segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Por que vivemos da mão para a boca no Brasil

Depois de escrever A Conquista do Brasil e agora A Criação do Brasil, dois livros que retratam a formação do país, aconteceu comigo uma transformação. Para mim, o Brasil como eu via, o país que achava que conhecia, não existe mais.

Hoje olho as pessoas na rua, os políticos, a fila do supermercado e vejo um outro Brasil, não o que se mostra, e sim a matriz daquilo que somos. Vejo tudo diferente, com se enxergasse o brasileiro nu.

Quando reclamamos de nossos problemas, e não entendemos por que somos assim - um país mergulhado em crises econômicas e institucionais cíclicas, sem projeto para o futuro, com uma classe política e econômica corrompida - não vemos as causas disso tudo. E o quanto isso tudo está dentro da sociedade brasileira. A corrupção, a deseducação, a falta de ética, como se diria nos evangelhos, tudo está no meio de nós.

Existem hoje muitos críticos do determinismo geográfico e histórico, segundo os quais não podemos atribuir nossos males à nossa formação. Seria fugir às nossas responsabilidades e atirar para o passado coisas que devíamos resolver hoje.

Porém, ao estudar a história, não se pode negar que o passado está não apenas no nosso sangue, por força hereditária, como por uma herança atávica no nosso comportamento individual e coletivo.

Atua e influencia o que somos hoje. E como seremos, pois só entendendo esse passado é possível ter mais consciência do que é preciso fazer para mudar.

Escamoeamos o nosso passado, varremos nossas verdades para baixo do tapete. Temos vergonha de muita coisa, preferimos entender. depois, não gostamos nem entendemos o jeito que somos.

Uma dessas verdades que a gente preferiu enterrar é que existe uma grande influência do índio no brasileiro, na nossa sociedade.

Essa simples declaração costuma ser rejeitada por muita gente, porque vive sendo negada desde o início da nossa existência como Nação. Mas é puramente uma constatação histórica e antropológica, da qual não escaparemos sem enfrentar a realidade.

O índio não desapareceu da sociedade brasileira. Não está restrito a tribos isoladas na Amazônia ou a reservas como o parque do Xingu. Ele ainda está no meio de nós, não apenas como nome de rua ou cidade. O índio ainda somos nós.

Tabu
Esse assunto sempre foi tabu, porque o brasileiro sempre tentou varrer o índio do mapa - fisicamente, primeiro, e depois da nossa história. Isso não muda o fato de que ele está no vértice da nossa sociedade. Sem esse elemento, é impossível entender nossos males. E também algumas de nossas virtudes.

Quando chegaram ao Brasil os primeiros portugueses, em 1500, havia cerca de 4 milhões de indígenas na América do Sul. Dois séculos depois, ao fim do período que estudo em A Criação do Brasil, havia 150 mil europeus na colônia brasileira, mas a população havia caído para pouco mais de 2 milhões de pessoas.

Essa redução dramática se deveu a alguns fatores. Primeiro, o genocídio dos índios da costa, que dizimou a nação tupinambá. Segundo, sua escravização, que aconteceu em escala muito maior do que costumam mostrar os livros escolares.

A Criação do Brasil mostra como os bandeirantes chegaram a criar campos de concentração com até 5 mil índios prisioneiros no território das Missões, do Paraguai até o Rio Grande do Sul. Menos de 20% deles chegavam vivos a São Paulo.

Houve também as grandes epidemias de "bexigas", doenças trazidas pelos europeus, especialmente a gripe, o sarampo e a varíola, que dizimaram índios em massa. Porém, a maior parte da população continuou sendo esmagadoramente indígena, parte pura e parte mesclada ao português.

Havia poucas mulheres que migravam de Portugal para a colônia. A matriz do brasileiro tem pai português e mãe índia. O bandeirante paulista era português e mameluco - filho de português e índia.

Andava no sertão descalço, como se vê em A Criação do Brasil, e até meados do Século XVIII sua primeira língua ainda era o tupi.

Fosse português ou mestiço, o bandeirante era um semibárbaro. Não respeitava as leis do império, as mais elementares. O padre Montoya, líder jesuíta das Missões, não citava o nome de Raposo Tavares, por considerá-lo a encarnação do demônio, matador impiedoso de índios.

Os bandeirantes não estavam longe de seus ancestrais antropófagos. Não se importavam de matar os prisioneiros e os tratavam da maneira mais cruel. De campos de concentração, levavam os índios capturados em grupos de oito, presos um ao outro pelo pescoço com gargalheiras de ferro. Quando um não acompanhava a marcha, os paulistas não se davam ao trabalho de soltar os grilhões: cortavam-lhe a cabeça com golpes de terçado.

Montoya, que seguiu uma bandeira de Raposo Tavares ate São Paulo, relatou que o caminho de Assunção a São Paulo, cumprido em 40 dias, era um tapete macabro de pedaços humanos.

Para escapar a sanções, corrompiam as autoridades. O padre Antônio Vieira já denunciava em suas cartas as "barretadas", suborno que os paulistas se gabavam de pagar às autoridades da Metrópole para continuar fazendo o que bem entendiam.

Raça bastarda

Nada disso faz tanto tempo, do ponto de vista histórico. Poucos brasileiros que realizarem exame de DNA, hoje bastante comum, deixarão de encontrar pelo menos uma pequena fração do sangue de algum ancestral indígena.

Apesar disso, o luso-brasileiro sempre ocultou ou negou sua porção índia. Instituiu um patriarcalismo envergonhado, que procurava apagar a origem da mãe.

A raiz indígena permaneceu oculta, esquecida como a nódoa de uma raça bastarda. Porém, muito do nosso comportamento, das nossas práticas, do nosso modo de ser foram transmitidos de geração em geração. Como ocultamos o índio de nós mesmos, não entendemos como vem dele também muito do nosso comportamento, ainda que de forma inconsciente, ou subliminar.

São muitos os sinais do índio em nós. Para começar, o indio não respeita autoridade. Até hoje, em aldeias como as do Xingu, o chefe comanda na base de dar presentes. E isso não é corrupção - é o dever do chefe. Espera-se dele que se dê presentes e se ele não os dá, perde o poder.

Quando imaginamos que a corrupção no Brasil vem do português, esquecemos o índio. O português corrompia o Conselho Ultramarino para continuar burlando as leis no Brasil, mas sabia que isso era crime. O índio não tem essa noção do pecado ou da moralidade no poder.

O índio não não guarda para o futuro. Vive da mão para a boca: caça e pesca quando tem fome. O brasileiro não guarda, pensa nem planeja para o futuro. Trabalha o suficiente para voltar ao ócio. Não faz poupança. Se tem dinheiro hoje, gasta tudo, sem pensar no amanhã. É o oposto dos japoneses, por exemplo, que vivem poupando.

Como resultado, coletivamente o Brasil não faz planos de longo prazo. Faz dívida, e não poupança para investir. Farreia nos bons momentos e depois cai de novo no buraco.

Vive nesses ciclos, com surtos de crescimento e queda, em vez de criar planos consistentes, em que se provê no presente para investir no futuro, base para o crescimento contínuo e sustentável.

Nas tribos indígenas, o chefe é um distribuidor de presentes e favores. Para eles, isso não é corrupção. É apenas como as coisas funcionam. Mantém o poder o chefe que mais dá presentes e pode sustentar mais gente. E as pessoas esperam ser sustentadas por ele.

Como fartamente estudado na antropologia política, é um sistema de trocas, que se pode comprovar nas reservas indígenas, onde as tribos funcionam como sempre. Certa vez em que fui ao Xingu assistir a um quarup, ouvi queixas de Jacalo, terceiro cacique kuikuro, dizendo que trabalhava muito, porque para manter seu status tinha de ar muitos presentes para todo mundo.

Corrupção é normal

No Brasil, os políticos mantém o poder por meio do favorecimento. E não vêem mal na corrupção. Os corrompidos também não. Ao contrário, esperam serem sustentados pelos senhores do poder, permitindo a estes que continuem tendo seus privilégios, por concessão do próprio povo.

O brasileiro reclama da corrupção política, mas não faz nada para mudar isso, nem se importa com ela, desde que esteja ganhando também. Se é ele que recebe, aceita o favor ou a negociata sem importar-se com as consequências ou o efeito multiplicador desse comportamento.

Há muitos outros sinais da presença indígena no brasileiro. O brasileiro adora comprar bugiganga e fazer rolo - trocar coisas. O brasileiro não respeita autoridade. O brasileiro fala mal de todo mundo, incluindo de si mesmo e da corrupção geral, para a qual quotidianamente contribui. Tende para a alacridade. De longe sabemos qual é o portão onde tem voo para o Brasil. É o único onde o pessoal fala alto, gritando uns por cima dos outros.

O índio vivia para matar o inimigo. Para ele, ao ir à guerra, só havia uma opção: ganhar ou morrer. Não havia prisioneiros: os vencidos eram todos mortos, sendo que os prisioneiros mais valorosos eram devorados. Não havia para o índio a opção de perder. Para o brasileiro, também. O brasileiro não gosta de ser vice nem no futebol. Não existe opção, a não ser a vitória.

Com exceção dos tupinambás, que foram dizimados, os índios não eram territorialistas. Eram nômades, que mudavam de lugar conforme rareavam os recursos no lugar onde se encontravam. O brasileiro também não tem apego à terra nem a preserva. fazia suas culturas como o índio, queimando o mato, e depois mudava, deixando para trás a coivara - a terra devastada.

Na falta de amor à terra, o índio combinou-se com o português, que vinha ao Brasil para fazer a vida e voltar à Metrópole. O Brasil sempre foi o lugar para ser explorado. A riqueza, porém, era levada para a Europa. Não importa a destruição que ficar para trás. Hoje, o brasileiro fica rico e pode optar por Miami, mas o princípio é o mesmo.

Atraso permanente
É preciso certa coragem para vencer a vergonha histórica e admitir que o índio somos nós. Ele não desapareceu: vive, incorporado à sociedade. Não é só nome de rua ou de cidade. É o povo brasileiro.

Claro que os portugueses e negros contribuíram - e muito - para o que somos. Assim como os imigrantes alemães, italianos e japoneses que vieram depois. Mas há uma matriz da brasilidade que ainda prevalece, até porque as outras se misturaram com ela.

Prevalece porque é dura, veio de um tempo de sobrevivência num mundo hostil, com um sentido de preservação como talvez não exista em outro lugar do mundo. Serviu à ocupação de uma terra inóspita, contra povos canibais e beligerantes, e que por muito tempo foi apenas e tão somente entreposto para chegar a lugares mais rico - as Índias Orientais e, sertão adentro, as minas da Bolívia e do Peru.

É essa sanha que faz com que o Brasil tenha permanecido em atraso, por séculos em que outras nações se tornaram muito mais desenvolvidas, e de forma mais sustentável, como o Japão, a Austrália, o Canadá e os Estados Unidos, cujo impulso não tem mais que trezentos anos.

Muitos dirão que a Europa só se tornou civilizada com os recursos que trouxe das colônias na América, mas o fato é que nesse tempo os europeus deixaram de ser um conglomerado de feudos bárbaros para se tornar um modelo de democracia social porque sua sociedade mudou.

Enquanto isso, o Brasil permanece um paradigma de subdesenvolvimento, de corrupção, violência e desorganização. Ah, falar mal de si mesmo é outro traço indígena. Neste caso, espero com este texto poder servir para algo construtivo, e não apenas para nos queixarmos, assim como quem cata piolhos.

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