Aeroporto de Antuérpia, onde desci num Fokker a hélice que me lembrou outros tempos, vindo de Londres. Uma fila maior para passar no setor de passaportes, outra menor, e eu, verdadeiramente distraído, vou na menor, é claro, e ao chegar ao guichê apresento meu passaporte brasileiro.
"Mas o senhor não viu que aqui é para passageiros da comunidade europeia"? - pergunta o homem da polícia federal deles. "Não", digo eu, erguendo os olhos para a placa. "Não tem problema", ele diz, e abre o passaporte mesmo assim. Pergunta o que vou fazer. "Estou acompanhando minha mulher, que é jornalista, vai escrever sobre as novidades no porto da cidade. " "Fica quanto tempo?", ele quer saber. "Dois dias." "Dois dias,mas que pena! É pouco!"
Saio com o passaporte na mão, carimbado, já meio desconfiado. Nao esperava tanta receptividade. Mas em Antuérpia todos dizem que estrangeiros são bem vindos. Inclusive para ficar por lá, se quiserem, para sempre. Como o Brasil, que também recebe qualquer estrangeiro de braços abertos. Até criminosos internacionais, como o simpático Ronald Biggs, falecido assaltante de trens na Inglaterra, que no Rio era celebridade e circulava no high society.
Na porta do aeroporto, devia estar o motorista do transfer reservado pela agência, que nos levaria ao hotel. Mas não havia ninguém: o saguão estava às moscas. Depois de quase duas horas de espera e alguns telefonemas, descobrimos que ele nos esperava, sim, no aeroporto - mas em Bruxelas. Tomamos um táxi. A Bélgica ia ficando estranhamente mais parecida com o Brasil.
Entramos um táxi comum: lá, uma Mercedes refrigerada. Para nossa surpresa, o motorista, um lourão com jeito de ex-surfista, fala com a gente em português. "Mas você é de Portugal?", pergunto. "Não", diz ele. "Este país é muito chato. Então tenho uma casa em Lisboa. Toda quarta-feira aqui tem um voo de 25 euros para Lisboa. Vou para lá." O belga fala mal de seu país assim como nós. Seu sonho também é ir embora. Só não se fica em Lisboa porque lá, segundo ele, não há emprego.
O saguão do hotel Radisson é bem diante da estação monumental de trem, um verdadeiro templo dos transportes, que os belgas inauguraram em Antuérpia para que todos os que estão de passagem prestem um pouco mais de atenção ali. Há um quase comovente esforço para agradar e chamar a atenção. A cidade, embora seja dentro do continente, graças ao rio Escalda é um antigo e célebre porto, hoje ultramovimentado, como uma das grandes portas para o comércio ao norte da Europa. Mas se acostumou a ver navios, ou melhor, marinheiros, que estão sempre de passagem. Hoje, na sua população de meio milhão de habitantes, há chineses, africanos e outros migrantes, além dos belgas, que parecem minoria. Mas ainda sinto no ar o cheiro do Brasil.
"Os senhores não têm reserva", diz o moço do balcão. Repetimos nome e sobrenome: é fácil o pessoal se confundir no estrangeiro quando entram no hotel brasileiros com nome de índio. Mas não foi essa a questão. A agência, a mesma que marcara a passagem aérea e o transfer, havia feito a reserva do hotel, sim, mas para o dia anterior. "Xi", pensei. "Não tem problema", disse o moço do balcão. "Os senhores podem deixar a mala aqui e dar uma volta, daqui uma hora estará tudo resolvido." E assim aconteceu.
A Bélgica é um país pequeno. Antuérpia é uma linda cidade, meio caótica, com um porto que representa a maior parte do município, mas tem um centro adorável, de edifícios antigos, onde se anda entre bares e monumentos históricos. O povo é acolhedor e faz de tudo pelo visitante. Parece o paraíso, como o Brasil. Mas é estranha essa sensação de que ali nada dá muito certo, ainda que haja sempre um jeitinho para resolver. O jeitinho belga. Primo do jeitinho brasileiro.
Esse não é o único traço do comportamento belga que me fez sentir em casa em Antuérpia. Fomos a uma recepção na prefeitura, um prédio clássico de pé direito alto, digno de reis e rainhas. Ali se realizam tradicionalmente os casamentos da cidade, no salão onde nos recebe o chefe do porto. Uma herança de tempos ricos, em que os belgas procuravam se equiparar aos franceses em riqueza e classe, amparados no movimento do porto e na tradição reluzente da cidade como centro mundial da lapidação e comércio de diamantes.
Diante de uma plateia internacional de jornalistas, o homem do porto começa seu discurso. "Vou falar agora o que direi amanhã, na inauguração da nossa eclusa, para o nosso rei", começa ele. "O rei não manda nada, mas quem interessa ouvir o que vou falar vai estar lá também." Paro, maravilhado. Ali está, mais uma vez, a vocação do brasileiro. Que ele confirma ao desdenhar também do prefeito. Diz que faz piada com o principal mandatário local porque controla "a maior parte da cidade". E responde, claro, pela sua economia.
Vestido num paletó bem cortado, com um cavanhaque aparadíssimo, está no cargo há dez anos e no dia seguinte vai inaugurar sua grande obra, pela qual diz ter lutado toda aquela década - uma eclusa que vai facilitar o trânsito de uma importante área de docas. O porto de Antuérpia foi criado por Napoleão e ficou fechado por três séculos, devido à pressão estrangeira. Agora floresce e está livre. Mas o homem ali me parece mais Odorico Paraguaçu, o político provinciano de O Bem Amado.
Reza a lenda que o porto não surgiu com Napoleão, e sim um gigante mitológico, chamado Antigoon. Esse gigante ficaria ao lado do rio e cobrava pedágio daqueles que queriam entrar na Europa por ali. A quem se recusava a pagar, Antigoon cortava a mão, atirando-a ao rio. Até que o herói Brabo cortou a mão do próprio gigante e a jogou no Escalda. Sua estátua está diante da prefeitura de Antuérpia. É uma bela estátua, erguida sobre uma base de vinte metros de altura. Mas no pé do herói, no dia em que o vi, trazia dependurada uma calcinha, que algum gaiato deu jeito de enfiar ali.
Para quem gosta de semelhanças, não podia faltar o futebol. A Bélgica era apontada como uma das grandes favoritas à Eurocopa. Juntou um time respeitado em toda a Europa, com jogadores que atuam nos principais clubes europeus. Do goleiro Cortois ao jovem astro De Bruyne, passando pelo hábil meio-campo Hazard, o cabeludo Fellaini e o aplicado Kompany, essa é tratada como a "geração de ouro" do futebol belga. Pois de saída perdeu da desacreditada Itália e acabou desclassificada diante do inexpressivo País de Gales. Como o Brasil, a Bélgica também superestima seus dotes e talentos no futebol. E consegue fiascos como os nossos, na história recente.
A Bélgica ainda não tem um nível de corrupção monstruoso como o brasileiro, a única coisa em que parece levar desvantagem diante do Brasil. Mas não deixei de me consolar. Saí de lá aliviado. Podemos ser um país meio esquerdo, mas não somos os únicos. Claro, a Bélgica é menor que o Estado do Rio de Janeiro. Mas está provado que gerenciar um país não é questão de tamanho. Você pode administrar qualquer coisa como o Brasil. Seja do tamanho que for. E acreditar que, no final, dá certo.