segunda-feira, 6 de março de 2017

A cidade e a memória

Eu no Diana com uma taça do vinho da casa
Há vinte anos, cheguei no começo da noite ao aeroporto de Bolonha, aluguei um carro e dormi na cidade. Vinha testemunhar o primeiro momento de Pedro Paulo Diniz dentro de um carro de Fórmula 1, na Forti Corsi, equipe emergente da categoria inferior, a Forti Corsi, que seu pai, Abílio Diniz, havia conseguido promover obtendo patrocínio da Parmalat - em troca da compra de panetones encalhados, postos à venda em seus supermercados de Portugal.

Eu ia contar aquela história para a revista VIP. Entrei em Bolonha já à noite e me hospedei no hotel Tre Vecchi, na Via della Indipendenza, importante artéria do comércio da cidade. Era então um 3 estrelas, com alguns quartos mais simples e baratos, e uma pequena área ao lado onde pude estacionar o carro.

Foi uma noite solitária - e maravilhosa. A cidade, naquele domingo à noite, se encontrava deserta. Caminhei sozinho pela via, sob as arcadas da cidade mais elegante que já vi, com suas cortinas verdes nas janelas retangulares e mouriscas,  os edifícios de tijolos vermelhos e terracota, as abóbadas pintadas como se as calçadas fossem igrejas.

Havia um único estabelecimento aberto, além  do hotel: o restaurante Diana, com sua fachada de vidro,  as paredes de lambris,  os candelabros de cristal. Foi uma surpresa encontrar justamente aquele lugar feliz, nobre e acolhedor.  Mais tarde, conversando com o editor de moda Fernando de Barros, que ia muito à Itália para ver os desfiles e outros compromissos da meca da moda masculina, descobri que ele adorava Bolonha pelo mesmo motivo que eu: sua elegância. E tinha também o Diana como um de seus lugares e restaurantes preferidos no mundo.

Dali, subi a ladeira até a Piazza Netuno, com sua grande estátua do deus do mar, e dobrei à esquerda na Piazza Maior, onde estão os mais belos edifícios da cidade. Sentei na escadaria de um pórtico para contemplar a praça  sozinho. Diante da catedral, de fachada incompleta, o silêncio tinha o peso dos séculos. E eu podia jurar, pela traição da memória, que ali, no centro daquela praça, se encontrava a estátua de Garibaldi.

Ainda estava escuro quando parti,  na madrugada,  em direção ao autódromo de Monteriggione, à beira do Adriático. Parei para um café na saída da cidade. O sol raiava sanguíneo e fresco quando vi Bolonha pela última vez.

Volto à cidade, tanto tempo depois, para entender o que eu sabia, o que não sabia e deixei de saber.  A estátua de Garibaldi, de fato, está na Indipendenza, em frente ao Tre Vecchi. A cidade continua elegante, mas agora, aos domingos, fervilha de vida. Nas praças,  nas vielas onde se come na rua as delícias locais, gente de toda parte manda para os fundos da memória o meu antigo silêncio. Eu não sabia que estaria aqui após escrever um romance sobre Garibaldi e sua mulher, Anita. Nem o quanto isso tudo significaria para mim.

O restaurante Diana continua o mesmo. A comida na via dei Peschieri Vecchi é muito mais barata e melhor. Mas continua para mim um abrigo acolhedor, apesar do maitre mal humorado, que parece escolher os clientes na porta. Dessa vez, não estou sozinho. Trago comigo a Mulher Desaparecida, que é  sempre elegante e por isso combina com Bolonha como se fosse parte do retrato na cidade.

Saio de Bolonha, terra de meus avós, mais uma vez. Levo a Mulher Desaparecida e com isso não serei eu desta vez a sentir falta da cidade: ela já não será a mesma sem nós. A história segue com suas transformações, mas daqui outros 20 anos, em 2037, quem ler isto poderá avaliar plenamente esta simples verdade.

Bolonha: a elegância se alinha como os astros




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