quinta-feira, 4 de maio de 2017

Dez coisas




Dez coisas sobre minha pessoa, só uma não é verdade. (do Facebook)

1- Meu primeiro grande trabalho para me sustentar como estudante de jornalismo e ciencias sociais foi contracenar num comercial de eletrodoméstico fazendo o papel de namorado da Giulia Gam. Mas Giulia Gam desistiu e acabei filmando com a Sandra Annenberg.

2. Apareci na TV só de cueca num comercial da Zorba, mas fiquei mais famoso falando apenas a palavra "menta" num comercial de pasta de dentes, junto com o jogador Sócrates.

3. Meu primeiro trabalho como redator foi escrever uma carta explicando ao mercado publicitário que um agente de modelos não tinha fugido com dinheiro roubado.

4. Levei sete anos para escrever meu primeiro romance, fazendo perguntas por escrito a um velho surdo.

5. Como repórter, escrevi uma matéria sobre um homem que fazia chover que foi para a primeira página de um jornal de negócios.

6. Passei um mês colocando bilhetes por baixo da porta do apartamento de um cantor que queria entrevistar, porque ele não falava com ninguém e tinha uma metralhadora, mas não tinha telefone.

7. Abracei um tigre branco e tomei banho numa lagoa no meio de dezenas de jacarés.

8. Por ser jornalista, fui julgado num tribunal indígena, numa língua que não entendia, e escapei da pena de morte.

9. Entrevistei Eike Batista sob a mira de uma pistola.

10. Roberto Civita dizia que eu "como jornalista sou um grande contador de histórias".

Respostas:

8 - É verdadeira. Fiquei 4 dias na tribo kuikuro, no Xingu, para fazer um documentário, como pode testemunhar o amigo e autor da iniciativa James Lynch. Lá o dono da festa disse que não nos conhecia e fomos a julgamento na maloca do chefe Afukaká. Quando descobriram que eu era jornalista, senti o calor da caldeirinha. A gente não entendia nada do que diziam - os membros do tribunal falavam em caribe, a língua kuikuro. Mas a gritaria, os arcos retesados e os tacapes balançando ameaçadoramente ao nosso redor eram bastante eloquentes. Naquela época havia na reserva uma equipe de cinema francesa sequestrada pelos kalapalo, o que não dava margem para otimismo. O terceiro cacique, Jacalo, nos livrou do enrosco. No final, virei uma espécie de sábio para eles - "tales" em caribe quer dizer "seiva da árvore", ou aquilo que dá a vida. Então eu já vinha com um nome anímico, muito importante para o índio. Pudemos assistir o quarup até o final, mas proibidos de filmar ou fotografar, razão pela qual existem poucos registros da viagem. Foi uma das experiências mais fortes da minha vida. Fomos embora de teco-teco, o que por si parece temerário, mas naquelas condições foi um verdadeiro alívio. Aquela experiência foi muito util para escrever A Conquista do Brasil. Entendo perfeitamente o sufoco que José de Anchieta passou como refém em Iperoig.

9 - Verdadeira. Quando eu era editor da VIP, ainda um suplemento de Exame, escrevi uma capa sobre Eike. Na época ele não falava com a imprensa. Mas, por vaidade, queria contar a história de como se tornara campeão de corrida de superlancha nos Estados Unidos, com um barco milionário, que, depois de se irritar perdendo muito, construíra para jogar spray em todos os adversários. Batizou-o de Spirit of The Amazon, homenagem à forma como ele começara sua fortuna, comprando ouro dos garimpeiros para revendê-lo. Era um negócio muito arriscado e ele passara a andar armado. Eike me recebeu no seu escritório no Flamengo. Quando saí do elevador, vi o próprio Eike, sentado à mesa de trabalho, atrás de duas paredes de vidro blindado. Tinha uma pistola sobre a mesa, virada para a porta - e seu interlocutor. Quando sentei, perguntei para que servia a arma. Ele abriu a gaveta e me mostrou grande quantidade de munição. "É por garantia", ele disse. "Vejo quem entra daqui mesmo, sentado." E manteve a pistola virada para mim sobre a mesa, durante toda a entrevista. Num outro dia, fizemos as fotos em outra de suas lanchas de corrida, na Marina da Glória. Eike ainda navegava no início de seu casamento com Luma de Oliveira, que veio receber a mim e o fotógrafo Sérgio Zallis na porta do iate clube com o filho Thor no colo - ele era ainda um bebê. Zallis e eu navegamos na água suja da baía num iate de um amigo de Eike, no alto da ponte de comando, para fotografá-lo dentro da lancha de corrida de cima para baixo. Foi a primeira entrevista de Eike na imprensa - e a única por mais de uma década.

6 - Verdadeira. O cantor é o Geraldo Vandré. A reportagem que escrevi em VIP foi referência para as duas biografias dele que saíram ano passado. Nenhum dos biógrafos conseguiu entrevistá-lo. Ele não tinha telefone. E sim, tinha uma metralhadora em casa, modelo soviético. Depois de um mês escrevendo a ele em bilhetes por baixo da porta, ele me telefonou. De um orelhão.

5 - A número 5 não é exatamente mentira, apenas contém um erro de informação. Não se tratava de um homem que fazia chover, mas que tirava magicamente água das profundezas da terra. Eu trabalhava na seção de nacional, na Gazeta Mercantil, e cobria uma seca prolongada em São Paulo que começava a afetar os negócios. Todo dia, tinha de escrever uma matéria sobre a seca. Depois de um mês, já não sabia o que fazer: entrevistara metereologistas, fizera uma reportagem sobre um teco-teco vindo do Nordeste que bombardeava nuvens...Então propus uma matéria sobre radiestesistas, que acham água debaixo da terra com uma reles varinha de salgueiro. Fui a São Caetano e entrevistei um deles, Nikolaus Frank. O outro chamava-se Herbert Radler (não tem explicação, mas os mestres da radiestesia eram húngaros). Com Nikolaus segurando uma haste e eu a outra, fiz o teste da varinha na cozinha de sua casa, onde ele dizia haver um "veio d'água". Entortava!. Entrevistei geólogos, que diziam não haver base científica para aquilo, porque a vara de salgueiro não é condutora de eletricidade - e Frank afirmava que era justamente a descarga elétrica que os deixava com as mãos entortadas e de nervos saltados. Acrescentavam que não existiam "veios d'água" debaixo da terra. O jornalista Alexandre Gambirasio, então secretário de redação, deu bola preta para a matéria. Disse que nada tinha a ver com um jornal de economia. Meio enfezado, voltei a campo. Aí descobri que empresas de alta tecnologia, em desespero, estavam contratando o homem da varinha para furar poços em suas fábricas, no meio da seca. Aí Alexandre não apenas deixou a matéria ser publicada como a colocou na primeira página do jornal. O título: "Phillips recorre ao homem da varinha".

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Anita na Record

Era um hoje já distante 1998 quando vi Gore Vidal em Ravello, na Itália. Estava na fila da agência bancária, a única que havia no velho paese amalfitano. Claro que não fui perturbá-lo. Fiquei olhando, de longe, em silêncio: o escritor ao vivo.

Eu, que ainda labutava para publicar meu primeiro romance, e mal imaginava como era viver de escrever sem precisar de um  emprego, sonhava. Ainda mais com trabalhar em casa, num lugar como aqueles: a magnífica cidade dos jardins suspensos sobre o mar, onde Vidal passava metade do ano.

Não eram os livros. Era a vida do escritor, como só podia ser.

Vidal escreveu um de meus romances favoritos; Criação.  No meio da bacia das almas que virou o mundo, talvez hoje pouca gente o conheça. Mas ele pertenceu a uma grande geração de romancistas que eram, também, grandes vendedores de livros - e verdadeiros astros da literatura e das artes. Como Gabriel Garcia Márquez (Cem Anos de Solidão). James Michener (A Fonte de Israel).

Havia entre eles alguns autores "populares", como Irving Wallace, mestre da introdução dos leitores da minha geração em assuntos eróticos, e Sidney Sheldon, que gostava de mostrar a podridão humana por trás do sucesso e da fama. Comparados com os escritores populares de hoje, eram alta literatura.

Todos tinham duas coisas em comum. Primeiro, eram grandes autores, de obras com qualidade literária e que ao mesmo tempo conseguiam ser lidos por milhões de leitores em todo o mundo, prova de que uma coisa não exclui a outra. O segundo ponto em comum: no Brasil, a maioria deles era publicada pela editora Record. Por isso, não posso deixar de rever essa galeria na minha frente, ao receber meu novo romance, Anita, com aquele mesmo selinho mágico dos autores que sempre admirei.

Há alguns anos, assisti na Flip uma entrevista ao vivo com a escritora peruana de ascendência chilena Isabel Allende - outro exemplo de sucesso de crítica e público, igualmente publicada no Brasil pela Record. Mulher admirável, dotada de ironia fina e simpatia rara, mostrava-se em pessoa como nos livros: uma sutil observadora da alma humana. Perguntaram a ela se, depois de anos a fio na mesma casa, ela trocaria de editora. Allende respondeu que a Record acreditou nela quando ainda "não era ninguém" - e seguiu acreditando. "Por quê mudaria agora?", disse.

Uma das coisas essenciais para um autor é a empatia com o editor. O mais importante, para um autor, é ter um editor que gosta do que ele faz, que acredita nele incondicionalmente, e segue com ele em sua trajetória no longo curso. Num trabalho tão solitário, com a exceção do agente, o editor é seu único interlocutor. O prazer de um editor ao fazer algo com entusiasmo é a semente das grandes parcerias e dos grandes sucessos. (Para quem não viu, recomendo vivamente o filme Gênio, com Colin Firth, exatamente sobre essa relação).

Não por acaso a Record é a maior editora do Brasil. Eles simplesmente gostam do que fazem e com quem fazem. Parece simples. E é simples. Dessa simplicidade vem tudo.

Eu há muito tempo vivo do que escrevo, nas cada vez mais longas fases da vida em que tenho passado sem emprego. Porém, ao ver Anita, um punhado de papel que sopeso nas mãos, me sinto novamente o rapazola deslumbrado que encontrou Gore Vidal na fila do banco, naquela tarde inesquecível.

Aquele jovem em viagem pela costa amalfitana ainda mora dentro de mim e me lembra que escrever não é publicar livros: é uma forma de viver. Mesmo que às vezes a um alto custo, agradeço por poder viver sem abandonar meus sonhos.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Anita e as mulheres

Uma das histórias mais impressionantes da vida de Anita Garibaldi é a da sua decisão de abandonar os filhos com desconhecidos pescadores na costa de Nice, para seguir até Roma, onde se encontrava o marido. Não apenas porque a viagem seria cheia de perigos e ela estava, na prática, indo ao encontro da guerra. Foi um desafio para mim quando escrevia "Anita", romance que está sendo lançado agora pela Editora Record. Eu não entendia exatamente aquilo: como uma mãe podia abandonar os filhos. Com desconhecidos. E para juntar-se ao marido.


Para as feministas de hoje, as pessoas que discutem o "empoderamento" da mulher, seus direitos e problemas na sociedade contemporânea, Anita é um tema muito atual.

Para ela, naquela situação, não adiantava ficar com os filhos - estar ao lado do marido, e na guerra, era mais importante. Caso perdessem a guerra, seriam todos mortos. Certamente os austríacos não deixariam vivos os filhos de Garibaldi. E ela não podia deixar as crianças com alguém conhecido, rastro que os inimigos saberiam seguir. Precisava deixá-los com alguém sem qualquer relação com a família.

Era uma decisão duríssima. Pode ser paradoxal, mas foi pensando nos filhos, em salvá-los, que ela os abandonou à própria sorte. O maior perigo, no fim das contas, era eles estarem com a mãe. O tempo mostrou que tinha razão.

Obrigado a entrar na pele dessa mulher, fiz um exercício que me levou a ver as mulheres de uma forma diferente. Entendi, a partir do exemplo de Anita, muita coisa que vi das mulheres ao longo da vida.

Quem mais que uma mãe pode estar 100% com os filhos? No entanto, é difícil definir o que é 100%.

Aprendi, olhando pelos olhos de Anita, que a ausência também pode ser uma forma de amor extremo. E que as coisas se misturam. Assim como Anita pensava nos filhos, é verdade também que ela desejava ir para a guerra. Depois de anos em Montevidéu, na maior parte dos quais ela cuidou das crianças ainda pequenas, estava cansada da vida doméstica. No Uruguai, tomara a decisão de levar os filhos ao front de guerra. Ela, tanto quanto Garibaldi, precisava da liberdade. Da luta. Independentemente das crianças.

De Nice, grávida, ela foi para a guerra pelos filhos, é verdade. Foi pelo marido. Mas acho que foi mais, no fim das contas, por si própria.

Garibaldi teve muitas mulheres, mas casou-se com Anita porque ela era como ele, capaz de levar uma vida com a sua, e não se conformava em ser de outra forma. E a entendia, porque também ele tinha o espírito indomável da liberdade. Era isso que fazia de ambos verdadeiros revolucionários. Fazia deles quem eram.

Casou-se com ela porque eram iguais.

Garibaldi é o maior heroi da história italiana, e acredito que sua trajetória é a mais impressionante, inacreditável e quase inverossímil da história universal. Mas acredito que, para ele, Anita era ainda maior.

Anita me fez pensar sobre a coragem, a maternidade e sobre o amor. Melhor, me fez sentir.  Essa é, afinal, a tarefa do romance. Não basta sabermos uma coisa. É preciso senti-la. Ao final, não estamos apenas conscientes, mas transformados por viver uma experiência .

Anita para mim ainda é uma personagem transformadora, para homens e mulheres. Escrevi Anita, escolhi Anita, porque precisava. E isso me ajudou. Saí do livro diferente do que entrei. É a aventura que proponho ao seu leitor.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Um encontro em Assis

É uma noite luminosa, não só porque as abóbadas pintadas de azul cobalto têm estrelas douradas, como pelo facho divino que entra pelas janelas do templo gótico. Caminho sobre o mármore da Basílica de São Francisco, em Assis, a Assisi dos italianos, e sinto a presença dela.

Ali ela esteve, viu aquelas estrelas idílicas; viu a tumba do santo que nasceu naquela cidade, sob a sombra da fortaleza destruída pelo povo oprimido, reconstruída pela força do Papa, no tempo em que este era também um senhor feudal, com poderes temporais como os dos reis terrenos, como jamais foi Jesus.

O santo também rebelado: contra o pai, rico tecelão, que decidiu se vestir como um asceta, em trajes de retalho, como o que vemos na "sala das relíquias"; contra a igreja, cujo sacerdócio rejeitou, para fundar sua própria ordem. O santo que criou uma legião de despossuídos para peregrinar pelo mundo propagando a fé católica. Inclusive pelo mundo muçulmano, que a igreja católica então combatia com a espada.

Pela roupa, Francisco se tornou símbolo de despojamento e simplicidade, que transformou "franciscano" em adjetivo. Pelo propósito, associou-se à paz e à fraternidade. Provavelmente por isso, passou a ser representado na companhia das pombas brancas, pássaros e animais silvestres, porque associamos a paz à natureza selvagem, não ao ser humano, concupiscente e belicoso.

Há quinze anos, minha mãe esteve diante do santo, da sua tumba de pedra sobre pedras, e do seu legado; caminhou pelas mesmas ruas, na cidade luminosa de vielas medievais, com seu templo romano, transformado em igreja. Ali ela foi feliz: entendi, ou melhor, senti o que ela sentiu diante da história. E sua identificação com aquele santo. Como ele, minha mãe acreditava nas pessoas, na capacidade de mudança, no poder transformador da bondade e do amor pelo próximo; acreditava, como Francisco, no ser humano.

Ela, professora, certamente venerou aqueles restos, assim como seu significado. Rezou pela mudança da Humanidade, ela que me ensinou no padre-nosso a pedir "pelas criancinhas"; certamente rezou por mim e pela minha mudança. 

Iluminou-se com a vista deslumbrante da cidade, tendo aos pés a colcha de retalhos verdes que se estende até as montanhas nevadas. Ali os romanos instalaram sua fortaleza, depois sua cidade, antes de ser território da fé, e da felicidade de minha mãe, contagiada por tamanha beleza.

Assisi tinha e ainda tem tudo o que ela gostava. As alamedas bem cuidadas, com vasos de flores na escada das casas; os nichos pintados nas paredes, com imagens de santos; os monges franciscanos com seus longos hábitos; os alegres grupos de estudantes circulando nos cafés e nas praças, as vielas imprecisas onde de repente avistamos o vale e o além entre paredes de pedra.

Um lugar da de elevação do homem e do espírito, onde minha mãe encontrou alegria, encontrou amizade, encontrou paz. De todo o tempo em que ela andou pela Itália, quatro meses distante, ela me falava mais de Assisi. 

Lá ficava a casinha do amigo, talvez namorado, que ela tinha puderes de definir como tal. Da casa desse homem, que não sei quem é, ela dizia ver a catedral; falava da cidade, da luz, e que era o único lugar onde ela pensou, realmente, em ficar para nunca voltar.

Hoje ela está ainda mais distante, porém, nunca me pareceu tão perto. Ando pela nave central da Basílica, rumo à saída; sinto a presença de minha mãe, como se ela tivesse me levado até ali. Ela sempre quis que eu visse a vida pelos olhos dela, e ali estava: eu via Assisi por seus olhos, e vi a vida também. Foi como uma mensagem, soprada do além. 

Não havia apenas amargura, o rancor, a dor dos tempos de briga. Era uma mensagem também de paz: dizia estar bem, e assim eu pude ver também o que havia de bom: eu sua alegria, sua boa-fé, seu amor. E isso me conforta o coração.

Minha mãe de rancores e mágoas, de brigas ferozes, tanto quanto de doçura e amor: penso que ela é que havia me levado até ali, pela mão, como mãe e professora, como sempre foi. Levou o filho invisivelmente até Assisi, para que Assisi falasse por ela. 

E eu, que nunca aceitei ver as coisas como ela via, faço em Assisi o que nunca pude, quando isso significava ser eu mesmo, reafirmar o que queria, diante de minha mãe. Em Assisi eu vejo pelos olhos dela, me rendo, baixo as armas, como numa comunhão.

Por ela, ou melhor, para entender as mulheres, as mães, sua luta, mesmo que ás vezes pareça contra os filhos, escrevi Anita, que está saindo agora nas livrarias. Minha mãe tem me falado por muitas vias: pelo olhos de Anita hoje eu vejo as mulheres, eu entendo, eu perdoo, e sou obrigado a também pedir perdão, pelos tempos de incompreensão.

Saio da Basílica chorando; não de tristeza, e sim de alegria por um encontro há muito esperado; choro de amor, de saudade, de felicidade com uma antes impossível conciliação. A cidade sob o sol radioso do inverno, tão perto do céu, me fez agradecer a vida, a vida que ela me deu; choro por estar vivo, e por ela me dar o caminho, me ensinar o caminho, até hoje. Choro por tê-la ajudado a chegar a Assisi, e de gratidão, por poder segui-la até ali.

Minha mulher me dá um abraço; ela, que é mulher, filha, e também mãe, é calorosa, sem nada perguntar. Mais tarde, quando vamos embora, no carro, ela me pergunta se ainda guardo mágoa de minha mãe. Não, respondo eu, não tenho mais por quê. 

Pena que só sabemos essas coisas quando é tarde demais; mas sei que de alguma forma converso com ela. Assisi não foi um lugar, foi um encontro. Ela está bem, eu disse, cessou a tempestade; é a única coisa que faltava para eu baixar também a guarda; agora eu posso descansar.
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terça-feira, 21 de março de 2017

Um bilionário de meia furada

Era 1986 e o bilionário americano David Rockefeller, então presidente do banco Chase Manhattan, resolveu visitar o MAM, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, durante uma passagem por São Paulo. Eu, então aos 22 anos, entusiasmado e inexperiente repórter da seção de Nacional do jornal Gazeta Mercantil, fui destacado para tentar arrancar dele uma entrevista, se tivesse a oportunidade. E tinha que ter, porque, caso contrário, estava frito. Repórteres sem sorte não duram muito no emprego.

Esperei Rockefeller na marquise do parque, perto da entrada do museu, ao lado de um verdadeiro batalhão de outros jornalistas - avisados, assim como meu jornal, pela assessoria de imprensa do museu. Lá veio Rockefeller, num terno escuro, com sua cara de americano mais que americano, os cabelos grudados à cabeça com gel, nariz afilado, passo de lorde, sem se assustar nem um pouco com os jornalistas brasileiros, ao contrário. Para minha surpresa, fui eu o único a lhe fazer perguntas, por uma razão muito simples: era também o único a arranhar alguma coisa de inglês.

Surpreso com tanta gente na sua frente, mas um único interlocutor, ele me perguntou se eu tinha aprendido a falar a língua nos Estados Unidos. Respondi que não conhecia o país: o que sabia de inglês tinha vindo de um mero curso intensivo no Cel-lep. Ele pareceu um pouco desapontado. Explicou que estava ali para ver o Museu porque sua família tinha contribuído com grande parte do acervo e queria ver como estavam as coisas. Eu, porém, não estava muito interessado em arte. Num jornal de negócios, só queria fazer perguntas sobre economia.

Enquanto conversávamos, caminhando, reparei que um fotógrafo da Folha de São Paulo ia rolando no chão, ao nosso lado, feito um cachorro amestrado. Fiz de conta que não vi. Rockefeller também. Quando o banqueiro entrou no museu, fui perguntar o que tinha dado no fotógrafo.

- Você não viu? - ele disse. - O homem está com uma meia furada! Eu tinha que fazer a foto!

Eu não pude publicar a foto - mas não deixei de publicar, no texto, aquele episódio anedótico.

Como herdeiro de um dos maiores impérios de negócios dos Estados Unidos, Rockefeller representava bem a aristocracia americana. Seu bisavô, o lendário John Rockefeller, fizera fortuna com petróleo e ganhara tanto dinheiro que no final a maior empresa do grupo, com os passar dos anos, se tornara o banco. Isso não impedia Rockefeller de conversar normalmente com um repórter brasileiro quase monoglota nem andar de meia furada.

Ontem, deu nos jornais a notícia de que David Rockefeller morreu, aos 101 anos de idade. Era o último neto vivo do fundador da companhia. Os Estados Unidos hoje são outros, os negócios também, e com ele vai embora o último remanescente de toda uma geração empresarial que eu vi passar e ajudar a construir o mundo como o vemos hoje, para o bem e para o mal. Rockefeller era amigo do secretário de Estado Henry Kissinger e a influência do seu banco, ou melhor, do capital americano, era tamanha que sua importância equivalia à de um chefe de Estado.

Assim como os homens de calibre, o jornalismo hoje em dia também tem um peso muito menor no mundo que no passado. E funciona muito diferente. É raro um repórter fazer plantão em qualquer lugar à espera de uma entrevista. Em geral o entrevistado já emite suas opiniões num blog pessoal e a imprensa digital copia aquilo e cola. Por fim, eu mudei. Já fui vezes sem conta aos Estados Unidos. Morei um ano em Nova York e conheço o país de cabo a rabo. Fui o primeiro editor da Forbes no Brasil, consultor do Discovery Channel e dirigi o Grupo Playboy na Editora Abril, o que sempre me manteve em contato direto com americanos. Jamais, porém, procurei Rockefeller, como ele me convidou a fazer. Talvez devesse ter ido vê-lo. Agora, é tarde demais.

Não sou do tipo saudosista, que vai dizer que antigamente era melhor. Mas essa pequena notícia sobre a morte de Rockefeller num canto qualquer do espaço virtual me lembra que era, pelo menos, mais divertido.


terça-feira, 7 de março de 2017

Fotografias de um mundo sem futuro

“Você é o único aqui que não precisa de máquina para fazer fotografias”, diz a Mulher sem Nome, que, desde que nos separamos e tentou me proibir na Justiça de escrever seu nome, ficou sem nome - e me acostumei.

Estamos sentados no #Harry’s Bar, de Harry #Cipriani, celebrizador do carpaccio e do Bellini, onde já bebeu #Hemingway, em belas eras. É carnaval em Veneza e, desta vez, o bar está lotado de gente que entra da rua para o salão sóbrio e quente, acotovelando-se diante do balcão, entre os garçons de meticuloso paletó branco e gravata borboleta negra.

Entre os recém chegados, que amotinam o bar ao estilo naval, estão dois cavalheiros setecentistas de chapéu tricórnio, meias brancas até o joelho e paletó de asa. No meio deles, um sujeito com vestido balão (“lutador de sumô”, identifica a Mulher sem Nome), que ocupa, sozinho, o espaço de quatro pessoas e se movimenta boiando, enquanto rebate erraticamente entre os circunstantes.

Tomamos dois #Bellinis, acompanhados de azeitonas. É bom estar aqui, respirar novamente o ar de Hemingway, e estar com a mulher que entende exatamente o que estou falando. Viemos do palácio do Doge, decorados com cenas #de guerra e Netuno entregando a #Veneza a sua cornucópia, na representação de #Tiepolo. Andamos pela ponte Dei Sospiri, saindo da pompa dos salões venezianos, até a curta e claustrofóbica passagem sobre o canal que leva às frias e escuras masmorras do velho império.   

“É o que está acontecendo hoje”, diz ​a Mulher sem Nome, quando observa que o túnel entre os salões ricamente decorados e o claustro sombrio são aqueles vinte metros suspensos sobre o rio. 

Sim, no Brasil, hoje, os políticos que expoli​​aram o país, e empresários a eles associados, todos frequentadores dos melhores salões da república, navegantes de iates e passageiros de jatinhos particulares,​ estão indo para as imundas e superlotadas cadeias brasileiras. Entre eles, até mesmo #Eike Batista, que já foi o homem mais rico do Bras​i​l, destituído de sua fortuna, da liberdade – e de sua peruca italiana.

Tempo sem futuro, sem esperança, em que avanços recentes, não só no Brasil, como no mundo, se perderam. Nos Estados Unidos, Obama, com seu programa de saúde, seu olhar de ecumenismo político sobre as nações e o mundo, deu lugar a Trump: a volta à velha truculência do selvagem capitalismo americano.

Tempos do recrudescimento da ira, catapultada pelo poder digital, pela violência religiosa, ambos filhos da intolerância. Este é um mundo em que a tecnologia avança, mas ela apenas serve para melhor armar os homens e seus antigos barbarismos.

“Senhor, fotografar aqui dentro não pode”, adverte o maître do bar, firme e gentilmente.

Tarde demais. O retrato, como diz a Mulher Sem Nome, está feito. Veneza espera lá fora – a noite azul marinho, a cor de que mais gosto, nesta cidade que combina tanto com o caleidoscópio humano dos blocos nas ruas centenárias. O cheiro do mar, o estalo das gôndolas no cais, o trajeto pelas vielas estreitas, até a Chiesa San Vidal, onde, às 20h30, iremos a um concerto de violinos para ouvir As Quatro Estações de Vivaldi.

Talvez os tempos de Hemingway fossem mais sombrios ainda, tempos de guerra, embora mesmo a guerra naquela época fosse mais romântica. Estou aqui no Harry’s Bar, há vida e livros pela frente. Estou usando barba, por causa de Garibaldi, tema do romance que está saindo do forno, e muita gente diz que estou muito Hemingway. Sei apenas que, como eles, procuro viver até o limite, com ajuda do amor – amor que eu carregava pela mão na noite de festa e regozijo.

(Redação revisada para um texto escrito em Veneza, 26 de fevereiro de 2017, sábado de carnaval.)

A Pietá, o Vaticano e um amor comovente

Quatro anos atrás, quando estivemos em #Roma juntos pela primeira vez, Dona Aranha foi barrada na porta do Vaticano.

Era verão, e estava com os braços de fora. Saímos em busca de agasalho, para atender aos padrões de compostura da catedral. Com isso, perdemos a hora – aborrecida, ela aceitou visitar o museu Vaticano, sem a catedral, por conta da imensa fila que se formava àquela hora. Dentro do museu, ficou ainda mais brava ao ver as estátuas gregas nuas, na coleção dos papas. Na sacra galeria, somente ela parecia estar toda vestida.

Desta vez, além de estarmos prevenidos, era inverno. Ela suportou tudo: sua agorafobia, no meio da multidão, aglomerada no bolsão anterior à revista, minha vertigem ao subir a espiralada escadaria do domo, o que, para um labirinto tão sensível como o meu, é sempre uma aventura.

Porém, nesse dia, enfim, entramos na igreja do Vaticano. A catedral das catedrais.

Logo na entrada, indico à direita a #Pietá. “Mas ela sempre esteve aqui? Eu não a vi em outro lugar?”, pergunta ela, candidamente.

É tão conhecida a Pietá que, assim como a #Monalisa, nos é sempre familiar. Mas a Pietá, ao vivo, só ali. É um deslumbramento e um choque. “Estou com vontade de chorar”, diz ela, se afastando.

A visão da mãe com o filho nos braços amoleceu seu coração – de filha, de mãe, de mulher. “A mãe entregou o filho ao mundo para cumprir sua missão, mas, quando ele morre, é ela que o recolhe novamente”, explicaria mais tarde no jantar, enquanto ouvíamos um violoncelista no #CampoDiFiori, em uma das mesas do restaurante #Magnolia.

Ainda no #Vaticano, assistimos à missa – cantada em latim, com um coro literalmente divino – e saímos mais leves. Sem dúvida, apesar do turismo de massa, ali ainda se pode ter um encontro solitário com #Deus. “Pela primeira vez, entrei numa igreja sem ter nada a pedir”, disse ela.

Dona Aranha é comovente. Ela me trouxe à Itália para lembrar quem sou, ou de que sou feito. Porém, o que me lembra quem sou não são os lugares onde já estive ou de que gosto. É ela.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Korian volta pela mão de um leitor

Lucas, estudante de Design da UFES (Federal do Espírito Santo), me procurou pedindo autorização para usar um livro meu, há muito desaparecido das livrarias, como seu trabalho de curso. Queria  projetar, diagramar e imprimir um livro. E escolheu um que lancei em 2005, pela antiga efitora Siciliano, hoje encontrado raramente, em um ou outro sebo. Assim surgiu uma nova versão de "Korian na Terra do Engano", que ele leu quando criança e, pelo jeito, nunca  esqueceu. Aqui vai o resultado. Acredito (e espero)  que ele passe de ano. Da minha parte,  fico sempre feliz de fazer parte da formação e inspiração de alguém - é o retorno que mais nos dá prazer e vontade de trabalhar. #thalesguaracy #korian #naterradoengano

A cidade e a memória

Eu no Diana com uma taça do vinho da casa
Há vinte anos, cheguei no começo da noite ao aeroporto de Bolonha, aluguei um carro e dormi na cidade. Vinha testemunhar o primeiro momento de Pedro Paulo Diniz dentro de um carro de Fórmula 1, na Forti Corsi, equipe emergente da categoria inferior, a Forti Corsi, que seu pai, Abílio Diniz, havia conseguido promover obtendo patrocínio da Parmalat - em troca da compra de panetones encalhados, postos à venda em seus supermercados de Portugal.

Eu ia contar aquela história para a revista VIP. Entrei em Bolonha já à noite e me hospedei no hotel Tre Vecchi, na Via della Indipendenza, importante artéria do comércio da cidade. Era então um 3 estrelas, com alguns quartos mais simples e baratos, e uma pequena área ao lado onde pude estacionar o carro.

Foi uma noite solitária - e maravilhosa. A cidade, naquele domingo à noite, se encontrava deserta. Caminhei sozinho pela via, sob as arcadas da cidade mais elegante que já vi, com suas cortinas verdes nas janelas retangulares e mouriscas,  os edifícios de tijolos vermelhos e terracota, as abóbadas pintadas como se as calçadas fossem igrejas.

Havia um único estabelecimento aberto, além  do hotel: o restaurante Diana, com sua fachada de vidro,  as paredes de lambris,  os candelabros de cristal. Foi uma surpresa encontrar justamente aquele lugar feliz, nobre e acolhedor.  Mais tarde, conversando com o editor de moda Fernando de Barros, que ia muito à Itália para ver os desfiles e outros compromissos da meca da moda masculina, descobri que ele adorava Bolonha pelo mesmo motivo que eu: sua elegância. E tinha também o Diana como um de seus lugares e restaurantes preferidos no mundo.

Dali, subi a ladeira até a Piazza Netuno, com sua grande estátua do deus do mar, e dobrei à esquerda na Piazza Maior, onde estão os mais belos edifícios da cidade. Sentei na escadaria de um pórtico para contemplar a praça  sozinho. Diante da catedral, de fachada incompleta, o silêncio tinha o peso dos séculos. E eu podia jurar, pela traição da memória, que ali, no centro daquela praça, se encontrava a estátua de Garibaldi.

Ainda estava escuro quando parti,  na madrugada,  em direção ao autódromo de Monteriggione, à beira do Adriático. Parei para um café na saída da cidade. O sol raiava sanguíneo e fresco quando vi Bolonha pela última vez.

Volto à cidade, tanto tempo depois, para entender o que eu sabia, o que não sabia e deixei de saber.  A estátua de Garibaldi, de fato, está na Indipendenza, em frente ao Tre Vecchi. A cidade continua elegante, mas agora, aos domingos, fervilha de vida. Nas praças,  nas vielas onde se come na rua as delícias locais, gente de toda parte manda para os fundos da memória o meu antigo silêncio. Eu não sabia que estaria aqui após escrever um romance sobre Garibaldi e sua mulher, Anita. Nem o quanto isso tudo significaria para mim.

O restaurante Diana continua o mesmo. A comida na via dei Peschieri Vecchi é muito mais barata e melhor. Mas continua para mim um abrigo acolhedor, apesar do maitre mal humorado, que parece escolher os clientes na porta. Dessa vez, não estou sozinho. Trago comigo a Mulher Desaparecida, que é  sempre elegante e por isso combina com Bolonha como se fosse parte do retrato na cidade.

Saio de Bolonha, terra de meus avós, mais uma vez. Levo a Mulher Desaparecida e com isso não serei eu desta vez a sentir falta da cidade: ela já não será a mesma sem nós. A história segue com suas transformações, mas daqui outros 20 anos, em 2037, quem ler isto poderá avaliar plenamente esta simples verdade.

Bolonha: a elegância se alinha como os astros




Um exílio para voltar

O que estamos fazendo aqui? Fuga do Brasil e da realidade? Volta súbita a um passado de esperança, ou esperança renovada?
Retirados de um país sem perspectiva, sinto-me novamente no exílio voluntário. Hoje, os exilados brasileiros não têm motivação política. Apenas cansaram de lutar inutilmente por um país que teima em reprovar, na prática, as previsões sobre seu futuro promissor. São previsões mais baseadas na riqueza natural do território explorado por estrangeiros e pelos próprios brasileiros que se instalaram no poder há gerações – e dele extraem a riqueza, como quem drena o seu sangue.
O Brasil hoje está perdido, mais perdido que nunca, sem uma liderança capaz de renovar a economia, restabelecer os bons valores, recolocar a coletividade nos trilhos. Dar pesrpectiva ao país e a seus habitantes honestos e trabalhadores, hoje apenas frustrados, exaustos de tanto sacrifício.
Na vida, no País, vi tanto esforço, e tantas vezes, apenas para tudo desmoronar ou ser desconstruído. O Brasil do Estado de Direito, da honestidade, da democracia, da estabilidade econômica, da justiça social, do exemplo de liderança para o mundo surge em espasmos – e volta a desaparecer. Tantos recomeços, tantos avanços supostos, e, de repente, não sabemos onde estamos.
A bolha de ilusão dos últimos anos explodiu de repente. Nada temos, a não ser o desnudamento das coisas como são. Pelo menos a justiça não se rendeu, e faz o seu trabalho. Mas mesmo com tantos indo para a cadeia na operação lava-jato, do governo e fora dele, não há razão para otimismo. O que aconteceu, em larga escala, é apenas reprodução do que acontece no Brasil desde a colonização portuguesa, como pude me conscientizar ao pesquisar para os livros A Conquista do Brasil e Desbravadores do Brasil.
O Brasil sempre foi isso: um largo território para ser espoliado por arrivistas e a elite nele incrustrada. Apropriaram-se dos recursos naturais e se acostumaram ao mais selvagem tratamento do povo, desde a eliminação simples do índio até a escravização e submissão da gente mais simples. Já era assim, e tudo indica que sempre será.
Vejo na Europa bastante pobreza. Em Roma, há muitos mendigos na rua. Não há aquela gente bem vestida de outros tempos, mulheres chiques de meias negras rendadas e cavalheiros em ternos Zegna. Os taxistas entraram em greve por causa do Uber. Volta e meia, uma passeata causa rebuliço na rua. Mas há a velha cultura. A educação. O orgulho. E respeito pelo ser humano.
Agora percebo o que viemos fazer aqui. Não é para esbravejar ou esperar que mudem os outros, o Brasil ou o mundo. No meu caso, é para voltar a ser o que eu era. Ganhar energia, para ter novamente a esperança: de uma vida melhor. De um mundo melhor. Ter de novo esperança no amor. No bem.
Vim para reencontrar o que gostei e gosto. Lembrar das minhas razões. Da minha identidade. Lembrar do desenho e das fontes de criação. Da vontade de escrever. Recuperar a crença na felicidade, na construção do futuro, nas ideias, ideais e sentimentos que me levam aos livros; não o fim, e sim o ponto de partida para a ação.
Venho não para o exílio, afinal. Ou venho para o que servem os exílios. Venho, como sempre, para voltar.

domingo, 5 de março de 2017

Anita e a vida ao extremo

O frontão da tumba de #anitagaribaldi no #gianicolo  em #Roma retrata a cena em que ela procura #Garibaldi entre os mortos da batalha de Curitibanos. Na realidade ela era prisioneira de guerra e, depois de ver degolados seus companheiros, conforme o uso dos gaúchos, pedira para procurar o marido no campo de batalha. Grávida, obteve o favor do general imperial. Ela estava certa de que Garibaldi não estava lá. E usou a oportunidade para fugir.

Outra cena do frontão traz Anita liderando um grupo de cavalaria. Há um célebre episódio em que ela, grávida, se lançou à frente sozinha contra o exército inimigo, muito superior em número, quando a coluna farroupilha buscava se juntar a Bento Gonçalves no sul. Para que ela não morresse, os farroupilhas,  que antes hesitavam no ataque, tiveram de avançar. Venceram a batalha, com pesadas perdas. Aquela  era Anita.


*
Ao terceira cena do frontão de #Anita no #gianicolo em #Roma mostra Garibaldi carregando Anita no colo. Cercado pelo inimigo, sem poder contar com abrigo, e com a mulher grávida e doente, viveu o momento mais dramático de sua vida. Garibaldi e Anita viveram a vida no extremo - o que sugere também o extremo amor que os ligou.


*

Ao voltar para a #Italia, a bordo do navio Bifronte, cujo nome ele trocou no trajeto por considerar vergonhoso, #garibaldi trouxe também sua sela, com estribos para os pés e para apoiar a lança. Hoje ela está no #museudorisorgimento, em Roma, assim como um par de calças, a boina turca e outros objetos pessoais. Levou para Itália também 60 homens da legião italiana, os "camisas vermelhas", depois de enviar na frente #Anita,  que como ele aprendeu a montar e guerrear como os gaúchos - e ganharia um lugar também na história italiana. #anitagaribaldi #romance #romancehistórico #romancebrasileiro #guerra #risorgimento

De onde saem as histórias


Daqui de Bolonha saíram meus bisavós e as histórias contadas por meu avô que deram origem ao meu primeiro #romance, #filhosdaterra. Nele eu já falava de #garibaldi, heroi de meu avô José, assim com de seu pai, Mauro.

Contava o velho José histórias do homem que desde criança mostrava sua coragem, entrava nas igrejas em pata de cavalo e revelava as atrocidades que lá se cometia: mais que unificador, o salvador da pátria. Eu herdei aquela admiração e sempre tive vontade de escrever sobre Garibaldi,  projeto que agora realizo com #anita, minha história de #anitagaribaldi,  sob a perspectiva do homem que a amou.

Reencontro #garibaldi em #Bolonha, na efígie da via della Indipendenza, e a família nos nomes pela cidade: Fiorini é uma alfaiataria elegante na Piazza Grande, Melega um mercado das delícias bolonhesas numa rua próxima. 
Caminhando, vejo gravado numa lápide que seis Fiorini e três Melega morreram por se opor ao nazi fascismo. Era para eu ter nascido aqui, se meu bisavô Mauro não tivesse sido forçado a procurar a vida no Brasil. Para cá eu volto, refazendo seus passos, e o caminho das histórias, transmitidas de pai a filho até caírem nas páginas em branco nas quais eu tento ressuscitar toda essa gente. #Anitaoromance #vemlivronovoaí

 

#Anitaoromance #vemlivronovoaí

Desenhando entre vinhedos


A Mulher desaparecida hoje corre em meio aos vinhatais de Fienil del Monte, a poucos quilômetros de Soave, onde nos hospedamos em uma casa em meio aos vinhatais. Fomos tomar café na vila pela qual passamos antes de carro, na estrada. Achamos aberto somente o bar de uma senhora afônica, chamado Deja Vu (“aqui a gente nunca entra pela primeira vez”, eu brinco).

Saímos do bar – eu na frente. Ela para por um instante, olha para mim e diz: “Você está muito style”. Poucas vezes ela me vê de casaco de couro, chapéu e cachecol. Faço cara de desdém, como sempre. E ela, com traje de ginástica, propõe ir correndo na frente para buscar o carro.

Ando sozinho pela estrada e entro na alameda de cascalhos, entre vinhedos, no vale de Ilasi, com os alpes nevados ao fundo. As parreiras estão secas e formam uma cama de galhos que sobe as encostas, pontilhadas por casas de pedra e paredes pintadas de terracota, entre janelas de madeira verde.

É a Itália de meu bisavô, que arava a terra perto daqui. (“Meu pai dizia que a terra, na Itália, é mais fácil do que no Brasil”, contava meu avô). Terra trabalhada por séculos a fio, onde piso, como se os Fiorini nunca tivessem saído daqui.

Caminho ouvindo meus passos no cascalho, em meio ao silêncio circundante. Ao lado da alameda, um ribeirão corre sobre pedras. Cruzo uma ponte sobre um rio seco, que parece levar a um mar de granito, e penso que, assim, nós (meu bisavô, o avô, minha mãe e eu) somos o rio, na parábola do tempo, de Herman Hesse, em Sidarta: a água passa, mas o rio é sempre o mesmo. Aqui estou eu, como meus antepassados, parte da correnteza que se confunde com o tempo.

Vamos ao castelo de Soave, habitado entre os anos 1000 e 1300, conquistado sucessivamente por suevos e italianos de #Veneza e #Verona. Propriedade de uma família de mecenas desde o século XIX, hoje encima galhardamente o pequeno burgo murado. Tomamos café no fim da tarde entre jovens de preto, no único bar aberto. Soave é uma cidade de turismo de fim de semana e há pouca gente e poucas lojas abertas neste final de inverno.

Vamos a Verona. Visitamos a arena romana, quando a luz da tarde já cai, pintando o céu de rosa marmóreo: homens já trabalhavam na construção do palco para as óperas, na temporada de verão.  Cruzamos a velha ponte românica sobre o Adige, visitamos a casa de Julieta, na verdade de um "Capelleti" que associaram aos Capuletto", com uma sacada iluminada sobre um pátio, como no drama de Shakespeare, e uma estátua em bronze da célebre personagem da ficção. As paredes do túnel de entrada estão cobertas de mensagens de amor. Faz frio mas ali as paredes antigas e o vaivém de gente são calorosos.

De volta a Soave, tiramos o dia seguinte para caminhar. Tomamos café ao lado da casa, diante dos vinhedos; ali eu sento numa cadeira esconjuntada para desenhar o cenário com o caderno e o pedaço de carvão que a Mulher Desaparecida me deu. Subimos a estrada de Fienil del Monte, passamos por uma bucólica igreja, com a vista para o vale. No alto do morro, duas horas de boa caminhada, um velho castelo abandonado, sombra de outros tempos, batido pelo vento e o sol límpido da tarde, é o ponto final: dali se vê todo o Vêneto, um lago lá embaixo, o sol.

Arriscamos na volta cortar a estrada sinuosa, nos perdemos, voltamos atrás. Fazemos nosso piquenique ao lado da igreja, com vista para o vale: queijo e a garrafa de vinho local que a Mulher Desaparecida toma no gargalo, entre risos, sob fachos da luz solar. Somos riso e despreocupação: não penso em outros tempos, outros dias, outras felicidades, trabalhos feitos ou por fazer. Não há passado, nem futuro, só o presente, e a mão de minha mulher, que volta e meia pelo caminho da descida encontra a minha.

Último dia em Soave. Conheço Claudio, dono do vinhedo onde nos hospedamos. Um homem de quase sessenta anos, cabelos brancos, um pouco compridos, que lhe dão o ar de uma juventude gasta. Nós o víamos ao longe, todos os dias, com um alicate de jardim na mão, podando os vinhedos. 

Pergunto como é a vida ali. A casa de Claudio é de 1800; explica que faz o que fazia seu pai. mas pode ser a última geração da família a cultivar a terra. O filho, Mattheo, estuda Direito em Verona, quer ser advogado. Ele balança a cabeça, meio frustrado. "Para que servem advogados?", ironiza. "Alguém tem de beber o vinho!", respondo. "É verdade!", ele concorda, e ri.

Nos seus 55 mil metros quadrados plantados, Claudio explica que todo setembro vende suas uvas à cooperativa: valpolicella, 12 euros o quilo, três vezes mais que soave, a uva autóctone do vale. Recebe o dinheiro dividido em cinco vezes por ano. "Dá para viver, sem luxo", diz ele.

Tem um restaurante que funciona em fins de semana, onde deixou um brasileiro cozinhando em seu lugar. "Já tenho de cuidar sozinho do vinhedo, é muito trabalho", diz. "É já  estou um pouco velho." "Mas cozinhar é uma das poucas coisas que os velhos fazem melhor", eu digo. Ele se diverte comigo.

Para ganhar um pouco mais, agora Claudio aluga 5 apartamentos na sua torre de pedra pelo airbnb. Quem cuida disso é o filho mais novo, Mattheo, que estuda Direito em Verona. Abana a cabeça. " ara que serve isso?" , lamenta, como se fosse o último a pertencer àquela terra. "Advogados são importantes", digo. "São eles que bebem o vinho!"

Claudio ri de novo. Me leva ao fundo do galpão e entrega duas garrafas de tinto sem rótulo. #Valpolicella da casa, pequena produção que ele mantém para consumo próprio.  Pergunto quanto é. "Regalo", diz ele, e sorri.

*
Perspicaz como sempre, depois de duas semanas de viagem a Mulher Desaparecida observa que eu mantenho a mala arrumada, mesmo sabendo que ficaremos alguns dias. Ela se estabelece, se espalha; eu estou sempre pronto para a partida.

Só por isso, hoje deixei os sapatos e as meias jogados de qualquer jeito. Sem dúvida, este é um dos poucos lugares do mundo onde eu realmente gostaria de ficar para sempre.



sexta-feira, 3 de março de 2017

Antes da primavera

Claudio nasceu aqui e cuida das vinhas como seu pai. Mora a  quilômetros de Soave, num casa de mais de meio século entre vinhedos que vêm passando de geração em geração. Nos três dias que ali passamos, o vimos caminhando nos vinhedos, amarrando galhos e podando as videiras com o cuidado de um japonês e seus bons aí.

Nos seus 55 mil metros quadrados plantados, cultiva  valpolicella, pela qual recebe 130 euros por 100 quilos de uva - o dobro do que recebem plantadores de soave, uva autóctone do vilarejo mais próximo, à  sombra do castelo dos Scala. Habitado entre os anos 1000 e 1300, conquistado sucessivamente por suevos e italianos de Veneza e Verona, tornou-se propriedade de uma família de mecenas desde o século XIX. Hoje, como uma coroa de pedra, encima galhardamente o pequeno burgo murado.

Claudio entrega as uvas em setembro à cooperativa e recebe o dinheiro dividido em cinco vezes por ano. "Dá para viver, sem luxo", diz ele. Tem um restaurante que funciona em fins de semana, onde deixo um brasileiro cozinhando em seu lugar. "Tenho de cuidar do vinhedo,  é muito trabalho", afirma. "E já  estou um pouco velho."
"Ma i vecchi cuccinano meglio", eu digo.

Ele ri.

Claudio aluga 5 apartamentos na sua torre de pedra pelo airbnb. Quem cuida disso é o filho mais novo, Matteo, que estuda Direito em Verona. Abana a cabeça. "Para que serve isso?" , lamenta. "Advogados são importantes", digo. "São eles que bebem o vinho!"

Claudio ri de novo. Me leva ao fundo do galpão e me entrega duas garrafas de tinto sem rótulo. Valpolicella da casa, pequena produção que ele mantém para consumo próprio.  Pergunto quanto é. "Regalo", diz ele, e sorri.

Na Itália, terra de meus avós, a generosidade inunda o dia.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Anita Já chegou

Anita, o romance. Já à venda. Agradeço a todos que puderem dar suas estrelas e deixar seus comentários nos sites de venda, além de compartilhar suas impressões sobre o livro nas redes sociais.
http://www.saraiva.com.br/anita-um-romance-sobre-a-coragem-9424111.html

https://www.amazon.com.br/s/ref=nb_sb_noss/131-8314275-6946704?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&url=search-alias%3Daps&field-keywords=anita+thales+guaracy

http://www.livrariacultura.com.br/p/livros/literatura-nacional/romances/anita-46480035

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A educação como saída para o Brasil

Certa vez, ao entrar no apartamento de minha mãe, quando ela estava já aposentada há muito tempo, encontrei sobre a mesa um exemplar do Caminho Suave - a mesma velha cartilha com que ela me ensinou a ler e escrever, aos quatro anos de idade. Perguntei o que fazia aquilo ali. "Descobri que o zelador é analfabeto", disse ela. "Estou ensinando ele a ler e escrever."

Minha mãe foi professora, na mais nobre das posições, que é a de dar as primeiras letras. Muita gente não se dá conta da importância disso. Ao cruzar com o zelador, tempos depois, ele, que nunca havia me dado atenção, me parou na porta do elevador. "Você é filho da Marlene?" - perguntou. Com a resposta positiva, tentou de todas as formas explicar como era grato a minha mãe. "Agora eu já posso saber que ônibus eu estou pegando", explicou.

Naquele resumo singelo estava tudo: aprender a ler faz o homem olhar o mundo de um jeito completamente diferente. A educação abre o mundo para o cidadão. Transforma o indivíduo e um país. Quantas vezes fomos parados na rua, eu e minha mãe, por algum aluno antigo dela, que vinha cumprimentá-la. Já adultos, não se esqueciam da professora. E vinham, gratos, dizer o quanto ela tinha sido importante para eles.

Conto isso porque sei que a experiência de ser professor hoje é muito diferente. Embora minha mãe jamais abandonasse sua vocação, poucos hoje têm coragem de encarar essa missão. Uma pesquisa recente mostrou que hoje ninguém quer ser professor no Brasil. Não é só por causa do salário. Não há alunos. Gente que queira aprender. Que veja, na educação, perspectiva de vida.

Tenho uma prima, Thais, que foi professora do ensino público. Sua escola era sitiada pelos traficantes. Alunos entravam armados na sala de aula. Intimidavam qualquer um. Minha mãe, que faleceu há oito anos, talvez lhe dissesse algo alentador. Eu não soube o que lhe dizer, quando ela desistiu.

Tenho outro primo, Rogério, diretor de uma escola pública num bairro de periferia em São Paulo. Ele continua a trabalhar. Mas vai para a escola diariamente como um trooper vai para a guerra. Não posso dividir aqui as histórias que me conta. Mas são de arrepiar.

Sem educação, o Brasil vai ficando sem saída. É preciso um poder transformador muito grande para fazer esse círculo vicioso girar novamente no bom sentido.

Minha mãe tinha fortes paixões políticas. Uma delas foi Leonel Brizola. Quando eu era editor de política e assuntos nacionais em Veja, ela me obrigou - algo que eu não podia fazer de jeito nenhum, na posição em que estava - a pedir um autógrafo em seu nome para o velho caudilho, durante a campanha presidencial de 1989.

Brizola defendia como ninguém a ideia da transformação pela educação, por conta da sua experiência pessoal, de menino pobre que devia tudo à escola. Levava isso a sério e como governador do Rio Grande do Sul e depois do Rio promoveu os maiores programas educacionais já vistos no Brasil.
Como jornalista, escrevi sobre brizola como sobre qualquer outro político. Pessoalmente, eu o achava um orador brilhante, mas muito xenófobo e politicamente meio atrasado. Agora que já não tenho minha mãe, e um pouco mais velho, acho que ambos - ela e Brizola - tinham razão. E que gente como eles - na sala de aula e na política - é que salva o mundo.



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Assassinato em Trancoso fere a estética na festa da elite

Dia 20 de janeiro passado, sexta-feira, um crime a sangue frio interrompeu a festa de São Sebastião, padroeiro de Trancoso, o arraial mais badalado do país, no litoral baiano. No Quadrado, o centro do antigo povoado de pescadores, hoje transformado em um shopping com piso de areia onde se arrasta o chinelo para restaurantes e butiques com preços da Europa, um rapaz de dezesseis anos foi morto com um tiro à queima-roupa.

A morte do rapaz em meio à festa religiosa foi um crime anunciado. Autor sabido de dois assassinatos, antes de ser morto, o rapaz não era incomodado pela Justiça. Todos ali tinham conhecimento de que o irmão de um daqueles a quem matara o havia jurado de morte. A polícia, inclusive. Em vez de prender o primeiro criminoso, porém, a inação com ares de cumplicidade deixou que o vingador o espreitasse na festa.

O Quadrado, um dia após a festa
A lógica é clara. Da mesma forma que os policiais ignoram os chics e famosos puxando o tradicional baseado nas mesinhas ao ar livre, naquela ilha de legalidade da maconha desde sua descoberta pelos hippies na década de 1980, eles fazem vista grossa também a crimes mais graves. A polícia em Trancoso não prende ninguém. Como no resto do Brasil, livra-se informalmente dos criminosos, fechando os olhos como fecha o nariz. Deixa os bandidos matarem uns aos a outros. Economiza esforço, processo, cadeia. Não existe cadeia no Quadrado. Mas há um cemitério.

Como se tratava de crime de vingança, e a vítima era também um criminoso, a Justiça local não fez muita questão de ir atrás do assassino. É algo comum no interior. No Brasil distante da metrópole, não é só a polícia que faz cara de paisagem diante do crime. A sociedade local costuma ser leniente com criminosos cujo delito entende ser legítimo. Seja pela motivação do criminoso, seja pela eliminação de algum indivíduo indesejável. É uma Justiça própria, em que certas mortes são aceitas, e até mesmo incentivadas, com a anuência tácita das autoridades policiais.

Isso não quer dizer que ninguém se importou. As principais queixas em Trancoso não foram, porém, quanto ao crime, e sim em relação à forma como aconteceu. Na noite de sábado, numa festa em uma mansão à beira-mar conhecida como Casa de Iemanjá, para a qual fui admitido com uma fita do Bonfim cor de rosa no pulso, uma senhora elegante de São Paulo, depois de dançar um pouco de acid music, queixava-se numa roda da demora na remoção do cadáver. Uma indesejável interferência na suas férias de verão.

O problema, segundo ela, não era o assassinato em si, nem o fato de o criminoso estar à solta, e sim o incômodo, que paralisou temporariamente a festa.  Achou demais ele escolher logo a concentração cheia de gente endinheirada para acertar suas contas, em vez de um beco escuro qualquer. Estava certa de que aquela intrusão imperdoável na vilinha de conto de fadas tinha sido para incomodar os bem nascidos."Foi muita ousadia", disse ela.

Na volta da festa, uma outra elegante madame num vestido azul, que deixava à mostra toda sua espinha dorsal, com o tortuoso balanço e a conversa malemolente de quem acabara de consumir drogas pesadas, alertava candidamente seus acompanhantes a caminho de uma pousada. "Aqui em Trancoso há uma realidade de tráfico de drogas da qual a gente não se dá conta", afirmava, sem lembrar que, se o assassinato do rapaz tinha algo a ver com isso, a existência do tráfico devia-se a gente que, como ela, pagava caro pelo seu produto final.

Em Trancoso, onde ainda não chegou o espírito da Lava-Jato, a Justiça segue adormecida, assim como os mais ilustres representantes da elite, que ali encontram-se de férias também da crise que assola o país e da própria onda de violência crescente, que ali fez uma incômoda e breve aparição. Dois dias após o assassinato do rapaz na festa de São Sebastião, por volta das 21 horas, o publicitário Nizan Guanaes cantava de pé os parabéns pelo aniversário de uma amiga na pizzaria Maritaca. Enquanto isso, na mesa ao lado, o dono do estabelecimento, sentado com outros clientes, queixava-se do preço dos restaurantes em São Paulo, onde dizia ir não mais que três vezes ao ano.

Quando eu observei que ali uma pizza com guaraná para dois custava mais de 300 reais, ele mudou o discurso, queixando-se dos custos, especialmente dos funcionários, "mais caros que em São Paulo". Apesar disso, gabava-se de uma vantagem. Ali, os clientes podiam pagar. "Há 26 aviões estacionados no aeroporto esta noite", disse ele, para ilustrar o tamanho do poder econômico circundante.

No paraíso de Trancoso, em que comprar um diamante usando chinelo é sinônimo de elegância social e existencial, um inglês dono de uma casa com cinco suítes no Quadrado negociava a venda do imóvel para um belga, ao preço próximo de 1 milhão de libras inglesas. Amante da caipirinha, das brasileiras e sem precisar do dinheiro, pensava em ir embora porque o Brasil, afinal, está perdendo a graça. Perguntou a mim, numa reinterpretação britânica do português, como andava a operação "Leva-Jeito". E era o único saudosista a lembrar dos antigos tempos em que Trancoso ainda era um achado hippie. "Quando cheguei aqui, quinze anos atrás, o Quadrado tinha outro espírito", dizia ele, balançando a cabeça. "Hoje, parece mais um shopping center."


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Anita e Garibaldi: a maior história de amor de todos os tempos


Eu sempre senti o desejo de escrever sobre Giuseppe e Anita Garibaldi, mas hoje já não sei bem se era mesmo um desejo ou um pressentimento. Achava sua história fascinante, e escrevê-la uma tarefa ambiciosa, já que muitos julgam conhecer bem seus personagens. O que eu tinha de novo a dizer sobre eles?

Como uma mensagem divina, às vezes temos uma visão. A minha foram aqueles mastros batendo através das janelas retangulares, na casa da infância de Garibaldi, em Nice. Ali, achei que o tinha compreendido, afinal. E mais: achei ter entendido o papel em sua vida - e vice-versa - da mulher que ele realmente amou.

A casa onde nasceu Garibaldi, na antiga Nizza dos tempos em que esse pedaço da França ainda era Itália, fica em frente ao porto. Ali Garibaldi cresceu, olhando aqueles mesmos mastros se entrechocando do lado de fora. Dormia, respirava, vivia o mar.

Foi criança de pé no chão, pelas vielas estreitas da cidade velha, no alto do morro debruçado sobre o Mediterrâneo: ele viu aquelas ruas, como eu via; ele viu o mar azul cerúleo, trazendo as pedras roliças, na orla onde hoje se perfilam lojas, restaurantes e um cassino; viu o horizonte onde céu e mar se fundem desde tempos imemoriais.

Eu creio que entendi a gênese de Garibaldi, o herói. O que ele sonhava. O que queria. E, como uma extensão dele mesmo, entendi a mulher que amou. E sua importância. Para ele, maior que a dele mesmo.

Para escrever direito um romance, como este que sai agora em abril pela Editora Record, é preciso entrar nos personagens, estar no seu tempo, viver sua vida, buscar seu sentido original e verdadeiro. Como acontece com os atores que interpretam personagens reais na TV ou no cinema, um autor precisa encarnar cada uma das pessoas a quem ele dá novamente a vida. Enquanto escrevemos, aprendemos com eles, sentimos o que sentem, agimos coerentemente com isso, e assim a história ganha cor, dimensão, realidade.

Por algum tempo, para escrever Anita, eu tive de ser Anita, e sobretudo Garibaldi, que conta, do seu ponto de vista, a história da mulher que ele conheceu como ninguém.

Hoje todo mundo estranha quando me vê de barba comprida, que deixei crescer ao longo dos últimos meses. Insconscientemente, não bastou eu tentar me sentir como Garibaldi; eu quis parecer Garibaldi, viver Garibaldi, para conhecer Anita e interpretar o que hoje, a meu ver, me parece ser a maior história de amor de todos os tempos.

Uma barba, para mim, não é apenas uma barba: tem algo de primitivo, de guerreiro, de certo espírito indomável. Durante o tempo em que escrevi o romance, eu fui Garibaldi. Passei com Anita as mais lindas - e também as mais duras horas. Não foi fácil, inclusive para quem está em volta.

Durante a semana em que escrevi a passagem mais dramática do livro, minha mulher reclamou que eu andava intragável. Disperso, no jantar só olhava para o prato, esquecido de comer. Isso é ela mesma quem conta: nem lembro. Mas sei que ela tem razão. Eu transpirava bile, dor, revolta, raiva. Fiz ela sofrer comigo. (Meu amor, perdão). Mas ela entende. E ajuda.

Enquanto eu vivia nesse mundo paralelo, criado no trânsito entre a mente e o teclado do computador, algo foi mudando em mim. Uma maior compreensão da coragem, do heroísmo, da mulher, da mãe, do casamento, do sentido da vida. Um livro não funciona, não causa seu efeito, se no processo da escrita o autor não vive tudo o que está ali.

Só assim um romance sai verdadeiro, fruto da experiência humana. O leitor só recebe o impacto de um romance se o autor passar primeiro por ele. Anita foi, para mim, como o choque contra um caminhão.

Saí de Anita diferente. Não tirei a barba. Algo do livro ficou em mim. Não sei quanto tempo vou conservá-la. Felizmente, minha mulher compreende a barba, suas implicações. Gosta, incentiva. Vive comigo as mais estranhas travessias. Sofre junto, se alegra, me conforta nas horas mais certas. Algumas vezes ela diz que eu posso ser lido como um livro. Ela sabe, sem eu dizer nada.

Garibaldi teve muita sorte. Eu também.