quarta-feira, 28 de agosto de 2019

A Linha da Vida: a longa história de um breve romance


Em dezembro de 2009, fui conhecer a então nova Livraria da Vila do Shopping Cidade Jardim, em São Paulo, e fiquei extasiado diante daquelas prateleiras cobertas de livros e, no centro, o auditório envidraçado que parecia flutuar entre as estantes, obra do arquiteto Isay Weinfeld.

– Ah! – exclamei, ao lado do proprietário da loja, Samuel Seibel. – Dá vontade até de escrever um livro aqui dentro!


Samuel olhou para mim, divertido, e provocou:

– Por quê não?

Surgiu então a ideia do “Escritor na Livraria”. Samuel reservou para mim uma mesa, ao lado do auditório, no amplo mezanino da loja; eu passaria ali um mês, numa espécie de reality show.

Escreveria um livro naquela mesa e meu computador estaria conectado a outra tela, voltada para o lado contrário. Assim, as pessoas que circulavam pela loja poderiam ver o que eu estava escrevendo: um livro sendo escrito em tempo real.

Escrever é por definição um trabalho solitário; gostei da ideia não apenas por fazer algo diferente, como pelo fato de que o processo de trabalho poderia contribuir para o romance que eu vinha justamente imaginando.

Na época, eu andava sob o efeito da leitura de Kafka, e de uma frase, que acreditava ter lido em algum lugar, talvez Kierkegaarde, segundo a qual a felicidade depende da incerteza. Claro, imagine se todo mundo soubesse como irá morrer: a condição para ser feliz é não saber.

Tinha de ser um livro curto, de impacto, um desafio para mim, autor de livros de fôlego; com aquela estranheza, simplicidade e força dos livros de Kafka.


O tema da incerteza ganharia força pelo método: eu permitiria que as pessoas pudessem ler e interferir durante o trabalho, de maneira que eu mesmo não saberia qual rumo a história tomaria.

Quando me instalei na livraria, eu sabia apenas duas coisas: o título, provisório (“Ensaio sobre a incerteza”), e a frase inicial (“Você quer mesmo saber?”). O título cairia ao longo do trabalho, mas a primeira frase persistiu.

Eu começava 11 horas da manhã e encerrava o trabalho por volta das 18:00, num expediente normal de trabalho, incluindo sábados. A pessoas passavam, primeiro, desconfiadas; aos poucos ganhavam coragem e vinham falar comigo, para entender o que estava acontecendo.

No final da tarde, o resultado do trabalho era publicado em um blog, pelo qual os clientes da loja poderiam continuar acompanhando diariamente o andamento da história.

Com o tempo, as pessoas começaram a participar e colaborar de verdade. Vinha, sentavam na minha frente, faziam perguntas, davam sugestões e contavam experiências próprias.

Assim, fiquei sabendo que o nome que eu havia escolhido para a cigana não podia ser o que estava lá no início; troquei-o para Rosa, que, conforme fiquei sabendo, é um nome cigano.

Surgiram jornalistas para gravar entrevistas, fotografar e escrever sobre o evento; eles também liam o que eu escrevia, faziam a crítica e comentavam sobre o que mudava na história.

Lembro especialmente de uma mulher, que sentou à minha frente e contou longamente sua história. Tinha nascido numa cidade ribeirinha do Amazonas, uma vila de pescadores, distante da civilização. Certa vez, quando tinha nove aos de idade, ciganos passaram por ali; uma cigana velha a tinha visto, lera sua mão e dissera que ela ainda seria muito rica e viveria na capital.

Para quem habitava as barrancas do rio, na beira da floresta, aquilo parecia absurdo. Na adolescência, porém, ela visitou Manaus para realizar um sonho de criança: conhecer o teatro Amazonas. Lá, encantou um rico médico carioca com quem rapidamente se casou; foi morar no Rio, teve filhos e há quarenta anos eles formavam uma família feliz. “Eu acredito em ciganas”, ela me disse, antes de ir embora.

O curso da obra ganhou outra interferência importante, que mudou o rumo da história. Naquela época, o noticiário começava a repercutir as denúncias sobre o médico Roger Abdelmassih, dono de uma célebre clínica de fertilização em São Paulo, acusado de violar suas pacientes.

O assunto ficou por dias nas conversas dentro da livraria. Um médico inspirado em Abdelmassih (o doutor Perez, ou o “Monstro”, como as vítimas de Abdelmassih o chamavam) foi incorporado à história. O dr. Jekyll da época deu um novo elemento ao romance.

No mês que passei na livraria, conheci seus funcionários, que gostavam muito do que faziam; era bom conversar com eles sobre música, livros e arte em geral; passeei pelo shopping de carrinho de golfe com Papai Noel, de quem me tornei amigo. Vi Paolla Oliveira pelada, sozinho na sala de cinema, numa tarde em que uma tempestade de verão apagou a luz do bairro e não pude trabalhar – o Cidade Jardim tinha gerador e, além dos elevadores, o cinema era a única coisa que funcionava.

Encerrei o trabalho no dia 24, véspera de Natal, como planejara, deixando o livro incompleto – para escrever em casa o trecho final, que as pessoas só poderiam ler quando fosse publicado.
Eu estava satisfeito. E cansado: não é fácil obter a concentração necessária para escrever, com gente em volta interrompendo a toda hora, embora eu, como jornalista treinado a escrever em redações com mais de uma centena de pessoas, e romancista trabalhando em casa com filho pequeno, soubesse lidar com a perturbação razoavelmente bem.

O evento foi um sucesso: promoveu a nova loja e cheguei a ser convidado para repetir a proeza numa livraria em Lisboa, a convite do Sapo – o maior portal da internet em Portugal, que queria transmitir a redação do livro em tempo real com uma câmera “24 horas”. Agradeci, mas recusei: repetir o feito, ainda mais longe da família, por trinta dias, seria demais.

Como as surpresas do destino do qual trata, A Linha da Vida ficou parado no estágio em que encerrei o trabalho na livraria, por um longo tempo. Em novembro de 2009, quase ao mesmo tempo em que começava o meu reality show literário, recebi um convite para ser diretor editorial da Saraiva, então a maior rede de livrarias e uma das maiores editoras do Brasil.

Em janeiro, ao assumir o cargo, com a responsabilidade de desenvolver as publicações de ficção e não ficção da editora, me considerei impedido de publicar o romance: como editor não queria publicar meus próprios livros, porque pareceria conflito de interesses, ou causaria estranheza nos autores de quem eu deveria cuidar em primeiro lugar; em outras editoras, passava a ser considerado concorrente.

O livro permaneceu dormindo. Passou para trás na minha lista de prioridades, mais tarde, quando voltei à vida de autor, concentrado em novos projetos. A Vila acabou fechando sua maravilhosa loja no shopping, talvez por ser tão maravilhosa que fugia um pouco à realidade comercial, sobretudo nestes novos tempos.

Só agora, numa janela entre trabalhos, resolvi revisitar o texto e concluí-lo. Dei-lhe um final, até agora inédito. E decidi publicá-lo como e-book, de acordo com sua história, precursora dos atuais livros virtuais.

O texto se manteve fiel aos propósitos originais: o tema, o tamanho, a busca pelo impacto. Mudou um pouco, contudo, sua direção; criado ao sabor dos acontecimentos, ganhou mais foco quando percebi, afinal, por quê havia me interessado pelo tema e pela história.

Está concluído A Linha da Vida, um breve romance com uma longa história: resta agradecer a todos os que com ele colaboraram, incluindo o Destino.
Juncal, agosto de 2019

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quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Como surgiu O Livro Proibido

Em 2003, quando levei O Homem Que Falava com Deus ao editor Pedro Paulo de Senna Madureira, ele disse que ninguém acreditava em livros de autores brasileiros sobre algo que não fosse o Brasil.

- Mas vou publicar mesmo assim - disse ele. - Porque é um livro seu.

Um mês após o lançamento, quando eu ainda fazia a noite de autógrafos, a primeira edição de O Homem que Falava com Deus - surpresa... - já estava esgotada.

Penso nesse episódio quase anedótico agora que lanço, tantos anos depois, um segundo livro que ronda o esoterismo: O Livro Proibido, série de episódios envolvendo um sábio proibido de falar e enterrado nas dunas da história.

Os tempos mudaram. Dessa vez, escolhi lançar o livro somente em versão digital, pelo Kindle da Amazon, como experimento. O sistema da Amazon permite vender o livro em qualquer lugar do mundo. Inclusive na forma impressa, pelo sistema on demand. Infelizmente, o Brasil é um dos poucos lugares onde isso ainda não funciona.

Velhas histórias ganham contemporaneidade, não apenas pela tecnologia, como pelos temas da obra, que me parecem tão atuais, num momento em que procuramos justamente uma luz em meio a um grandes caos político, religioso e cultural, potencializado pelas novas tecnologias.

Continuo gostando de temas esotéricos. Me aproximei deles ao ler, ainda adolescente, ao Sidarta de Herman Hesse, obra que influenciou não somente o que escrevo como o meu pensamento. Gosto da filosofia e da arte orientais. E de sua forma de encarar a natureza e a espiritualidade como uma coisa só.

Gosto do deserto do Sahara, onde estive três vezes, uma delas apenas para fazer a pesquisa para O Homem que Falava com Deus. Em especial, uma parte desse deserto, que chamam de El Rayan, a noroeste do Cairo.

Lá, as dunas são formadas por conchas, porque um dia toda aquela imensidão foi um fundo de mar. Tirei no El Rayan a foto que agora ilustra a capa de O Livro Proibido. Aquele lugar tem, de fato, algo de mágico.

A esses ingredientes, juntei também minha admiração por Borges, para quem histórias antigas serviam como fonte para uma erudição por vezes inventada, produto da mais pura e fina fantasia.

Nos labirintos de Borges, feitos de portas falsas, que parecem tão verdadeiras, ficção e realidade se confundem.

São estes mistérios que estimulam a mente e nos ajudam a encontrar respostas na vida real. Assim como O Homem que Falava com Deus, O Livro Proibido é um exercício de reflexão, tanto quanto um thriller ambientado num tempo milenar, e um jogo, um desafio, ou provocação.

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quarta-feira, 31 de julho de 2019

O que é o bom jornalismo?


Você acha que Glenn Greenwald faz jornalismo?
Essa pergunta, que está no centro das mais valiosas preocupações de hoje, para muitos difícil de responder, e para outros fácil demais, pode ser respondida com a leitura deste livrinho que escrevi.
Ele vem do que deveria ter sido o novo Manual de Redação e Estilo para a Editora Abril, encomendado pela empresa a mim, alguns anos atrás. Incluía não apenas normas de padronização de estilo dos textos de suas publicações como todas as recomendações que envolvem a produção de conteúdo de imprensa, especialmente os princípios éticos, a qualidade e a credibilidade da informação.
O manual entrou no canal labiríntico das grandes corporações e sua implantação acabou morrendo junto com o dono da Abril, Roberto Civita. Assim, aproveitei aquele conteúdo para fazer um livro um pouco mais amplo de orientação para jornalistas de todas as mídias e veículos, com base na nossa experiência em Veja, Exame e outras publicações de sucesso.
Agora que as fake news e os veículos tendenciosos se espalham na internet, acredito que a única forma de valorizar a boa imprensa é revisitar os seus princípios e valores.
Por isso, recomendo este livrinho, não apenas aos iniciantes, como a todos aqueles que estão por trás de alguma notícia, profissionais ou não, de modo a beber na fonte da única coisa capaz de tornar um veículo de imprensa ou mídia digital bem sucedido, sustentável e duradouro: o jornalismo profissional.


https://www.amazon.com.br/Escreva-Bem-Jornalismo-Thales-Guaracy-ebook/dp/B00HZROI4K

quinta-feira, 28 de março de 2019

Clarice e a vida depois da morte

Meu filho, de 12 anos, conta que acabou de ler, na escola, Clarice Lispector. Aqui e ali, encontro alguém que está lendo, vejam, Clarice Lispector. É clarice pra cpa, Clarice pra lá. E olha já faz tempo que saiu sua biografia.

É estranho que, só agora, o brasileiro reencontre Clarice Lispector. Ou, por  outro lado, não é nada estranho.

Clarice: o sucesso, tarde demais
Tradicionalmente, o brasileiro não dá muito valor a seus escritores. Com raras exceções, em geral aqueles pertencentes a algum grupo de solidariedade política, social ou artísticamente correto e chique, como o Chico Buarque.

(Outro dia, conversando com um amigo meu, grande poeta, eu disse: "Estou perdido, como autor. Não sou preto, nem gay, nem comunista". Ele me respondeu: "Você ainda pode ser judeu.")

Clarice não pertencia a corrente alguma. Como eu, era jornalista. Colocada do lado de fora nada, como imprensa, ou do lado de dentro, como autora, não estava ao lado de ninguém, exceto dela mesma.

Assim, construiu uma obra original, desconectada de movimentos ou correntes e, talvez por isso, de difícil aceitação no seu tempo. Fazia de tudo, romance, conto e poesia, mas não era bem poeta, nem contista, nem romancista.

Sua poesia se aproximava da prosa e a prosa da poesia. O conto era quase uma coleção de pensamentos. Por isso, defino seu estilo pessoal e único como uma "prosa filosófica", em que cada frase tem peso. É denso, conciso. Os textos tendem a não ser muito grandes e por vezes contam uma história de um jeito muito difuso.

Naquele tempo de Clarice, muitos achavam que era apenas algo ruim, ou incompleto, ficado no meio caminho de tudo: não chegava a ser boa prosa, não chegava a ser bom conto, não era boa poesia.

Clarice, como muitos escritores, morreu na miséria. E não viveu para desfrutar o tempo em que se tornou, talvez, mais compreendida. Para a maioria dos escritores brasileiros, o sucesso vem tarde demais.

É pena. Guimarães Rosa, o grande, por exemplo, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1963 - morreu qutro anos depois, em 1967. Na festa em que recebeu seus galardões, reclamou ter sido indicado quando já era "quase uma vaga".

Especulo que o interesse atual por essa rainha da introspecção, assim como a ressurreição recente da poesia, venha da internet. Nas redes sociais, multiplicaram-se os textos curtos, irônicos ou filosóficos, acompanhados de alguma imagem. Algo perfeito como veículo para as frases de Clarice, que são como haicais.

Entendo e aceito que, infelizmente, a obra sobrevive a um autor (certa vez, ao lhe perguntarem se queria eternizar-se por sua obra, Woddy Allen respondeu que preferia se eternizar "não morrendo").

Acho um pouco pena que a maioria dos autores brasileiros deixem de ser reconhecidos em vida. E que, sem vender livros como poderiam, muitos vivam de galho em galho, sobrevivendo duramente para fazer sua arte.

Aceito a vida como ela é. Eu mesmo sempre disse que tenho de trabalhar pouco e ganhar muito, para poder trabalhar muito e ganhar pouco (escrevendo romances).

É blague, claro. Na realidade eu trabalho muito, e duas vezes: para ganhar dinheiro e para continuar escrevendo.

É o que eu faço e pretendo continuar a fazer, sem reclamar. E, aos que me conhecem e os que não me conhecem, quero dizer que não me esquecerei de morrer.








Escritor não é profissão

Por vezes, me identificam assim, numa entrevista: "o escritor Thales Guaracy..." Ou me perguntam como é "ser um escritor".

Pode parecer estranho, mas isso para mim não tem sentido. Nunca escrevi na ficha de hotel, onde se coloca a profissão: "escritor". Nunca me referi assim a mim mesmo, nunca me apresentei dessa forma, a ninguém.

Escrever não é nada. Pelo menos, em si. Importante, para mim, são as ideias. Escrever é pensar. O resto é datilografia.

Não me defino, portanto, como escritor. Sou jornalista profissional, formado na USP. Sou bacharel em Ciências Sociais - antropologia, sociologia e política - formado também na USP. 

Na ficha, escrevo: "jornalista", para facilitar, já quem não tem muita gente que sabe o que é um cientista social. E só. (Bem, hoje em dia tem muita gente que não sabe o que é jornalista).

Você pode ser um engenheiro e escrever um livro. Isso não é ser escritor, é ser engenheiro. O mesmo se passa com um médico, um advogado. Eu escrevo também romance. Para mim, nem o romancista é escritor. É um romancista.

Como jornalista, cientista social, e também romancista, coisas que parecem tão diferentes, eu na realidade sou uma coisa só: um pensador. E, por saber como os romanos que a palavra voa, a escrita fica, ("verba volant, scripta manent", o ditado em latim), escrevo.

Escrever é a consequência do que somos, do que fazemos, e não um propósito, um fim em si. O que importa é levar adiante as ideias. E melhorar alguma coisa do mundo, quando podemos, um pouquinho.

O que escrevemos hoje estará para a civilização do futuro como estão para nós, hoje, os hieróglifos egípcios. Porém, se não fossem os hieróglifos, talvez nada se saberia do Egito, e não fosse a escrita talvez nunca tivéssemos chegado, no mundo, a alguma sabedoria.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Um charuto no Hof

Quando fui editor de livros, eu tinha de frequentar regularmente a Feira de Frankfurt, uma cidade meio sem charme da Alemanha, mas que tem um dos meus lugares favoritos no mundo: o bar do Steigenberger Frankfurter Hof. Ou, simplesmente o Hof - mais célebre hotel da cidade, reduto histórico onde se encontram jornalistas, editores e autores, todas as vezes que o circo do mercado livreiro faz sua parada na cidade.

No hotel tradicional, marcam-se encontros, alguns de trabalho, outros para conhecer pessoas e rever amigos. Por duas ou três noites, durante o período da feira, o hotel se ilumina não apenas com os velhos candelabros como o burburinho das discussões de negócios no salão principal, tão cheio de histórias que envolvem a própria história do livro.

Da primeira vez que fui, lembro de ficar ombro a ombro com uma jovem italiana que pedia no bar do jardim uma garrafa de água, enquanto eu tomava nas mãos uma flute de champanhe.

- Mas você só bebe água? - perguntei.

- Não - ela disse, com um sorriso. - Mas é melhor assim, porque tenho de estar sóbria, amanhã tenho um compromisso de trabalho com um editor logo cedo.

Qual não foi nossa surpresa, e diversão, quando no dia seguinte, pela manhã cedo, ao aparecer no salão dos agentes literários para a primeira da série de reuniões do dia, descobri que o encontro dela era... Comigo. Foi assim que conheci Giulia Mignani, que na época trabalhava na agência inglesa Numberg e depois se tornou editora em Milão, na Mondadori.

O bar do Hof: ilha na intolerância 
No Salão do Hof, comemorei junto com as moças da agência Balcells o Nobel concedido naquela mesma noite ao escritor peruano Mario Vargas Llosa. Uma noite especial também para mim.

Eu tinha acabado de entrar na editora, sabia que estava perdendo Llosa como autor para outra editora, com o vencimento de antigos contratos, que soubera desde a minha chegada que não seriam renovados. Naquela noite, graças a uma boa lábia, à champanhe e o entusiasmo das agentes, consegui manter algumas obras de Llosa na Saraiva-Benvirá, agora impulsionado pelo Nobel, por algum tempo mais.

O que eu mais gostava no Hof, porém, era de chegar cedo, nas horas de silêncio. lha no mar da intolerância na qual se podia fumar charutos à vontade, no bar do Hof sempre reina um silêncio reverencial. Lá, num poltrona de couro, reflexivamente, eu me sentia muito mais à vontade que em meio à alacridade dos encontros sociais.

Fiquei amigo dos garçons e gostava de passar ali um tempo, antes que o salão se enchesse de gente, pelo simples prazer de estar ali. E por me juntar a todas as almas que lá conviveram e fizeram da literatura não apenas o grande reino exploratório da alma humana como um lucrativo negócio.

Assim, distribuía minhas vitoriosas baforadas, satisfeito de deixar também nele lugar, como volutas que vão se tornando invisíveis, um pouco de mim.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Nascido no ano do dragão

Hoje completo 55 anos. Por isso, vou deixar aqui um trecho de um livro de memórias, que está quase pronto, e quero publicar um dia desses. Fala da era de onde eu vim. Fica pra vocês como aperitivo - e para sentir o que significam 55 anos.


"Certa vez, ao trazer minha mãe de volta para casa, depois de uma sessão de quimioterapia no Hospital do Câncer, uma das últimas que ela fez, o caminho nos levou a passar na Rua dos Estudantes. O lugar onde nasci, no final da ladeira onde a Estudantes entra no chamado Baixo Glicério.

- Nosso primeiro apartamento foi aqui, de frente para a rua, no terceiro andar – disse mamãe, apontando.

Eu já sabia - e lembrava. Nosso edifício continuava lá, o mesmo bloco de cimento áspero e cinzento. A porta central dava para o longo corredor interno; do lado direito ficava a entrada da garagem descoberta e, à esquerda, outra porta basculante, onde no passado funcionara um bar, estava fechada. Era um cortiço, não sei há quanto tempo. Ao lado, um imóvel derrubado dera lugar a um beco onde se amontoavam barracos de plástico preto. Gente sinistra espreitava.

Bem que eu gostaria de bater à porta e pedir para olhar lá dentro, mas dava medo descer do carro. Passei reto. A casa onde morei já não estava lá, e sim na minha memória. Tentei avaliar se aquele lugar já era assim ruim ou decaíra com o tempo. Certamente piorara; porém, creio que nunca tinha sido bom. Nem a casa, nem os tempos.

Pelo horóscopo chinês, todos os nascidos no ano de 1964 pertencem ao signo do dragão. Diz o horóscopo chinês que o Dragão é generoso, inteligente e tenaz. Pode alcançar a riqueza, mas não é por ela que trabalha. Gosta da liderança e do poder. Precisa, no entanto, de flexibilidade, tolerância e compaixão. Não sei. Sei que aquele foi mesmo um tempo de soltar fogo pelas ventas.

Em 1964, a Liberdade era região dos “inferninhos” – lugares mal-afamados com dançarinas que faziam programa e nem por isso impediam que logo ali se instalassem algumas famílias como a nossa. As boates de prostituição faziam à noite um barulho distante que me intrigava. 

Com quatro ou cinco anos de idade, perguntei ao zelador, com a candura e a curiosidade das crianças, por que lhe faltava um pedaço do dedo anular direito. Ele me respondeu que trabalhava de guarda numa boate ali perto; certa madrugada, dera um tiro com uma pistola automática e, quando ela cuspira a cápsula da bala, arrancara-lhe aquele terço.

Eu o achava simpático e, ao mesmo tempo, um tanto sinistro. Mantinha sempre fechado o fosso central do edifício, ao qual se tinha acesso por uma porta no longo corredor, como um alçapão na parede. Mais tarde, descobri que ali ele criava patos. Poucas vezes vi a porta aberta: um quadrilátero coberto de guano, com um cheiro repugnante, onde patos velhos e sujos grasnavam e espadanavam aos montes; um lugar onde o sol nunca chegava e pelo qual eu passava rápido, mesmo de porta fechada. Eu não entendia o que faziam ali aquelas aves; ou melhor, intuía que se tratava de um matadouro; foi esse contato que me deu uma primeira e lúgubre noção da morte.

Tornou-se célebre em casa o pato com cerveja preparado pela mãe com uma das crias do zelador, que para sua infelicidade permaneceu no prato, depois da careta dos comensais. Lembro de mexer co arroz amarelo longamente com o garfo; a expressão interrogativa de minha mãe, que foi virando zanga, depois fúria; rejeitar sua comida era rejeitar o seu amor, e isso a deixava tão possessa quanto se deliciava com os cumprimentos de qualquer almoço do qual saía com os costumeiros elogios.

Como em outras ruas do centro, na Estudantes o submundo dos proxenetas e outros marginais convivia com a “gentinha”: aqueles seres anônimos que viviam de pouco. Eram funcionários de pequenos armarinhos, bares, pensões, lojas de artigos baratos. Homens gastos pela desesperança e mulheres mestiças de exuberância e pobreza, aquela beleza suburbana ao mesmo tempo sensual e melancólica que exercia em mim ao mesmo tempo repulsa e atração.

Sem horizontes, viviam a beber (os homens) ou a falar da vida dos outros (homens e mulheres), o que aos poucos transferiu a expressão “gentinha” para a identifição dos fofoqueiros e maledicentes. Além deles, havia toda a marginália de bêbados, mendigos e vagabundos que faziam da rua uma zona proibida, como se eu estivesse numa ilha cercada de águas cheias de tubarões.

Ali meus pais podiam pagar o aluguel de um imóvel maior que a quitinete de seus primeiros meses de casamento. Nosso apartamento tinha dois quartos, era próximo da praça da Sé e do trabalho de meu pai - a Gepesa ficava na Rua Líbero Badaró. A prefeitura acabara de retirar os bondes da cidade e havia um cemitério deles num terreno baldio ao lado do viaduto que saltava a via férrea na entrada da avenida Rio Branco. Os trilhos do bonde ainda estavam colados ao asfalto e as ruas do centro cobriam-se pelos fios das linhas de trólebus, os ônibus elétricos que eram o principal sinal de modernidade do transporte público.

São Paulo ainda possuía algo da elegância de seus tempos áureos. Não havia shopping centers. O comércio era na rua, especialmente no centro da cidade, onde ficavam os dois grandes magazines - o Mappin e a Mesbla. Os homens andavam de gravatas finas e ousavam abandonar o chapéu. Para as mulheres, havia blusas de gola rulê, saias ou calças justas e curtas, que deixavam de fora a canela. O cabelo era armado com altas doses de laquê.

Mesmo quem era pobre, naquele tempo, se vestia melhor que os ricos de hoje. Vejo as fotografias de minha mãe e suas irmãs em casa de meus avós, ou em lugares como Campos do Jordão, e penso que aquela foi a última era da elegância. O consumo de massa ainda não destruíra a roupa de alfaiataria, nem espalhara o jeans para o uso comum, assim como a camiseta. Naquele tempo, usava-se ainda roupa social no dia a dia. E as pessoas se vestiam de forma diferente umas das outras.

O jeans, conhecido ainda como “calça rancheira”, apenas aparecia. Quando eu era pequeno, meu pai tinha só uma, guardada no fundo do armário, por seu pouco uso. Era grossa, dura e desconfortável. Criado pelos mineradores para o trabalho árduo nas minas nos Estados Unidos, o jeans era feito de índigo, uma lona grossa para ser utilizada no campo ou operários no serviço braçal. A disseminação do seu uso coincidiu com o início da democratização da roupa e da sua transformação em artigo rapidamente descartável, segundo os interesses da indústria de massa.

Embora meu pai não tivesse dinheiro, jamais deixou de lado um certo comportamento aristocrático, enraizado na família desde um tempo em que meus bisavós possuíam fazendas cheias de escravos na região de Piracaia, perto da divisa com São Paulo. Meu avô, que fugira de casa na juventude, depois de brigar com a madrasta, e vivera vida aventureira, tivera sido destituído da herança por um irmão trapaceiro. Porém, jamais se queixara de sua condição, do irmão, do dinheiro – de nada. Papai fazia o mesmo.

Uma vez casado e obrigado a virar-se por conta própria, ele tinha de viver no meio da ”gentinha”, mas era diferente dos outros – ele, sim, tinha perspectivas de sair dali. Educado graças ao gosto pela leitura, herdado de vovô, mesmo depois do golpe de 1964, que mudara sua carreira de maneira abrupta, acreditava prosperar no jornalismo. Mesmo não sendo tão culta quanto ele, mamãe estava ligada à educação pelo trabalho como professora. Além de interesses e ideais em comum, ela tinha a energia, o espírito de iniciativa e calor para ajudar e impulsionar o marido.

Era um casal admirável; eles estavam próximos pelo amor, pelo objetivo em comum da família e por características que, mesmo onde havia diferenças, se completavam na direção do bem comum. E talvez seja assim com todos os casais; uns administram a vida a partir da união inicial para convergir ainda mais ao longo do tempo, outros divergem até que a distância entre ambos fica tão grande que torna a separação inevitável.

Eles se casaram para sempre, num tempo em que “para sempre” começava a ser muito relativo – eles apenas não sabiam disso, ainda. Além das mudanças da tecnologia e da política, aqueles anos turbulentos da década da 1960 marcaram também o início de uma profunda mudança de comportamento e mentalidade. A geração de meus pais foi a primeira a colocar a felicidade como um bem sem barreiras, fossem religiosas e psicossociais. E como um bem eminentemente individual, acima, portanto, da família antes sagrada.

A manutenção do casamento deixou de ser tão importante; nessa geração, foi aprovado primeiro o desquite, depois o divórcio. A separação se tornou comum e este foi um passo decisivo para a criação da era de independência e individualismo que chegou ao auge nos anos 2000. Um modelo que, todavia, criava também seus próprios problemas, como o anterior.

As mudanças de comportamento tinham forte influência nas artes, muito rica naquele período. Os Beatles, banda inglesa que deu início ao fenômeno de massa em escala mundial, começou sua carreira usando gravata e terno preto; terminou de cabeleira e roupas largas que indicavam a liberdade de criação, pensamento e conduta. O estilo que se tornou conhecido como “bicho-grilo”, teve seu auge depois do festival de música de Woodstock, em 1968 e inaugurou o que se passou a chamar de “contracultura”.

A gíria da época se tornou muito característica; por conta da Jovem Guarda, que imitava no Brasil os Betles dos primeiros tempos, com suas músicas meio inocentes de juventude, ficaram famosos os bordões como “mora”, ou “morou?” (entendeu?). Vinha de “é uma brasa, mora”, frase criada por um jovem talento que encantava as multidões: Roberto Carlos. Tudo o que causava espanto vinha acompanhado da expressão “putz”, de “putz grila”. 

A influência das artes no comportamento e vice-versa em escala mundial apenas começava. Ainda havia pouco contato cultural com a Europa e os Estados Unidos. A TV incipiente tinha programação local e eram privilegiados os que tinham a oportunidade de conhecer o exterior – os aviões transcontinentais eram poucos, caros e demorados.

Esse relativo isolamento mantinha o Brasil com uma cultura autóctone, muito mais presente na vida dos brasileiros. Esta refletia apenas de longe a influência estrangeira que viria quase a substituí-la mais tarde, com o acesso imediato à informação e a criação do mercado global. A produção cultural brasileira era forte, predominante e rica. A década de 1960 foi uma fase áurea das artes brasileiras, com o maior encontro de gênios criativos numa única época, rebento de um longo período de desenvolvimento, liberdade e elegante despreocupação vindo desde os anos 1950.

Na arquitetura, havia Oscar Niemeyer, que acabara de desenhar Brasília; no paisagismo, Burle Marx. Grandes mestres das artes plásticas, como Di Cavalcanti, Portinari e Aldemir Martins, buscavam no retrato do povo a reafirmação da identidade nacional. Não eram assinaturas em museus, mas artistas vivos, trabalhando, sob a influência do mundo ao seu redor. Na literatura, conviviam Jorge Amado, Graciliano Ramos, Antonio Callado.

A década de 1960 foi também palco de grandes compositores, tanto da geração anterior quanto a mais jovem, todos em sintonia com os acontecimentos políticos e sociais que fariam a arte se alinhar com as bandeiras da democracia e da liberdade. Essa tendência cresceria depois do golpe militar de 1964, flor em meio aos espinhos, bandeira de poesia e liberdade em tempos de brutalidade, espada de idealismo para enfrentar os desafios sociais de um país que não aceitava mais o subdesenvolvimento, uma expressão que caracterizava a visão do Brasil sobre si mesmo nesse período.

O país ainda veria coisa pior, quando as metrópoles se transformariam em bolsões de pobreza e violência muito maiores, mas naquele tempo ainda havia a esperança de melhorar. Ninguém imaginava que levaríamos trinta anos para ter de volta a democracia plena, nem que a ditadura, apesar de uma série de realizações, como grandes obras de infra-estrutura a um custo bastante alto, teria de nos levar primeiro ao caos econômico e social para ruir.

O artista falava de amor e da vida simples, mas erguia bandeiras de um mundo melhor. O Brasil era romântico, tanto nas músicas sobre a saudade e o amor como no sonho de mudar o país e o mundo, alimentado por muitas bandeiras que se mostrariam também ilusórias, como a do comunismo.

Naquele tempo, quando a cultura de massa ainda não nivelara a qualidade por baixo, as canções depuradas, com letras inteligentes, eram também a canção popular. Nesse ambiente, meus pais vibravam com as vozes de João Gilberto, Maysa, Elis Regina, Jair Rodrigues, Wilson Simonal. Viviam ao ritmo das canções de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Assistiam à progressiva influência do rock, com a cara de uma juventude livre e despreocupada, incorporada pela Jovem Guarda, de onde se lançou Roberto Carlos. E o despontar de talentos ao mesmo tempo populares e intelectualizados como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Podia-se ver agora esses astros refinados em shows multiplicados pela TV cada vez mais acessível e levá-los para casa em discos de vinil, cultura viva que integrava o público na nova tecnologia das vitrolas de “alta rotação”. Os sucessos das rádios eram lançados imediatamente nos “compactos” – discos de vinil pequenos, que os americanos chamavam de “singles”, contendo apenas aquela música, mais outra no verso.

(Colocar a música na vitrola era uma delícia; a ponta do dedo levava a agulha até a faixa a ser ouvida, aquele barulho da agulha pousando no vinil, iííííí, e então a mágica, produto da sensibilidade e inteligência, música para a cabeça, o coração e a alma.)

O artista contra a supressão da liberdade e política mostrava como a luta contra a ditadura não era apenas uma questão política, da esquerda contra a direita, mas do iluminismo contra o obscurantismo, da alegria contra a sombra, da paz contra a opressão.

As cidades acompanhavam as mudanças sociais; o Brasil rural se transformava num país urbano, com uma indústria ascendente e moderna, especialmente a automobilística. O caos das metrópoles, o tráfego intenso, a violência exacerbada e o crime organizado ainda não eram sequer uma hipótese. Crimes de morte chamavam a atenção pela raridade e a brutalidade, sem perder-se na névoa da indiferença, capaz de cobrir tudo o que se torna rotineiro; o início do processo de banalização do absurdo, porém, estava ali.

Eu pouco sabia ainda da vida lá fora; não tinha consciência do que viria, nem mesmo de onde estava. Cresci naquele tempo de mudança, em meio a uma pobreza da qual nunca tive exata consciência, talvez até hoje, nem das dificuldades pelas quais meus pais passavam. Como eles, eu acreditaria sempre numa vida melhor, não com base em previsões, econômicas, mas simplesmente porque vim daquele tempo em que as pessoas viviam sobretudo de sonho."


sexta-feira, 8 de março de 2019

Chegaram!

Que satisfação receber pelo correio meus livros recém lançados em Portugal.


O futuro para autores e editores


Uma nova perspectiva para o mercado do livro na era digital

Confesso, eu me tornei editor de livros por acaso. Quando entrei na Saraiva, foi para escrever um livro – e não editar livro. Por mais improvável ainda que pareça, a encomenda era um livro destinado a um único leitor: o filho do doutor Ruy Mendes Gonçalves, sócio da Saraiva.

Uma criança que ainda estava por nascer. E que ele, com uma doença em estado avançado, sabia que não poderia educar. “Preciso que você escreva um livro contando a minha história ao Ruyzito”, disse. “Porque eu mesmo não poderei contar.”

Como recusar?

Em seis meses de trabalho, escrevi com Ruy O Serelepe, que já foi lido por bastante gente, e um dia o será pelo Ruyzito.

Eu e Ruy nos tornamos amigos e dividimos ideias e projetos. Naquele tempo, Ruy planejava expandir a área de varejo da editora Saraiva. E prepará-la para o futuro, com o prenúncio do fortalecimento do livro digital, supostamente capaz de quebrar muitas editoras e livrarias.

Sabendo do meu passado como executivo e editor de revistas, e querendo que eu continuasse por perto, me convidou para tocar a área de ficção e não-ficção da editora, com metas ambiciosas.

Fiquei na Saraiva três anos, dois além do que pude dividir com Ruy, com quem tive bons momentos, até seu falecimento. Aprendi muito, com ele, com agentes e livreiros, com acesso a todos os aspectos do negócio.

Fizemos também muito. Na Saraiva, criamos um selo (Benvirá), promovemos um prêmio literário recordista de inscrições, ganhamos Jabuti de literatura e outros prêmios, colocamos a Saraiva pela primeira vez na Flip com vários autores e multiplicamos o faturamento por cinco, em três anos de trabalho, com o lançamento de mais de uma centena de títulos.

Missão e todas as promessas ao Ruy cumpridas, achei que podia sair, para voltar apenas a escrever.

No fim das contas, ele estava certo: a crise veio. A Saraiva vendeu sua editora, que era lucrativa, para sanear a livraria, que nunca melhorou. O modelo de megastores, que antes dera lucros, se tornou pesado demais, num tempo em que todo o varejo é desafiado a trabalhar junto com o meio digital.

Passei um período de clausura, apenas escrevendo, para retornar ao mercado novamente como autor. Lancei pela editora Planeta A Conquista do Brasil e A Criação do Brasil, reportagens históricas sobre a colonização brasileira e a formação do DNA nacional. E um romance, Anita, sobre Anita Garibaldi, pela editora Record.

Agora sou um autor privilegiado, por conhecer mais gente e outros aspectos do negócio editorial. Volto a conversar com os compradores das livrarias e vejo um mercado dentro de um impasse ainda maior do que o existente no momento em que saí do meu posto como editor.

Enquanto as vendas do livro digital ainda parecem pequenas, insuficientes para se apostar nisso como negócio, as margens e as vendas do livro impresso andam cada vez menores. As grandes redes de livrarias - incluindo a Cultura, além da Saraiva - estão virtualmente falidas. As editoras não dedicam tempo ao mercado digital, porque este não paga as contas. E torcem para que as coisas voltem a ser como eram.

Isso não vai acontecer. O processo é irreversível, mesmo no livro didático. A perspectiva de o governo converter os milhões de livros que adquire do mercado em material virtual, num futuro próximo, é como uma espada sobre a cabeça de todos os grandes editores.

No varejo, algumas editoras optaram por se juntar e fazer volume com um imenso catálogo, mas nem isso parece garantir sua sobrevivência: seu futuro das editoras não depende apenas a escala de vendas, como também da mudança do próprio modelo do negócio.

As livrarias que não quebraram, atendo-se a vender livros em vez de produtos eletrônicos ou outros fora do foco, têm uma oportunidade de crescer no vácuo de quem está devendo dinheiro na praça. Porém, todos se perguntam como será o futuro – e como continuar.

Uma das ideias que procurei aplicar como editor é a de que é preciso explorar as possibilidades do presente, sem perder a passagem para o futuro. Por experiência própria, sei que é difícil nas grandes empresas rever processos de trabalho e toda a lógica do negócio, quando se tem contas imediatas a pagar.

É isso o que acontece com o mundo do livro. É mais fácil começar um negócio do zero, do que mudar o rumo de uma grande editora. Por isso, assim que me vi com liberdade para isto, resolvi aplicar um pouco das ideias que tive a meu favor.

Quando deixei a Saraiva, abri para mim mesmo um selo de livros digitais, onde coloquei meus títulos de backlist – livros cujos contratos com as editoras foram vencendo e cujos direitos guardei para mim mesmo.

Hoje, é preciso levar mais a sério a autopublicação. Não só para manter ativos títulos que já estavam fora de catálogo. Já é algo a se considerar para a venda de livros novos. Sobretudo digitais e em papel, sob demanda.

Esse sistema diminui o risco da editora e permite a formação do catálogo. A editoras têm procurado gastar pouco. Há editoras independentes que hoje só produzem o livro impresso se tiverem um grupo de leitores que já pagaram antecipadamente pelo livro. Há pelo menos um caso, a TAG, que inventou um clube do livro, pelo qual se paga mensalmente e se recebe um livro-surpresa. Não é um grande negócio. Porem, todos os negócios, no futuro, parecem ser afixados a algum nicho.

Muitas surpresas hoje estão surgindo da internet. Como editor, alguns dos livros em que eu mais apostava não vingaram da forma esperada. Outros, em que acreditava menos, foram sucesso. A internet oferece um grande espaço para testar o que funciona melhor e conectar-se com redes ou comunidades de leitores.

Por melhores que sejam, editores não têm bola de cristal. A realidade é que o público leitor decide o que vai ler. Isos vale tanto para o grande hit como para a cauda longa – o conjunto de títulos que individualmente vendem pouco, porque atendem a interesses muito individuais, mas na soma geral representam um volume de vendas muito maior.

Gastar pouco e apostar mesmo nos livros que venderão pouco, mas venderão - essa é a razão pela qual acredito que há mais chance de sobrevivência no futuro de uma editora independente do que nas tradicionais.  

Estou absolutamente convencido que no futuro não fará sentido manter estoque e mandar um livro para Manaus, ao preço de 40 reais, quando o leitor poderá tê-lo com apenas um clique, pagando 9,90 no formato digital. Não serão os leitores que irão decidir por esse novo modelo: será a própria indústria. Assim que as vendas não estiverem mais compensando seus pesados custos atuais, as empresas terão de mudar.

Imagino que em alguns anos o mercado de livros será um misto de editoras capazes de fazer obras que um único autor não poderá produzir, disputando espaço com autores independentes ou lançados por editoras digitais.

Haverá autores que agirão cada vez mais como editores, e editores que terão de ser cada vez mais autores. Para isso, terão de investir em conteúdo próprio, ou conteúdo de terceiros num novo modelo, que dispensará extensas, cansativas, caras e cíclicas renovações de contrato.

Cada um pode ver o futuro como quiser, claro. Essa é apenas a minha impressão. De uma coisa, porém, ninguém pode duvidar: esperar que nada vá mudar, sem fazer nada, é a melhor maneira de ver o bonde passar.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Deus aos 12 anos

Meu filho completou 12 anos. Aos 12, surgem novas dúvidas na vida. Sua maior preocupação, agora, é com a existência de Deus.

Estava interessado em Breves Respostas para Grandes Perguntas, o livro póstumo de Stephen Hawking. Queria saber o que um cientista pensava a respeito dessa questão.

Comprei o livro. Na cama, antes de dormir, ele leu algumas páginas, e fechou-o de repente.

- Deus não existe -, disse.

No dia seguinte, fomos de carro ao Parque Villa Lobos jogar bola. No caminho, perguntei a ele o que Hawking dizia no capítulo sobre Deus.

- Ele diz que a ciência ainda não encontrou respostas para algumas coisas. Mas também não achou provas da existência de Deus [como explicação para essas questões].

Resolvi então aplicar nele o método socrático.

- Você aceita a ideia de que alguém pode acreditar em Deus, simplesmente por acreditar, por ter fé?

- Sim. Mas uma pessoa acreditar não quer dizer que ele exista.

- É verdade. Mas se eu acredito em Deus, por exemplo, e Deus me diz para fazer coisas boas, e isso me faz dar um prato de comida para quem tem fome, essa ação - dar um prato de comida - é algo bem concreto, não?

- Sim.

- Se eu fiz isso por acreditar em Deus, então essa ideia de Deus se tornou  um ato real. Podemos dizer então que Deus atuou por nosso intermédio?

-Sim.

- Se fazemos algo que existe por causa de algo que não existe, por nosso intermédio esse algo não passa a existir também?

- Sim. Passa a existir também.


- Então concluímos que Deus existe.

Ele ficou surpreso com a demonstração socrática da existência de Deus. Em batucou. Como pede a filosofia, a dúvida, ao menos, foi instalada.

Às vezes, Sócrates é meu Jesus.

domingo, 11 de novembro de 2018

Freeman e o verdadeiro fim do racismo

Quando eu era moleque e jogava bola na rua, na Casa Verde, qualquer preto era "Pelé". "Passa a bola, Pelé!" Eu era o "Alemão". "Passa a bola, Alemão!" E ninguém ligava.

Hoje em dia tem movimento contra o racismo e todo tipo de discriminação ou exclusão social, mas o mundo nunca me pareceu tão racista e discriminatório quanto agora. Tem cota para isso e aquilo e, para mim, da gritaria vem mais discriminação sobre uma coisa que nem deveria existir.

É o que diz o Morgan Freeman, um homem livre até no nome, neste vídeo que achei ótimo. O Bolsonaro, por sinal, fala a mesma coisa que ele. Mas é o Bolsonaro. Já o Morgan Freeman, que é americano, preto, rico, famoso e elegante, pode fazer o mesmo discurso e ninguém critica.

Sou a favor da sociedade igualitária, radicalmente igualitária, o que significa que cor, credo, sexo não são discrimináveis por qualquer forma. Acho que a ideia de criar privilégios para essa ou aquela minoria em nome da inclusão não resolve nada. Igualdade se exerce, não se pede. Existe - e ponto final.

O mesmo vale para as mulheres e o feminismo. Em Israel, uma das sociedades mais igualitárias que eu conheço, as mulheres têm não os mesmos privilégios ou vantagens que o homem, e sim os mesmos deveres e obrigações. Servem, por exemplo, igualmente, o Exército. Como resultado, possuem a mesma liberdade - e o mesmo respeito.

Em Israel, as mulheres não se intimidam com uma cantada masculina. Nem reclamam. Muitas vezes tratam os homens como muitas mulheres acham que os homens as tratam na sociedade ocidental.

Numa relação entre iguais, o assédio muda de figura: sequer existe alguém já classificado previamente como vítima. A ideia de que a mulher está mais sujeita ao assédio, a um salário menor e outras injustiças, por ser mais fraca, nem passa pela cabeça dos israelitas - homens e mulheres. Elas são iguais. E ponto.

Eu já sofri assédio de mulheres que em determinada situação eram mais poderosas. Rejeitei, mesmo com a possibilidade de ser prejudicado, e nunca reclamei. Sim, isso acontece com homens também. Posso afirmar de cadeira que o homem branco também sofre discriminação. Mas ora, onde já se viu, um homem branco, macho-machista-chauvinista-dominador do mundo-explorador de tudo, reclamar de assédio?

Temos no Brasil uma sociedade diferente da de Israel, é claro. Nossa raiz portuguesa é essencialmente patriarcalista, vem do tempo em que o português se casava com a índia e o filho tinha de ter o sobrenome do pai para ser cidadão, e não gentio - um semiescravo.

No Século XVIII, porém, como mostro em meu mais recente livro, A Criação do Brasil, isso mudou bastante com a chegada dos espanhóis no período da União Ibérica. Os espanhóis tradicionalmente carregavam o sobrenome da mãe. O governador Salvador Correia de Sá, homem fundamental na história do Brasil e Portugal, sobrinho-neto de Mem de Sá por parte de pai, era espanhol, nascido em Cádiz - e levava o sobrenome da mãe, Benevides.

Israel é uma sociedade militarizada. Nada cria mais igualdade que o Exército  - todos os soldados são iguais, como anuncia o uniforme verde. Talvez seja por sua origem militar que Bolsonaro veja os iguais simplesmente como iguais, ou como soldados, ou simples cidadãos. É apresentado como um sujeito retrógrado, em relação à igualdade e ao tratamento das mulheres. Acho que lhe falta elegância, mas, no fundo, o que ele pensa e diz não difere, na essência, do discurso de Morgan Freeman. Bolsonaro defende, apenas, a igualdade, sem o privilégio - ou, como chamou, o "coitadismo".

Ninguém jamais verá um "mês do homem branco" ou um desfile de homens brancos na Avenida Paulista reclamando de assédio ou de seus direitos como homem branco. Parece absurdo. Qualquer outra coisa do gênero, no entanto, devia ser absurda também. Nenhum homem branco quer privilégio ou reserva de qualquer coisa, até porque a mesma sociedade opressora apontada por outros manda que o homem não reclame de nada, nunca.

O homem deve ser o que dá mais, o que se sacrifica pelos outros sem reclamar, e, se ganha alguma coisa, não é mais por mérito, e sim porque está explorando alguma vítima na sua condição de privilegiado histórico-social. Não importa o que faça, está pregada nele desde nascença a pecha do "macho dominante chauvinista".

Claro que há os cafajestes, os ignorantes, os transgressores. Há mulheres, gays, negros e amarelos assim também. Para eles, existe a vergonha, ou, na medida do crime, a lei. Porém, para os homens de verdade, que são a imensa maioria - pais de família, respeitadores das mulheres tanto quanto de quem quer que seja, que tentam obstinadamente ser bons pais, bons maridos, bons cidadãos -, o espetáculo do enxovalhamento do gênero masculino soa como algo meio absurdo. Parece que o homem não é mais cidadão, perdendo seu direito, inclusive, a falar qualquer coisa, a dar opinião, da mesma forma que todos.

Talvez seja tarde demais para voltar o tempo em que ser "Pelé" ou "Alemão" não dava em nada. (Pensando bem, ser "Alemão", na linguagem da rua, era mais pejorativo que ser "Pelé". Ser Pelé, além de preto, queria dizer "craque". E "alemão", além de louro, era ser meio perna de pau.)

Porém, levar a cor e o sexo como bandeiras políticas longe demais é aumentar a discriminação, não terminar com ela. Precisava aparecer o Morgan Freeman para dizer, "somos iguais, não preciso dessas coisas". Que seja ouvido e as coisas sejam realmente assim.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

A crise do mercado do livro e o futuro da literatura


Nas últimas semanas, começaram a surgir as primeiras notícias mais concretas da queda anunciada do mercado editorial brasileiro, pelo menos da forma como o conhecemos.

A Livraria Cultura, segunda maior rede de livros do país, pediu concordata e entrou no período judicial em que precisa apresentar uma proposta de pagamento aos credores para não ser liquidada.

A Saraiva, que já vinha renegociando pagamentos com as editoras, depois de um período de inadimplência, cortou 20 da sua centena de lojas num processo de reestruturação que deve estar longe de terminar.

A Companhia das Letras, editora com um dos maiores catálogos do país, teve seu capital vendido para a Penguin Random House, que já era sócia minoritária e tem mais cacife para segurar as contas.

É o fim do livro? Não, é um novo começo. Entre as editoras, existe a tendência da concentração, para que as empresas possam ganhar com a chamada cauda longa - vendas de muitos títulos, agregadas, dão alguma receita. E aumenta a importância da publicação digital, ou da autopublicação, que deixa de ser a alternativa de quem foi rejeitado pelas editoras, para aos poucos tomar o lugar do mainstream.

Isso vale tanto para os livros de não ficção, aí incluída a autoajuda, que já tem grande força no livro digital, quanto na literatura. Ela, que assim como o cinema já teve seus arautos do apocalipse, não está acabando. Pelo contrário. Muda o processo de criação, de divulgação e comercialização, mas a literatura nunca foi tão importante e ativa quanto agora.

O romance sempre teve um papel fundamental no desenvolvimento humano. A literatura é a vanguarda das ideias, que são o começo da ação e, portanto, das grandes mudanças. Basta dar alguns exemplos do passado, como 1984, em que George Orwell já imaginava um mundo em que todos eram vigiados em tempo real. Ou Viagem à Lua, de Júlio Verne, que já previa no século XIX o disparo de um bólido tripulado ao satélite da Terra, para voltar com auxílio da gravidade lunar.

Tudo aquilo que se imagina hoje é o primeiro passo da realidade de amanhã. A literatura tem ainda o poder de penetrar na alma humana, formar o indivíduo, que nela pode recolhee a mais profunda e verdadeira fonte de ensinamentos: a experiência humana.

Em vez de perder com a crise do mercado editorial e do livro impresso, a literatura ganha força inaudita com o advento da internet. Ela permite que hoje qualquer um escreva em qualquer lugar do mundo - e seja lido.

Como atividade profissional, isso exige também uma adaptação aos novos tempos: a formação de redes de leitores e o uso de mecanismos de venda também virtuais. Mas isso não é o fim da literatura ou do livro. É, pelo contrário, sua renovação mais impactante desde Gutenberg.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

A Criação do Brasil: para entender e mudar o país

A Criação do Brasil (1600-1700), meu novo livro, revela o lado pouco conhecido, violento e surpreendente da expansão brasileira continente adentro, no nosso segundo século de colonização. E mostra a formação da sociedade brasileira, cujas raízes se estendem até os dias de hoje. (À venda na Amazon neste link)

Quando comecei a pesquisa, acreditei que já sabia bastante sobre esse período da história. O começo do bandeirantismo, as invasões holandesas - aquilo que se ensina nas escolas, episódios sem relação entre si. Imaginei um ano de trabalho e foi o que prometi à editora Planeta.

Como estava enganado! Em tudo - incluindo o tempo que levaria para concluir o trabalho, que foi três vezes maior.

A pesquisa me levou a uma barafunda de documentos antigos, atas perdidas, a maior parte dela em papel. À vastidão dos sermões e a míriade de cartas pessoais do padre Antônio Vieira. A obras de historiadores de língua espanhola, relatos de jesuítas e muitas outras fontes que revelaram uma história muito mais profunda e bastante diferente do que lemos nos livros escolares.

Fui também a campo, descobrindo às vezes lugares perdidos no meio da selva cosmopolita, que revelam grandes histórias. Como o Mont Serrat e o Forte São João, em Santos, para onde fui acompanhado do meu filho André. Assim, além de trabalho, a reportagem virou para mim diversão. E, para ele, também uma forma interessante de aprender história do Brasil ao vivo.

Ao fim e ao cabo, descobri que nada ou pouco sabia sobre o que aconteceu, na realidade. Primeiro, porque esse período da história sempre foi bastante negligenciado pelos historiadores.

Para começar, precisei entender que durante 60 anos o Brasil foi espanhol. A importância desse fato, ignorada pelos livros escolares, sempre foi deixada de lado pelos portugueses, pela vergonha de terem pertencido à Espanha, e pelos espanhóis, por terem perdido Portugal.

 Tive que retroceder no tempo e analisar a formação de ambas as Nações, tão próximas na língua, na origem e na trajetória, onde poder .e religião se mesclaram para a afirmação e expansão imperialista com um sentido sagrado, ou missionário.

Aprofundar o que a União Ibérica mudou na realidade daquela época me fez reinterpretar todas as coisas acontecidas nesse século e explica muito do Brasil: o avanço dos bandeirantes pelo sertão, agora sob uma só coroa, embora infringindo os limites administrativos do novo e imenso império; as invasões holandesas, que se deram não apenas por cobiça, mas para enfrentar o poderio espanhol, de quem os Países Baixos tinham se separado na Europa; a perseguição aos portugueses, que se tornaram mais numerosos em Lima e Buenos Aires, por exemplo, que os próprios castelhanos; o papel da Inquisição, mesclada a interesses econômicos.

A volta do Brasil ao domínio de Portugal não foi nada simples, depois de décadas que forjaram toda uma geração nascida sob o signo do "império onde o sol nunca se põe". E a então nascente elite brasileira teve papel fundamental na chamada Restauração portuguesa.

Foi surpreendente descobrir que os holandeses não foram expulsos do Brasil por Portugal, que fomentou a revolta discretamente, por ser aliado da Holanda na Europa contra a Espanha, e sim pelos senhores de engenho radicados no Brasil.

A nascente elite brasileira, que abria caminho para as riquezas espanholas, patrocinava o contrabando, produziu a expulsão dos holandeses e a retomada do império para Portugal, adquirindo um novo poder, nova identidade e influência sobre a própria Metrópole.

Nesse processo foram chave personagens extraordinários, alguns tão desconhecidos quanto fundamentais na formação brasileira, como Salvador Correia de Sá, espanhol de nascimento que foi o grande articulador da retomada do império português para Portugal, a começar pelo Brasil.

E o padre Antonio Vieira, português criado no Brasil, que, muito mais que os Sermões, clássico da literatura barroca luso-brasileira, foi um importante articulador político, colaborador direto do rei. Defensor da liberdade, questionador da escravidão tanto do negro quanto do índio, criou para Dom João IV um plano econômico que visava repatriar judeus portugueses para Portugal. Com sua influência e persuasão, chegou a abolir no país a Inquisição.

Os bandeirantes não eram nem sombra do que eu pensava. Nada dos heróis que viraram estátua. Eram gente que andava na mata de pé no chão, falava tupi e misturava a temeridade sanguinária dos índios canibais com a organização militar portuguesa: a gente mais feroz e inclemente que já existiu na face da terra.

Causam horror os relatos dos jesuítas espanhóis, verdadeiros templários do trópico, que organizaram exércitos para combatê-los, numa guerra cujos detalhes macabros a história brasileira convenientemente varreu para baixo do tapete.

O Brasil, em resumo, não era nada do que eu pensava. E aos poucos as coisas foram se aclarando - não apenas sobre o passado, como sobre o presente.

Como nos enganamos a nós mesmos! Imaginamos, por exemplo, que os índios desapareceram da nossa vida. Hoje vejo, porém, como deixaram para nós muito mais que o nome de ruas e cidades. Estão no nosso DNA, propositalmente esquecido.

E a política? Aos poucos, criou-se aqui uma elite que não tem fidelidade a ninguém. Num século dominado por portugueses, depois espanhóis, holandeses e novamente portugueses, eles aprenderam a viver com as mudanças e enraizaram-se num sistema de poder por meio do qual mandam geração após geração, imunes às mudanças do tempo. Assim passaram por diferentes impérios, regimes, sistemas econômicos e chegaram até aqui.

Assim como a dominação da costa brasileira pelos portugueses, contada no primeiro livro, A Conquista do Brasil (1500-1600), percebi como o segundo século da história brasileira é contado de forma tão superficial pelos livros escolares e pouco entendido de maneira geral.

A Criação do Brasil vai do contexto ao detalhe para a compreensão do vértice de todo o nosso passado, a gênese da nossa sociedade e sobretudo da elite brasileira.

O DNA que persiste no Brasil até hoje está aí, nesse século fundamental para a formação brasileira - como digo no livro, "raiz dos nossos mais monstruosos males e incomparáveis virtudes".

Não é possível entender o Brasil sem entender sua infância, que se manifesta no adulto, ainda que de forma pouco consciente. É o que se descortina com este livro. Meu desejo é que todos possam, com ele, ver, entender e sentir o que vivi.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Por que vivemos da mão para a boca no Brasil

Depois de escrever A Conquista do Brasil e agora A Criação do Brasil, dois livros que retratam a formação do país, aconteceu comigo uma transformação. Para mim, o Brasil como eu via, o país que achava que conhecia, não existe mais.

Hoje olho as pessoas na rua, os políticos, a fila do supermercado e vejo um outro Brasil, não o que se mostra, e sim a matriz daquilo que somos. Vejo tudo diferente, com se enxergasse o brasileiro nu.

Quando reclamamos de nossos problemas, e não entendemos por que somos assim - um país mergulhado em crises econômicas e institucionais cíclicas, sem projeto para o futuro, com uma classe política e econômica corrompida - não vemos as causas disso tudo. E o quanto isso tudo está dentro da sociedade brasileira. A corrupção, a deseducação, a falta de ética, como se diria nos evangelhos, tudo está no meio de nós.

Existem hoje muitos críticos do determinismo geográfico e histórico, segundo os quais não podemos atribuir nossos males à nossa formação. Seria fugir às nossas responsabilidades e atirar para o passado coisas que devíamos resolver hoje.

Porém, ao estudar a história, não se pode negar que o passado está não apenas no nosso sangue, por força hereditária, como por uma herança atávica no nosso comportamento individual e coletivo.

Atua e influencia o que somos hoje. E como seremos, pois só entendendo esse passado é possível ter mais consciência do que é preciso fazer para mudar.

Escamoeamos o nosso passado, varremos nossas verdades para baixo do tapete. Temos vergonha de muita coisa, preferimos entender. depois, não gostamos nem entendemos o jeito que somos.

Uma dessas verdades que a gente preferiu enterrar é que existe uma grande influência do índio no brasileiro, na nossa sociedade.

Essa simples declaração costuma ser rejeitada por muita gente, porque vive sendo negada desde o início da nossa existência como Nação. Mas é puramente uma constatação histórica e antropológica, da qual não escaparemos sem enfrentar a realidade.

O índio não desapareceu da sociedade brasileira. Não está restrito a tribos isoladas na Amazônia ou a reservas como o parque do Xingu. Ele ainda está no meio de nós, não apenas como nome de rua ou cidade. O índio ainda somos nós.

Tabu
Esse assunto sempre foi tabu, porque o brasileiro sempre tentou varrer o índio do mapa - fisicamente, primeiro, e depois da nossa história. Isso não muda o fato de que ele está no vértice da nossa sociedade. Sem esse elemento, é impossível entender nossos males. E também algumas de nossas virtudes.

Quando chegaram ao Brasil os primeiros portugueses, em 1500, havia cerca de 4 milhões de indígenas na América do Sul. Dois séculos depois, ao fim do período que estudo em A Criação do Brasil, havia 150 mil europeus na colônia brasileira, mas a população havia caído para pouco mais de 2 milhões de pessoas.

Essa redução dramática se deveu a alguns fatores. Primeiro, o genocídio dos índios da costa, que dizimou a nação tupinambá. Segundo, sua escravização, que aconteceu em escala muito maior do que costumam mostrar os livros escolares.

A Criação do Brasil mostra como os bandeirantes chegaram a criar campos de concentração com até 5 mil índios prisioneiros no território das Missões, do Paraguai até o Rio Grande do Sul. Menos de 20% deles chegavam vivos a São Paulo.

Houve também as grandes epidemias de "bexigas", doenças trazidas pelos europeus, especialmente a gripe, o sarampo e a varíola, que dizimaram índios em massa. Porém, a maior parte da população continuou sendo esmagadoramente indígena, parte pura e parte mesclada ao português.

Havia poucas mulheres que migravam de Portugal para a colônia. A matriz do brasileiro tem pai português e mãe índia. O bandeirante paulista era português e mameluco - filho de português e índia.

Andava no sertão descalço, como se vê em A Criação do Brasil, e até meados do Século XVIII sua primeira língua ainda era o tupi.

Fosse português ou mestiço, o bandeirante era um semibárbaro. Não respeitava as leis do império, as mais elementares. O padre Montoya, líder jesuíta das Missões, não citava o nome de Raposo Tavares, por considerá-lo a encarnação do demônio, matador impiedoso de índios.

Os bandeirantes não estavam longe de seus ancestrais antropófagos. Não se importavam de matar os prisioneiros e os tratavam da maneira mais cruel. De campos de concentração, levavam os índios capturados em grupos de oito, presos um ao outro pelo pescoço com gargalheiras de ferro. Quando um não acompanhava a marcha, os paulistas não se davam ao trabalho de soltar os grilhões: cortavam-lhe a cabeça com golpes de terçado.

Montoya, que seguiu uma bandeira de Raposo Tavares ate São Paulo, relatou que o caminho de Assunção a São Paulo, cumprido em 40 dias, era um tapete macabro de pedaços humanos.

Para escapar a sanções, corrompiam as autoridades. O padre Antônio Vieira já denunciava em suas cartas as "barretadas", suborno que os paulistas se gabavam de pagar às autoridades da Metrópole para continuar fazendo o que bem entendiam.

Raça bastarda

Nada disso faz tanto tempo, do ponto de vista histórico. Poucos brasileiros que realizarem exame de DNA, hoje bastante comum, deixarão de encontrar pelo menos uma pequena fração do sangue de algum ancestral indígena.

Apesar disso, o luso-brasileiro sempre ocultou ou negou sua porção índia. Instituiu um patriarcalismo envergonhado, que procurava apagar a origem da mãe.

A raiz indígena permaneceu oculta, esquecida como a nódoa de uma raça bastarda. Porém, muito do nosso comportamento, das nossas práticas, do nosso modo de ser foram transmitidos de geração em geração. Como ocultamos o índio de nós mesmos, não entendemos como vem dele também muito do nosso comportamento, ainda que de forma inconsciente, ou subliminar.

São muitos os sinais do índio em nós. Para começar, o indio não respeita autoridade. Até hoje, em aldeias como as do Xingu, o chefe comanda na base de dar presentes. E isso não é corrupção - é o dever do chefe. Espera-se dele que se dê presentes e se ele não os dá, perde o poder.

Quando imaginamos que a corrupção no Brasil vem do português, esquecemos o índio. O português corrompia o Conselho Ultramarino para continuar burlando as leis no Brasil, mas sabia que isso era crime. O índio não tem essa noção do pecado ou da moralidade no poder.

O índio não não guarda para o futuro. Vive da mão para a boca: caça e pesca quando tem fome. O brasileiro não guarda, pensa nem planeja para o futuro. Trabalha o suficiente para voltar ao ócio. Não faz poupança. Se tem dinheiro hoje, gasta tudo, sem pensar no amanhã. É o oposto dos japoneses, por exemplo, que vivem poupando.

Como resultado, coletivamente o Brasil não faz planos de longo prazo. Faz dívida, e não poupança para investir. Farreia nos bons momentos e depois cai de novo no buraco.

Vive nesses ciclos, com surtos de crescimento e queda, em vez de criar planos consistentes, em que se provê no presente para investir no futuro, base para o crescimento contínuo e sustentável.

Nas tribos indígenas, o chefe é um distribuidor de presentes e favores. Para eles, isso não é corrupção. É apenas como as coisas funcionam. Mantém o poder o chefe que mais dá presentes e pode sustentar mais gente. E as pessoas esperam ser sustentadas por ele.

Como fartamente estudado na antropologia política, é um sistema de trocas, que se pode comprovar nas reservas indígenas, onde as tribos funcionam como sempre. Certa vez em que fui ao Xingu assistir a um quarup, ouvi queixas de Jacalo, terceiro cacique kuikuro, dizendo que trabalhava muito, porque para manter seu status tinha de ar muitos presentes para todo mundo.

Corrupção é normal

No Brasil, os políticos mantém o poder por meio do favorecimento. E não vêem mal na corrupção. Os corrompidos também não. Ao contrário, esperam serem sustentados pelos senhores do poder, permitindo a estes que continuem tendo seus privilégios, por concessão do próprio povo.

O brasileiro reclama da corrupção política, mas não faz nada para mudar isso, nem se importa com ela, desde que esteja ganhando também. Se é ele que recebe, aceita o favor ou a negociata sem importar-se com as consequências ou o efeito multiplicador desse comportamento.

Há muitos outros sinais da presença indígena no brasileiro. O brasileiro adora comprar bugiganga e fazer rolo - trocar coisas. O brasileiro não respeita autoridade. O brasileiro fala mal de todo mundo, incluindo de si mesmo e da corrupção geral, para a qual quotidianamente contribui. Tende para a alacridade. De longe sabemos qual é o portão onde tem voo para o Brasil. É o único onde o pessoal fala alto, gritando uns por cima dos outros.

O índio vivia para matar o inimigo. Para ele, ao ir à guerra, só havia uma opção: ganhar ou morrer. Não havia prisioneiros: os vencidos eram todos mortos, sendo que os prisioneiros mais valorosos eram devorados. Não havia para o índio a opção de perder. Para o brasileiro, também. O brasileiro não gosta de ser vice nem no futebol. Não existe opção, a não ser a vitória.

Com exceção dos tupinambás, que foram dizimados, os índios não eram territorialistas. Eram nômades, que mudavam de lugar conforme rareavam os recursos no lugar onde se encontravam. O brasileiro também não tem apego à terra nem a preserva. fazia suas culturas como o índio, queimando o mato, e depois mudava, deixando para trás a coivara - a terra devastada.

Na falta de amor à terra, o índio combinou-se com o português, que vinha ao Brasil para fazer a vida e voltar à Metrópole. O Brasil sempre foi o lugar para ser explorado. A riqueza, porém, era levada para a Europa. Não importa a destruição que ficar para trás. Hoje, o brasileiro fica rico e pode optar por Miami, mas o princípio é o mesmo.

Atraso permanente
É preciso certa coragem para vencer a vergonha histórica e admitir que o índio somos nós. Ele não desapareceu: vive, incorporado à sociedade. Não é só nome de rua ou de cidade. É o povo brasileiro.

Claro que os portugueses e negros contribuíram - e muito - para o que somos. Assim como os imigrantes alemães, italianos e japoneses que vieram depois. Mas há uma matriz da brasilidade que ainda prevalece, até porque as outras se misturaram com ela.

Prevalece porque é dura, veio de um tempo de sobrevivência num mundo hostil, com um sentido de preservação como talvez não exista em outro lugar do mundo. Serviu à ocupação de uma terra inóspita, contra povos canibais e beligerantes, e que por muito tempo foi apenas e tão somente entreposto para chegar a lugares mais rico - as Índias Orientais e, sertão adentro, as minas da Bolívia e do Peru.

É essa sanha que faz com que o Brasil tenha permanecido em atraso, por séculos em que outras nações se tornaram muito mais desenvolvidas, e de forma mais sustentável, como o Japão, a Austrália, o Canadá e os Estados Unidos, cujo impulso não tem mais que trezentos anos.

Muitos dirão que a Europa só se tornou civilizada com os recursos que trouxe das colônias na América, mas o fato é que nesse tempo os europeus deixaram de ser um conglomerado de feudos bárbaros para se tornar um modelo de democracia social porque sua sociedade mudou.

Enquanto isso, o Brasil permanece um paradigma de subdesenvolvimento, de corrupção, violência e desorganização. Ah, falar mal de si mesmo é outro traço indígena. Neste caso, espero com este texto poder servir para algo construtivo, e não apenas para nos queixarmos, assim como quem cata piolhos.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

A nova história do Brasil


Quando comecei a escrever meu primeiro livro de História, A Conquista do Brasil, há quatro anos, não imaginei entrar num território absolutamente novo - uma vez que a história pressupõe ser algo já conhecido.

Porém, verifiquei que a História brasileira estava por ser ainda contada direito, desde o seu princípio. Aquilo que aprendemos nos livros escolares nada tinha a ver com o que eu descortinava na pesquisa de documentos originais e na visita a lugares onde se desenrolou o nosso passado.

Hoje, uma geração de jornalistas e historiadores tem se dedicado, com ajuda da internet, que nos dá acesso mais fácil a documentos no Brasil e no exterior, a reescrever a nossa história . Com um ponto de vista contemporâneo e mais realista. Entre os jornalistas, estão Laurentino Gomes e Jorge Caldeira. Dos historiadores, destaco o excelente Ronaldo Vainfas.

No meu caso, resolvi começar do começo. Com esse espírito de rever e revirar tudo, escrevi primeiro A Conquista do Brasil - 1500-1600: um sucesso imediato.

Primeiro, o surpreendente: entendemos o quão pouco sabíamos da nossa história e, portanto, de nós mesmos. Não admira que tenhamos tão pouco entendimento dos nossos problemas - e tanta dificuldade em resolvê-los.

O ótimo resultado de A Conquista do Brasil fez com que a editora Planeta me pedisse um segundo livro, que contasse o século seguinte. Foram três anos de trabalho para escrever e publicar A Criação do Brasil- 1660-1700, que está chegando às livrarias.

Se o primeiro livro descortina como a costa do Brasil não foi ocupada de forma tranquila pelos portugueses, e sim à custa de uma verdadeira guerra, o segundo livro mostra um período política e religiosamente conturbado. Depois da dominação espanhola e holandesa, os portugueses conseguiram empreender não apenas a consolidação da colônia como estendê-la continente adentro, graças a uma elite emergente enraizada no próprio Brasil.

Embora ao final favorecesse Portugal, gerou-se nesse século uma certa identidade nacional - e uma extraordinária resiliência diante das influências externas e modos de governo ao longo do tempo. Esta é ao mesmo tempo a razão dos nossos atrasos e o lastro da nossa identidade.

O surgimento de uma Nação é algo tão complexo quanto seus personagens. Descobri que heróis nacionais, como Raposo Tavares, eram na verdade bárbaros assassinos. Os bandeirantes não eram nada do que eu pensava. A invasão e depois expulsão dos holandeses, também.

O padre Antonio Vieira, uma mente iluminada para sua época, capaz de derrubar a Inquisição em Portugal, defender os judeus e a liberdade dos escravos, tanto negros quanto indígenas, mesmo contra a própria ordem dos jesuítas, à qual pertencia, foi também autor de obras dignas de um louco e outras tantas iniquidades.

Nada é plano e simples como contam os livros de história. Vi que somos formados não somente da nossa célebre multiplicidade racial, como de uma trajetória também multifacetada, contraditória, conturbada e por vezes brutal.

O Brasil do carnaval, samba e futebol não existe. Hoje olho as pessoas na rua, os políticos, a fila do supermercado e vejo um outro Brasil, não o que se mostra, e sim a matriz daquilo que somos.

E é preciso que mais gente veja, se é que queremos, realmente, mudar.