4 Mega de RAM e, espetacular para a época, tela colorida. Além de ser pequeno e prático, apresentava uma grande novidade - foi o primeiro a ter Mouse embutivo no teclado, uma bolinha do tamanho da unha. Quase não possuía memória interna - ela ficava num disco externo. Seria o precursor do Compaq aonde eu escreveria o Sonho Brasileiro e terminaria gloriosamente Amor e Tempestade.
As máquinas de escrever possuem um estranho poder. É como se tivessem um pouco de vida própria; nos conectamos a elas, como um amigo ou parceiro que escreve junto com a gente; é como se lhe devessemos algum crédito pela obra concluída. Lembro das horas em que escrevia no Compaq, em pé, no quarto do apartamento onde morava em Nova York; eu tinha fortes dores nas costas, depois de meses de trabalho, e já não podia me sentar; fiquei tanto tempo olhando para aquela máquina que provavelmente é a coisa para a qual mais olhei na vida; só podia me enamorar. Não consigo achá-lo, como acontece com um amor perdido, e ele me faz falta.
Claro que a mágica da escrita se realiza dentro da nossa cabeça; é confortador, porém, pensar que há uma máquina capaz de nos ajudar. Hoje escrevo meu próximo livro num laptop Toshiba, que comprei há cerca de 6 anos, quando ainda morava nos Estados Unidos; trata-se de uma evolução miraculosa do Toshibinha que valia uma gaiola de passarinho, embora eu saiba que já padece de uma certa caduquice tecnológica. É bom trabalhar numa máquina com a qual temos familiaridade, como uma calça velha e sapatos confortáveis. Cato milho, como se dizia antigamente, quer dizer, escrevo com apenas quatro dedos; sou escritor, e não datilógrafo. A máquina, porém, favorece o trabalho; é relativamente pesada para um computador portátil, e suave ao teclar. A máquina de escrever ganhou infinitas outras funções com a tecnologia, mas para mim o que importa ali é o milagre básico, que ainda se realiza todos os dias, quando sentamos, eu e ela, na solidão que só nós conhecemos tão bem.
Trata-se da mesma casa onde morou seu pai, Erico, que o filho deixara exatamente como estava, e é descrita num livro de memórias que já foi publicado com dois títulos diferentes: Solo de Clarineta, ou O Homem no Espelho. Lá, Erico vai falando de como cada livro lhe permitia comprar algo para a casa. Cada peça da mobília representava um livro; quando olhava para o sofá, a cômoda, os tapetes, ia vendo... Clarissa, Olhai os Lírios do Campo...
Os objetos contam também uma história, ainda mais aqueles que nos permitem escrever os livros, e com os livros refletir sobre a vida - além, claro, de pagar as contas. Estou mudando de casa, e na mudança me dei conta de que guardei a maioria das máquinas de escrever com que trabalhei. Vou colocando as peças lado a lado, agora em cima de uma nova estante, e vejo um filme; cada uma vai contando a história de algum livro que escrevi e de um tempo que vivi. A cada máquina, um livro; a cada livro, um pedaço de memória, da minha vida e de uma época. São também um retrato da extraordinária evolução do próprio próprio instrumento da escrita, desde a velha máquina de escrever ao laptop contemporâneo. Minha sensação é de que a vida vai virando história. O tempo é vertiginoso; que esforço enorme de trabalho em meio a tantas mudanças!
Tiro a poeira que recobre a capa da Olivetti-Underwood Studio 44, a primeira máquina em que escrevi. Lembro da sensação de trabalhar nela, do orgulho; sonhava com ela desde menino, quando entrava no escritório de meu pai, enfumaçado por horas por seu cachimbo recheado do fumo achocolatado que incensava o lugar. Eu navegava entre as brumas até encontrá-lo, guiado apenas pelo tacleteclaque familiar que vinha da mesa onde ele trabalhava. Meu pai escrevia, sozinho, na sua neblina; essa lembrança me acompanhou quando comecei a transcrever na sua Studio, aos 17 anos de idade, as gravações das histórias que meu avô contava, e que, mais tarde, eu transformaria em meu primeiro romance, Filho da Terra.
Desenhada por um arquiteto, o italiano Marcello Nizzoli, com o engenheiro Giuseppe Beccio, a Studio 44 era fabricada em Barcelona, na Espanha. Tinha qualidades incomparáveis; era uma máquina de design harmonioso, com linhas que carregam a personalidade dos anos 1960, a última década realmente classuda da História; era pesada o suficiente para se manter firme na mesa, com teclas que pareciam impulsionadas por algo além dos dedos: um conjunto com o equilíbrio perfeito para se escrever.
Como lembrança, guardo ainda algumas páginas originais de Filhos da Terra, um livro que levaria sete anos para ser concluído. Comecei a escrevê-lo ainda na casa de meu pai, na mesma máquina que ele usava. Eu o terminaria em outras máquinas, quando já morava sozinho, mas compraria para mim, já numa loja de antiguidades, uma Olivetti igual.
Mesmo no tempo da máquina de escrever, eu já gostava da ideia de pode escrever em qualquer lugar. Admirava por isso Jack London, que dizia que o escritor é o único trabalhador a levar o "escritório embaixo do chapéu". Na verdade, aonde ele ia, seguia atrás seu fiel criado, o japonês Nakato, carregando a máquina de escrever do patrão. Sem poder me dar a esse luxo, antes de chegar ao lap top, ainda experimentei a Olivetti Lettera 82, cópia da Hermes Baby, com o mesmo design, menor e mais leve que a Studio: foi a primeira máquina de escrever realmente portátil.
O que parecia uma vantagem, porém, era o seu maior defeito; suas teclas não tinham força para bater no papel e o carro era tão leve que o conjunto pulava sobre na mesa, dificultando o trabalho. Foi lançada em 1983, e tentei fazer nela alguns trechos de Filhos da Terra, mas não rendia muito; assim, voltei à velha Studio 44, onde escreveria a segunda versão do texto, já convertido de mera transcrição das fitas de meu avô em um verdadeiro romance.
Passei então a uma Olivetti Praxis 20, animado com a ideia das máquinas elétricas, que pareciam um grande avanço sobre as mecânicas; as teclas eram mais suaves e acreditei que com isso escreveria mais rápido. Escaldado pelo meu primeiro romance, que anunciara um autor caudaloso, ueria algo que tornasse menos cansativas as horas e dias e semanas a fio de trabalho. Era uma máquina pesada como uma bigorna, e na realidade não representava real avanço sobre a velha e charmosa Studio 44, que recuperou novamente seu lugar.
A era que precedeu o computador foi bastante experimental; comprei, ainda, uma invenção de pouca duração, que hoje pode ser considerada uma raridade de museu: uma Panasonic Thermalwriter KX-W50TH, máquina que escrevia com raios de calor. Apresentava até 15 caracteres na tela de LCD, que podiam ser corrigidos antes de passarem para o papel. Imprimia o texto em papel sensível à luz, como o do fax. Logo se relevou inviável, porque o papel de fax era caro, e incômodo: vinha enrolado e se prestava, no máximo, a escrever bilhetes. Abandonei-a rapidamente, deixando-a quase sem uso; hoje é uma espécie de mosca branca da coleção.
Terminei de fato Filhos da Terra já na era do computador; um desktop montado no Brasil com peças importadas e marca balão que se tornou velharia pouco tempo depois de ser montado. E depois, numa Toshiba 1.000, o Fusca dos primeiros laptops. Quase não tinha memória interna; na tela negra funcionava o antigo sistema DOS, pré-história das telas contemporâneas com sistema Windows. Ele se desvalorizaria tão rápido e tanto que um amigo, ao colocá-lo à venda pela seção de classificados de um jornal, receberia em troca, como a melhor oferta, uma gaiola de passarinho. O meu deve ter ido para o lixo, desfalcando assim o meu acervo de uma peça fundamental.
Meu livro seguinte de ficção, A Quinta Estação, de 2003, foi escrito num já "ultramoderno" Canon Innova Boook 10C. Tinha um processador Intel de 33 MHZ, 170 Mega no HD, 4 Mega de RAM e, espetacular para a época, tela colorida. Além de ser pequeno e prático, apresentava uma grande novidade - foi o primeiro a ter Mouse embutivo no teclado, uma bolinha do tamanho da unha. Quase não possuía memória interna - ela ficava num disco externo. Seria o precursor do Compaq aonde eu escreveria o Sonho Brasileiro e terminaria gloriosamente Amor e Tempestade.
As máquinas de escrever possuem um estranho poder. É como se tivessem um pouco de vida própria; nos conectamos a elas, como um amigo ou parceiro que escreve junto com a gente; é como se lhe devessemos algum crédito pela obra concluída. Lembro das horas em que escrevia no Compaq, em pé, no quarto do apartamento onde morava em Nova York; eu tinha fortes dores nas costas, depois de meses de trabalho, e já não podia me sentar; fiquei tanto tempo olhando para aquela máquina que provavelmente é a coisa para a qual mais olhei na vida; só podia me enamorar. Não consigo achá-lo, como acontece com um amor perdido, e ele me faz falta.
Claro que a mágica da escrita se realiza dentro da nossa cabeça; é confortador, porém, pensar que há uma máquina capaz de nos ajudar. Hoje escrevo meu próximo livro num laptop Toshiba, que comprei há cerca de 6 anos, quando ainda morava nos Estados Unidos; trata-se de uma evolução miraculosa do Toshibinha que valia uma gaiola de passarinho, embora eu saiba que já padece de uma certa caduquice tecnológica. É bom trabalhar numa máquina com a qual temos familiaridade, como uma calça velha e sapatos confortáveis. Cato milho, como se dizia antigamente, quer dizer, escrevo com apenas quatro dedos; sou escritor, e não datilógrafo. A máquina, porém, favorece o trabalho; é relativamente pesada para um computador portátil, e suave ao teclar. A máquina de escrever ganhou infinitas outras funções com a tecnologia, mas para mim o que importa ali é o milagre básico, que ainda se realiza todos os dias, quando sentamos, eu e ela, na solidão que só nós conhecemos tão bem.
sexta-feira, 5 de abril de 2013
Caminhando com as estrelas
Há alguns anos, sentado na mesa do bar São Cristóvão, em São Paulo, meu pai disse que gostaria de fazer a caminhada de Compostela, aquela mesma, celebrizada por escritor Paulo Coelho, e que virou uma espécie de clichê da paregrinação nos últimos anos. Como sempre, meu pai fizera o convite daquela forma ("eu vou, quem quiser vai comigo"), eu sabendo que o "quem quiser" era comigo. Passamos uma porção de tempo planejando a viagem, mas, por motivos que eram dele, aquilo era sempre adiado.
Isso resultou num romance, publicado em 2007 pela Editora Globo, chamado Campo de Estrelas. Contava a história de um "publicitário", recém saído da luta contra um tumor na bexiga, que encontra o pai num bar e planeja, por sugestão do pai, a viagem a Compostela. O livro acaba e a viagem nunca acontece. É lembrada uma outra viagem, que realmente fiz com meu pai aos 16 anos, quando ele estava na idade que tenho hoje, 48. Foi uma jornada que fizemos de São Paulo a macchu Picchu, or terra, uma aventura de adolesc~encia, inesquecível para ambos. No livro, como na vida real, a caminhada de Compostela, mesmo, não acontece. Mas o que acontece entre os dois, pai e filho, é que é o importante.
Em outubro passado, meu pai voltou com a ideia de andar para Compostela. As circunstâncias eram semelhantes, mas ao contrário. Dois anos atrás, foi ele a ter um tumor na bexiga. Durante um ano, urinara sangue sem que os médicos lhe dessem uma razão, muito menos a cura. Levei-o a um dos médicos que trataram de mim, anos atrás. Por sorte, meu pai também pôde se curar. Se antes o filho é que saíra de um momento delicado, agora era a vez do pai. Ele disse que agora a caminhada ia acontecer, não importava como. E marcamos uma data para a partida, que se tornou sagrada: hoje.
Entre Campo de Estrelas, o romance, e a viagem de verdade, que começa agora, muita coisa aconteceu. O médico que cuidou de mim quando eu estava doente, Eric Wroclavski, faleceu. Foi vítima do mal que travata: um tumor na próstata, que ele descobriu, por ironia do destino, tarde demais. Não revelou a ninguém que estava doente. Descobriu estar desengandado ao mesmo tempo em que eu descobrira meu polipozinho. Naquele tempo, ele me dissera: "Você tem sorte". Eu não entendia como podia ter sorte com uma notícia daquelas. Hoje, relendo aquele encontro, sei que ele dizia isso porque ele, Eric, não recebera do destino a mesma oportunidade. "Você descobriu a dopença em tempo de se curar", disse ele.
Fui ao hospital visitar Eric, quando ele estava já na fase terminal da doença. Levei, comigo, Campo de Estrelas, onde ele é identificado pelo segundo nome - Roger. Li para ele as partes do livro em que aparece. Preso à cama, sem poder se mexer, reviu nossas conversas, que não eram de médico e paciente, mas de amigos, um procurando ajudar ao outro - eu, sem saber por que ele queria saber tanto de mim, onde buscava também força, por rumar mais rapidamente para a morte. Ao me despedir no hospital, sem saber o que dizer, talvez, ou resultado da confusão mental em que que nos deixa a angústia, fiz uma declaração absurda: "Médicos não salvam ninguém para sempre", disse eu, e apontei o romance deixado na cabeceira do leito hospitalar. "Eu é que salvo."
Depois de Campo de Estrelas, eu me casei, tive um filho, que hoje tem seis anos, escrevi mais um romance, Amor e tempestade, fui editor de livros, mudei novamente de trabalho, me separei, comecei há apenas um mês num novo emprego. Ao ser convidado para o novo trabalho, avisei que precisaria me ausentar a partir de hoje, por duas semanas - um compromisso sagrado. Meu pai diz que a caminhada tem de ser agora e nunca mais, pois se aproxima dos 80 anos - embora permaneça com um vigor impressionante, até ele sabe que não será sempre assim. Não penso em reviver a minha viagem com ele de adolescência, nem em escrever outro romance, mas sei de uma coisa: a presença é insubstituível. Somos amigos. E, quem sabe, Campo de Estrelas terá uma continuação, se não literariamente, pelo menos na minha vida, e na dele também.
Minha vida está uma bagunça. Comprei uma casa, há uma semana. Vou deixá-la desmobiliada, com uma porção de coisas pendentes. Preparei os assuntos de trabalho como pude para poder me ausentar. Beijei meu filho longamente esta manhã, ao deixá-lo na escola. Gravei mensagens para ele, para minha mulher, e sentei para escrever estas linhas. Ao meio-dia, parto, deixando tudo para trás. Encontrarei meu pai no aeroporto. É bom pensar que, por alguns dias, seremos nós dois, novamente, sem endereço certo. Não fizemos grandes preparações, como sempre. Não há um roteiro pré-definido, não sabemos onde nos hospedar, temos pouco ou nenhum equipamento. Como diz meu pai, vamos andar por lá, olhar as estrelas, e ver o que acontece. E, depois, vamos voltar.
quinta-feira, 4 de abril de 2013
Quando o espelho fica feio
Há muitos anos, dei o sinal para a compra de uma casa, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Pertencia a uma viúva, que falecera e a deixara como herança para o filho, radicado nos Estados Unidos. A pessoa com quem eu tratara era o advogado do herdeiro, que recolheu o cheque - algo como 5 mil reais, em dinheiro de hoje, e me passou um recibo. Um levantamento nos cartórios, porém, revelou que havia uma pendência em relação ao imóvel. A empregada da viúva falecida alegava judicialmente que, por ter sido cuidadora nos últimos anos de vida da patroa, tinha direito à casa, que lhe teria sido deixada. Assim, achei melhor não concluir o negócio, que corria risco, e pedi o dinheiro do sinal de volta.
Pedi meu dinheiro de volta - e não o recebi. O advogado do herdeiro, de origem libanesa, alegava que o negócio ainda daria certo. Que eu esperasse para ver a solução do caso na Justiça, o que, como se sabe, pode levar anos. E entrei afinal na Justiça, isso sim, para reaver o dinheiro.
O tempo passou, a Justiça tarda, mas um dia acontece, e acabei por receber o dinheiro de volta, cobrado da pessoa a quem entreguei o cheque - o advogado libanês. Irritado com a demora da Justiça, e agindo como justiceiro, um ímpeto que às vezes me assalta, acatei a sugestão de minha advogada, que entrou com uma ação na OAB para cassar seu registro como advogado. A justificativa era evitar que, no exercício como advogado, ele viesse a lesar outras pessoas. Achava eu, um advogado não podia fazer aquele tipo de coisa.
O advogado foi cassado, uma notícia que me deu uma momentânea satisfação, que era de dever cumprido, talvez um pouco de vingança. E esqueci daquilo.
Cinco anos se passaram. Um dia, no trabalho, minha secretária avisou que uma senhora estava na porta da empresa, sem hora marcada. Era a mulher do advogado libanês e seu filho, que pediam para falar comigo. Concordei em recebê-la.
A senhora entrou na frente; tinha semblante aflito e trazia nas mãos uma pasta cheia de papéis. Atrás, o filho - um rapaz de seus vinte e poucos anos, olhar assustado. Sentaram na minha frente, na sala de reuniões. Então, ela começou a falar. Disse que o marido havia falecido, três anos antes; que ficara doente, porém, mais que tudo, vivera seus últimos anos amargurado por não poder trabalhar, uma vez que tinha perdido sua licença; e, mesmo depois de tanto tempo, e com o marido morto, queria me provar que ele não tivera culpa.
- O cheque estava com o herdeiro, nos Estados Unidos - ela disse. - Meu marido era honesto. Gostaria de lhe mostrar esses documentos, o senhor precisa conhecer a vida dele.
Passaram muitas coisas diante de mim - a figura arqueada do homem, seu nariz pronunciado, de onde saíam pelos escandalosamente longos; do paletó surrado, com cheiro de armário; e de como eu o tratara, com aquela gentileza formal de quem está interessado no negócio, e para isso tem de passar, necessariamente, por aquela pessoa. Pensei que, se fosse mesmo honesto, o advogado teria tentado recuperar o cheque, ou dizer que cobriria o cheque e depois cobraria do herdeiro; poderia ao menos não ter insistido para que eu concluísse o negócio, quando ambos sabíamos que isso seria arriscado e irregular e eu manifestara meu desejo de desfazê-lo. Porém, naquele momento, o que sobrava daquilo tudo era somente a viúva, de coração dilacerado, tentando provar a mim algo que ficara no passado.
Talvez ela quisesse explicar algo a si mesma, mais do que a mim; porém, talvez como uma vingança dos anos ruins que ajudaram a levar embora seu marido, quisesse que eu compreendesse algo sobre mim mesmo. E eu vi - vi o justiceiro, que quando já vencera uma disputa ainda pisoteara aquele que lhe fizera o mal; eu tinha ido longe demais, sem pensar nas consequências do que fazia para um ser humano, e não só a ele, mas aqueles que lhe eram caros.
Para mim, o negócio da casa ficara para trás; para a família do advogado libanês, durava até então; sobrevivera até mesmo à morte dele. E isso pesou.
O mal é feito de muitas formas - por raiva, fraqueza, inveja, soberba, orgulho, preconceito, ou, por vezes, escudado nas necessidades profissionais, por trás das quais está a desculpa da mera necessidade de sobrevivência. Muitas vezes, sim, fazemos o mal sem perceber. Mas outras, o mal passa na nossa frente, o enxergamos, e o cometemos mesmo assim, sem avaliar suas consequências. Mesmo a razão, quando passa das medidas, perde a razão; e a razão nunca pode desprezar o componente humano que há ou deveria haver nas nossas decisões.
Um simples gesto por mudar a vida das pessoas, para o bem ou para o mal. Muitas vezes sou surpreendido por uma pessoa, às vezes a mais inesperada, me agradecendo por algo que fiz de bom ou importante para ela, muito tempo atrás. É estranho, porque não lembro da maior parte dessas boas ações, o que me leva a pensar que na maioria das vezes fazemos o bem sem pensar. São aqueles gestos que nos custam pouco, e para nós são passageiros, mas por uma razão ou outra podem fazer muita diferença para melhor na vida de mais alguém.
Existe também o mal que fazemos sem perceber, mas também acaba, de uma forma ou outra, por se revelar. Assim como o bem que fizemos quase sem querer, ele também se apura com o tempo. Porém, entre o bem que fazemos, e o mal, o mal é o que fica conosco, o mal e que é mais difícil de olhar. De reconhecer. E de consertar.
quarta-feira, 3 de abril de 2013
Quanto uma casa pode valer
Ernest Hemingway tinha uma casa em Key West, ilha na costa da Flórida, cercada por belos jardins, que se pode visitar hoje em dia, como a um museu. Ali, ao lado da piscina, há uma moedinha encravada no cimento, da qual se conta uma história. Ao construir a piscina, a primeira e única em sua época na ilha, encerrando a obra que lhe custara uma pequena fortuna, Hemingway tirou a moeda do bolso, quando o cimento ainda estava fresco. E a jogou ali, enquanto contemplava a obra. “Tome”, disse ele. “Leve também o meu último penny.”
Escritores têm uma relação forte com a casa, o ambiente onde juntam suas coisas e se recolhem num mundo próprio e caloroso, favorável à criação. Existe nisso uma certa paixão obsessiva, ou uma compulsão, porque, por mais que se gaste todo o dinheiro na “casa dos sonhos”, essa compulsão nunca termina – o escritor parace um eterno insatisfeito, como se, para receber novamente a energia que o levará a um livro novo, precisasse também de uma casa nova, de novos ares.
Assim como Picasso, Hemingway trocava de casas e mulheres a cada fase literária. Não deve ser coincidência. Sem ser nenhum Hemingway, muito menos Picasso, sei muito bem como é isso. Já me mudei várias vezes, e nem quando morava sozinho em uma casa grande, com piscina e palmeiras imperiais, me dava também por contente. Para escritores, casas são um pouco como livros: quando você completa um, está ávido, ou quase aflito, por escrever o seguinte. E o mundo ao redor tem de girar em função disso. A gente faz girar.
Pouca gente entende esse processo. Assim como poucos entendem o sacrifício que fazemos para escrever um livro, não entendem como podemos abandonar tudo aquilo que outros já acham muito bom e parecia definitivo para buscar algo diferente. Isso cria muitos problemas com as pessoas que convivem mais de perto. Tenho a sorte de ter encontrado uma mulher que aceita meus ímpetos e está disposta a embarcar comigo nessas reviravoltas impulsionadas pelo coração, sem pesar tanto os recursos e os aspectos práticos. Não que ela não seja pragmática, ao contrário. Mas tem as duas moedas no bolso: a do cérebro e a do coração.
Assim como não se olha o preço que pagamos para escrever um livro, que nos custa literalmente um pedaço da vida – meses de trabalho, muitas vezes sem saber se teremos retorno -, não olhamos também o preço que o sonho imobiliário pode custar. Fala mais o coração. A maioria das pessoas faz muitas contas e evitar gastos desnecessários, pechincha ou procura saber se o preço pedido por um imóvel é justo. Escritores, não. Pagam o preço que for, certos de que somente ali serão felizes. E quanto maior o preço, melhor. Significa que o vendedor dá alto valor àquilo que ele está vendendo. E esse julgamento é o que vale.
O preço de um imóvel, como muita gente diz, é o de mercado. Eu vejo no imóvel um outro valor: aquilo que ele representa para o proprietário. Muitas vezes, o dono de um imóvel joga o preço lá para cima por conta da dificuldade de se desligar do lugar onde passou momentos felizes ou onde abrigou seus sonhos por um período da vida. Esses lugares não têm preço.
Há dois meses, encontrei um homem que está se separando de sua casa. Pediu por ela um preço exorbitante, para o lugar, para o tamanho, para o mercado. Ali ele vivia com seus cães, com uma mulher que o abandonou, com o nascer do sol e o café da manhã no meio da mata. Está ficando cego, devido a uma isquemia.
Este homem vende sua casa como quem abandona a vida. Talvez ele imaginasse que nunca encontraria comprador para a casa, nas condições que impõe. Eu nunca penso muito no dinheiro, mas na vida: daqui a alguns anos, será na experiência vivida que estará o patrimônio, e não no dinheiro investido.
Caminhando pela propriedade, deparei-me com um canil, onde um cachorro cinzento saiu sem fazer barulho. “Ele está cego”, disse o funcionário que me acompanhava. O cão cego de um dono que está ficando cego. Pensei no futuro, quando eu também, velho ou doente, cego ou entrevado, terei de sair dali. Casas pedem muito da gente, dão trabalho, são uma alegria para a juventude. Ainda estou em tempo, penso, e minha vontade de viver a vida passa por cima de qualquer obstáculo bancário.
Sim, o homem cego achou o cliente que não queria. E só nós dois, o que vende e o que compra, sabemos o que está realmente acontecendo. Que ele fique com meu último centavo.
Assinar:
Postagens (Atom)