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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Vitórias sobre o medo


Reflexões que servem para nossas vidas e todo um país

Quando eu tinha 36 anos, eu larguei um bom emprego, o casamento, a minha casa, tudo de uma vez. Queria escrever um romance que não saía do lugar, me sentia premido pelo que eu chamava de “maldição da classe média”, com a perspectiva de levar uma vida rotineira até confortável, mas que não estava à altura dos meus sonhos. E resolvi chutar o balde.

Eu me lembro de que naqueles dias, sozinho no meu apartamento de casado, enquanto minha ex-mulher buscava o apoio da família na sua cidade natal, comecei a pintar. Fiz uma paisagem. Achei que era apenas uma maneira de limpar a mente. Quando minha-ex-mulher retornou de viagem, e eu saí para nunca mais voltar, lembro de tê-la encontrado na garagem do prédio e, na passagem, de lhe dar de presente o quadro que eu pintara.

- Para onde você vai? – perguntou ela.

- Não sei ainda – eu disse. E completei, meio brincando, meio sério: – Morrer de fome, em algum lugar.

Ela olhou para o quadro que eu pintara. E disse:

- Você nunca vai morrer de fome.

Foi um momento especial, um último gesto de carinho, deixado num caminho que involuntariamente se tornara tão sofrido. Entendi afinal porque pintara aquele quadro: ele me lembrava do que gostava, de quem eu era, do que podia fazer sem recurso algum, começando do zero – do meu verdadeiro capital, que era eu mesmo. Sim, eu nunca vou morrer de fome, porque em tudo o que fizer, sempre haverá este valor essencial.

Mudei, deixando tudo para trás, num gesto que a muita gente pareceu insensato. Porém, foi a melhor coisa que fiz. Terminei meu livro e a literatura passou a fazer parte indistinta da minha vida. Trabalhei e ganhei mais dinheiro do que jamais pensei que iria ganhar. Recuperei a casa, o carro e todos os outros bens que deixei no passado, com larga vantagem. Sobretudo, passei a me conhecer melhor, ajustei a isto minhas escolhas e a partir daí construí uma nova família e uma maior felicidade.

Claro, eu não teria feito nada disso se tivesse medo. Medo de ficar sem emprego, casa, mulher. Medo de enfrentar o desconhecido. Medo de sofrer. Medo de mim mesmo.

Uma das coisas que sempre achei abomináveis na classe média é o medo. Medo de perder o emprego, que leva a outros medos e leva muita gente a viver pequeno, na defensiva. Medo de mudar. A média é mais conservadora das classes. Por isso é que a maioria dos ricos nasceu pobre. O pobre, que tem pouco a perder, tem menos medo de arriscar. O pobre fica mais rico que aquele que vem da classe média.

Falo de indivíduos, mas isso tem efeito sobre o próprio destino de um país, como estamos assistindo agora. Quando a crise financeira se abateu sobre o mundo, há um ano, a classe média brasileira olhou o que acontecera com a americana e se encolheu, com receio de também perder o emprego e ficar apenas com suas dívidas.

As empresas fizeram o mesmo, deixando-se governar pelo medo. Reduziram drasticamente investimentos, que são sinal de confiança no futuro. Preservaram-se, pensando pequeno.

O presidente Lula, que não veio da classe média, mas do pau-de-arara que o trouxe de Garanhuns, disse que não devíamos ter medo. Mandou o brasileiro continuar comprando, para que o medo não paralisasse a economia. E mandou que as empresas fizessem o mesmo, começando pelo exemplo das estatais, sobre as quais tem comando direto. Assim é que os empregos são garantidos.

Estava com a razão. A economia interna continuou funcionando e o Brasil, com o mercado interno imenso que possui, ainda mais agora, com a integração de muito mais gente à classe consumidora, não apenas foi um dos últimos países a serem afetados pela crise internacional como foi o primeiro a sair dela.

Volto do efeito do medo sobre a macroeconomia para o plano individual. Eu trabalhei em vários lugares, mas nunca tive medo. Medo de dizer o que penso, de tentar o que acho certo. Nunca tive medo de perder o emprego, que leva à subserviência, à vassalagem, e no fim das contas, à conivência com o erro. Nunca tive medo de crise. A crise é importante para melhorarmos; é quando quebramos padrões que não estão levando a lugar algum, para chegar a algo melhor. A crise é que move o mundo. Abre oportunidades.

Nunca tive medo porque nunca pensei nele. Nem nas suas consequências. Preferi sempre fazer as coisas sem pensar nos riscos, em ganhar ou perder – penso apenas em fazer o melhor possível. Não sei se isso é coragem, mas sempre deu certo, no fim das contas. Quem tem medo de perder, sempre acaba perdendo. Ao mesmo tempo, quem sempre acha que vai ganhar, corre sérios riscos. O melhor é viver agindo da melhor maneira, com esforço, inteligência e prazer. Estabelecer metas, mas não trabalhar por elas, e sim pelo próprio trabalho.

É o que dá mais resultado.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Realismo feito de sangue


The Strain (ed. William Morrow, U$26.99, 401 pág.)

É difícil explicar de onde vem a fascinação humana pelo sangue – e tampouco pelo medo, que transformou os filmes e livros de terror num gênero tão popular quanto as histórias de amor. É certo que esse magnetismo macabro começa na adolescência, fase em que o ser humano começa a entrar em contato com a excitação do perigo de forma imaginária – para muita gente, ela não acaba nem na vida adulta. Também é certo que não há nenhuma versão mais rica e aparentemente inesgotável no filão das histórias de terror quanto o vampirismo, fórmula que se renova com a mesma facilidade com que a clássica figura do Conde Drácula se levanta do caixão, como se nascesse de novo a cada noite.


Essa atração pelo sangue é que move Guilllermo del Toro, um aficcionado das histórias de terror que conseguiu transformar sua obsessão adolescente num negócio lucrativo como diretor de cinema e, agora, na ficção literária, também com todos os ingredientes para um futuro filme. Nascido em 1964, em Guadalajara, no México, Del Toro acaba de escrever em parceria com o escritor e roteirista de cinema americano Chuck Hogan o primeiro volume do que se anuncia como uma trilogia: The Strain (“Tensão”), que está sendo publicado nos Estados Unidos pela editora William Morrow (U$26.99, 401 pág).

Del Toro pode ser considerado um mestre do terror contemporâneo, com a ajuda que os recursos hiper-realistas da era digital podem dar aos seus filmes sedentos de sangue. Em The Strain, ele ressuscita o velho vampirismo com um enredo que tem tudo de roteiro cinematográfico e adicionado ao hiper-realismo. Esse efeito é obtido com uma riqueza de detalhes e um enquadramento tão perfeito na vida contemporânea que a multiplicação de vampiros entra quase como uma consequência natural da vida de hoje.

A partir da descoberta de que todos os passageiros de um avião pousado no aeroporto JFK, em Nova York, estão mortos – mas uns tão mortos quanto os outros -, o leitor pouco a pouco é levado a envolver-se com a história de uma ameaça em escala mundial, graças à transmissão de um virus vampirizante, cuja origem está na lenda de um misterioso conde, alto, bonzinho, meio esquerdo e misteriosamente desaparecido chamado Sardu.

Hoje a ameaça dos virus é uma grande paranóia mundial - vide a disseminação do receio da gripe suína, por acaso, vinda também do México, onde a tendência ao exagero e à mistificação parecem ser parte da índole nativa. Del Toro sabe disso – e trata de misturar esse medo contemporâneo à mais clássica e proverbial das paúras, nascida desde o tempo em que os pobres aldeões da Romênia olhavam para os sombrios castelos medievais e diziam com seus botões que algo de bom não podia sair daquelas silhuetas sinistras.

Del Toro não é um versátil especialista novato no mundo do terror. Começou sua carreira nos anos 1980 com uma empresa batizada de Necrofia, onde prestava serviços de maquiagem para filmes do gênero - trabalhou, por exemplo, para Dick Smith, de O Exorcista. Sua obstinação no tema o levou a dirigir o primeiro filme em 1993. Cronos é a história de um antiquário que adquire a eterna juventude graças a um achado entre os objetos de sua loja. O preço secreto disso, porém, é que ele se torna um vampiro.

Com Cronos, roteiro original assinado por ele mesmo, Del Toro obteve sucesso imediato. Não apenas ganhou os principais prêmios do cinema mexicano como levou s prêmios de crítica e público em Cannes e recebeu uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Catapultado pela fama em uma indústria sedenta por talentos para o entretenimento, estreou em Hollywood em 1997 com Mimic (Mutação, em português), no qual colocou Mira Sorvino como protagonista no combate de uma criatura geneticamente modificada para matar baratas e que acaba virando uma ameaça para toda Nova York.

Del Toro prosseguiu na seara com A Espinha do Diabo (2001), produção espanhola de Pedro Almodóvar , a sequência de Blade (2002), com Wesley Snipes incorporando o velho caçador de vampiros, a adaptação para o cinema da graphic novel Hellboy e o Labirinto do Fauno, sucesso de público e crítica, com três indicações ao Oscar, ambientado na Espanha franquista. Agora, prepara a filmagem de O Hobbit, romance que precedeu O Senhor dos Anéis na obra de Tolkien.

Fã de Alfred Hitchcock na infância, ele cultiva como o velho mestre uma forma de aparição em todos os seus filmes: católico praticante, em algum momento, coloca neles imagens de santos de sua coleção particular. Fiel à sua obsessão, é meticuloso e não abre mão de fazer apenas o que gosta. Já possuiu uma empresa própria, a Tequila Gang, e transita bem tanto como produtor alternativo como entre os grandes estúdios de Hollywood. “Ter opções é uma das chaves para ser desobediente”, afirma.


The Strain possui, claro, aquela esperada série de chavões que fazem a delícia dos amantes do gênero – um milionário que deseja a imortalidade a qualquer preço, Manhattan como cenário inicial da ameaça mundial, aquela mulher sedutora que uma com mordida se transforma em atração letal. Como nos romances e filmes de James Bond, as histórias de vampiro são um gênero em que o leitor sempre sabe mais ou menos o que vai encontrar – o que nesse caso é sinônimo de diversão garantida.

A importância de escrever


A escrita literária ajuda a recuperar a memória afetiva e favorece o autoconhecimento


Pessoas que sentem necessidade de escrever em forma literária frequentemente são movidas por vaidade, por achar que essa é uma boa maneira de impôr idéias e demonstrar inteligência. Outras sequer sabem a razão pela qual escrevem. É no segundo caso que escrever atinge seus propósitos mais profundos.


Muitas vezes não sabemos bem porque agimos de certa forma. São reações e atitudes instintivas, movidas por algo que não sabemos explicar, utilizando apenas os instrumentos da razão. Por vezes, a vaidade é apenas uma maneira de encobrirmos nossas verdadeiras razões. Nada faz com que nos enganemos mais com nós mesmos do que a vaidade.


Para eliminar a vaidade, é preciso admitir que escrevermos não para mostrar o quanto somos bons, mas para explorar, entender e vencer nossas fraquezas. Aí, sim, estamos preparados para olhar para a realidade de nós mesmos. E fazer alguma coisa que funciona, no sentido de nos fazer melhorar e nos sentirmos melhor.

Por trás do que parece um talento, muitas vezes está uma grande necessidade. Quando somos movidos a escrever por razões indefiníveis é porque estamos querendo, às vezes de maneira subconsciente, explorar nossos próprios sentimentos. Desvendar os mecanismos ocultos que nos fazem agir de maneira inexplicável até para nós mesmos. Descobrir os medos e influências que nos condicionam a responder de determinada maneira às circunstâncias da vida, às vezes de forma prejudicial para nós mesmos e os outros.

Buscamos aqueles elementos que nos faz responder de maneira emocional, exagerada ou inadequada a certos problemas. Que dificultam ou condicionam o relacionamento com outras pessoas. Que se tornam um incômdo ou um verdadeiro empecilho para a felicidade.

Mais do que raciocínio, escrever é um processo mental que leva à investigação dos sentimentos. Por meio da escrita, podemos refletir, organizar idéias e transmiti-las com mais clareza, o que é essencial no trabalho e na vida pessoal. Porém, o processo de escrever é também uma forma de autoconhecimento, por meio da exploração, compreensão e expressão das nossas formas de pensar e sentir.

Escrever é pensar no papel, um processo não apenas técnico como emocional. Escrever ajuda a pensar e também a reconhecer emoções. É uma forma de expressão tão útil quanto a expressão corporal ou outras formas de arte, por meio das quais hoje se faz terapia. Sobretudo quando estamos investigando nossa personalidade formada no período da primeira infância, que é ainda anterior à formação da linguagem, e portanto não pode ser lembrada e codificada pela memória racional, construída por meio de palavras.

Pode parecer contraditório, mas as palavras também nos levam a entender os sentimentos, isto é, nossa linguagem emocional. Ao contar uma história, por exemplo, podemos entender a motivação que nos leva a escrevê-la; a direção que lhe damos e a maneira como a tratamos um assunto revelam muito sobre nós mesmos e trazem descobertas muitas vezes surpreendentes.
Hoje muita gente se dedica às formas literárias, especialmente o blog, que é uma maneira de autoexpressão bastante difundida graças à internet. Com o meio eletrônico, a palavra escrita ganhou uma difusão, uma força e importância como jamais teve na história da Humanidade.


Muitas pessoas escrevem blogs para amigos ou com algum propósito informativo, outras sem mesmo saber se terão leitores. Sentem apenas a necessidade da expressão e de exploração das próprias idéias e sentimentos. E isso pode ser visitado por outras pessoas que, eventualmente, podem ter os mesmos sentimentos, angústias e preocupações.

Escrever faz bem à alma. Ninguém precisa ser profissional da escrita para escrever, e escrever bem. Assim como adolescentes escrevem di´rios, o hábito de escrever deveria ser uma prática adotada pela vida inteira, como um foro privado de reflexão. A expressão é algo que está ao alcance de todos. Incluindo a poesia, essa forma literária um pouco esquecida, e que é a que mais nos aproxima de nós mesmos, dos nossos sentimentos, e abre novas maneiras de pensar sobre as nossas emoções, de maneira ainda mais direta que o romance.

Cada vez tenho mais vontade de escrever poesia, e menos romance. Como é algo que hoje pouco se publica em livro, a poesia tem na internet um bom espaço. E não há nada melhor para ver a quantas andas o nosso coração.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

O casamento e a felicidade


Qual é a fonte do bem mais desejado pelo ser humano


Oito entre dez pessoas casadas que usam a internet, segundo recente pesquisa, frequentam sites de relacionamento. Surpresa? Creio que não.


Recentemente, li um artigo na revista da Folha, da psicanalista Luciana Saddi, que respondia a pergunta de uma leitora, alarmada com os milhares de acessos a páginas virtuais de namoro para pessoas casadas. Queria saber se “nunca estamos felizes e sempre vamos procurar diversão fora do casamento”.

Talvez Luciana devesse ter respondido algo um pouco mais confortador. O que ela fez foi devolver a dúvida à leitora.

“O sentimento de satisfação depende de fatores como voracidade, equilíbrio emocional, possibilidade de formar vínculos e capacidade de aguentar dor e perda”, escreveu ela. “Mas quem disse que a realidade não exige renúncia? Ou que o casamento torna as pessoas mais felizes e menos sozinhas?”

A busca pela felicidade parece não ter mais um caminho claro, ainda mais nos dias de hoje, o que produz certa aflição. Mas a vida não tem qualquer obrigação de nos apresentar respostas claras e definitivas para absolutamente nada.

Conforme nos lembra o falecido psicanalista americano Anthony Storr, autor do ensaio Solitute – A Return to The Self, a idéia de que o casamento é a principal fonte da felicidade é relativamente recente na História da Humanidade. O casamento monogâmico não era tão importante para os gregos, os romanos ou em qualquer outra sociedade pré-vitoriana.

Nem mesmo na Bíblia há uma fórmula única. No Gênesis, Adão e Eva são criados uma para o outro, modelo para a união monogâmica. Moisés, que escreveu as tábuas da lei, personagem fundamental não apenas da tradição judaica como católica e também muçulmana, era polígamo. Pelo que dizem as escrituras, Jesus muito provavelmente er aum asceta, muito embora os revisionistas e alguns ficcnionistas contemporâneos hoje tentem relacioná-lo com Maria Madalena.

No passado, ser feliz podia significar realização no trabalho, sucesso com a criação dos filhos, afeição familiar, relações de amizade, expressão em forma de arte. Cita pessoas que nunca se casaram e se consideravam muito felizes, para dizer que um indivíduo pode estar sozinho, sem ser necessariamente solitário ou infeliz.

A idéia de que o casamento monogâmico é essencial para a felicidade vem dos Século XVIII, com forte influência moralista da igreja católica. As mudanças de comportamento dos anos 1960 que levaram à aprovação da lei do divórcio na maioria dos países ocidentais, porém, mudou esse cenário.

Com a lei, a sociedade assume que a liberdade individual e o direito à busca da felicidade são valores superiores ao contrato do casamento. Esse princípio abriu as portas para uma era de maior individualismo, hoje capitalizada pela internet, com a possibilidade tecnológica de acesso a informação e contatos que favorecem também a liberdade.

A felicidade é algo mais amplo e complexo do que ser feliz no casamento. E uma coisa não depende exclusivamente da outra. A felicidade pode advir em grande parte do relacionamento amoroso, se isto for importante para o indivíduo. Ela, porém, não tem necessariamente ligação com o casamento ou qualquer outra maneira do indivíduo adaptar-se à convivência. O importante é conviver sem perder a ligação amorosa, o que para muitos não se dá necessariamente pela coabitação ou os moldes da família convencional.

No passado, o modelo da família católica servia à estabilidade da instituição do casamento, também como pressuposto de que a segurança produzida por esse ambiente favorecia o suporte e o amor necessários à criação dos filhos. É verdade que as crianças precisam de segurança e afeto, mas hoje não se sabe exatamente se o casamento é o modelo exclusivo pelo qual elas se desenvolvem de uma boa forma, nem aquele com o qual se garante a harmonia doméstica.

Há hoje muitos filhos de pais separados que acreditam terem ganho experiência, facilidade de convivência, novas formas de inteligência e até mesmo mais e melhores relações afetivas por compartilharem de mais de uma família. Não existem regras gerais nesse departamento, até porque o que pode ser ruim para um é bom para outro.

O caminho da felicidade é resultado de um conjunto de fatores do qual a vida amorosa é uma parte importante, mas não a única. E depositar todas as esperanças de felicidade em uma coisa só, seja ela qual for, faz com que a vida seja vivida de maneira parcial. O que, no final, resultará sempre em alguma forma de insatisfação.

Quando nos sentimos incompletos, a tendência do ser humano será sempre olhar para o lado – ou, como acontece na internet, para a porta da esperança virtual onde se imagina que poderá sempre surgir algo capaz de preeencher o vazio.

terça-feira, 30 de junho de 2009

O coelho cor de rosa


O amor que damos não é o amor que os outros recebem

Hoje Guinho estava queixoso no café da manhã. Fazendo biquinho, no colo da mãe, reclamava:
- O meu coelho cor de rosa fugiu!

Guinho tem dois anos e meio. Estava realmente sentido, com aqueles olhos meiguinhos e voz chorosa. A mãe observou:

- Mas, filho, você não tem nenhum coelho cor de rosa!
- Tenho, sim! – reclamou ele, fazendo bico. – Ele estava sentado aqui na cadeira da cozinha. Eu fui ablaçar ele... E ele fugiu de mim!

Maíde, a babá, percebeu que ele havia tido um sonho. Crianças de dois anos e meio sonham. Coisas que para ela têm algum significado. Mais do que isso, coisas que para elas também são reais. Para Guinho, sonho não tem diferença de lembrança. Para ele, o sonho realmente aconteceu.

Talvez Guinho, que vive num mundo meio de sonho, tenha transferido para sua vida no sono algo que também acontece com ele durante o dia. Os cachorros, por exemplo, que ele adora, fogem dele como o diabo da cruz. Um bom exemplo é o Aramis.
Na casa de minha irmã, onde vive o cachorro que foi de minha mãe, Guinho e o priminho Theo vivem atrás o bichinho, um cocker spaniel sossegadão, que vive arrastando as orelhas. Querem abraçá-lo, beijá-lo, enchê-lo da carinhos. Mas isso significa também pular em cima dele, puxar-lhe o rabo, com uma insistência tão massacrante que Aramis, prevenido, trata de fugir deles quando se aproximam.

Guinho quer dar seu amor ao bichinho, mas é um amor sufocante. E não entende Aramis: se sua intenção é das melhores (carinho), por quê o bicho o rejeita, fugindo dessa maneira?
Cedo Guinho descobriu algo de que muitos de nós nem mais tarde fazemos conta: o amor que damos não é o amor que os outros recebem. Por vezes, empregamos os nossos melhores esforços, e de maneira sincera. Acreditamos amar muito. Porém, esse amor muitas vezes não supre as necessidades dos outros. O que fazemos não é o que os outros precisam. Pior, há amores que incomodam, invadem, machucam. Fazem com que os outros se afastem de nós.
Todo ser amado tem seus momentos de coelho cor de rosa. E todo aquele que ama tem momentos como o de Guinho, porque, como em seu sonho, de alguma forma se sente rejeitado no amor, sobretudo quando o ente querido se afasta. O amado se sente incompreeendido, e quem ama também. Quando o coelho cor de rosa foge, nos sentimos duas vezes mais tristes: pela incompreensão e pelo abandono.

O amor é o sentimento essencial do ser humano, porque é o que nos dá segurança desde a infância e faz com que enfrentemos o mundo. Crianças pequenas que temem a ausência dos pais ou sofrem com a falta de amor tendem a se tornar muito sensíveis. Ela amadurecem quando aprendem que os pais são pessoas diferenets e conseguem se sentir seguras mesmo quando elas estão longe ou não têm o seu amparo.

Com o tempo, substituímos a presença dos pais por uma rpesença simbólica, como se eles estivessem dentro de nós. Dependemos menos dos outros ao introjetarmos esse amor. É uma preparação necessária, não apenas para lidar com as frutrações da vida, sobretudo as amorosos, como a própria perda futura dos entes queridos. Eu, que perdi minha mãe há seis meses, gosto de pensar que de alguma forma ela está comigo; é um sentimento comfortador.
Existem crianças mais sensíveis, que não conseguem se livrar nunca desse sentimento de perda. Não conseguem proteger a si mesmas dos sentimentos de perda, rejeição, abandono. Cada vez que são rejeitadas pelo coelho rosa, sentem-se solitárias, vazias, abandonadas. No limite, transformam-se em adultos fronteiriços, com tendência para a depressão e até mesmo o suicídio.

Como os artistas em geral, romancistas são normalmente mais sensíveis. Aumentamos um pouco os sentimentos, ou estamos menos protegidos deles do que outras pessoas que lidam com a vida de maneira mais automática. Refletimos mais porque sentimos mais e tentamos investigar as origens do que nos afeta, porque nos afeta muito. Muitos romancistas fazem do próprio trabalho não apenas entretenimento para os outros, como uma maneira de lidar com seus próprios sentimentos.


Meu filho recebe amor, tem a presença da família e é muito bem resolvido. Mas não está imune à regra geral de que o amor que damos não é o que os outros recebem. O que escrevemos não é também exatamente aquilo que os outros lêem; o ponto de vista de cada um faz com que os outros reinterpretem nossas intenções, sentimentos e até mesmo nossas razões segundo sua própria perspectiva.


Intuitivamente, Guinho descobriu que, por mais esforço que façamos para nos aproximar dos outros, eles não nos verão como nós mesmos nos vemos, mas somente como o que representamos para eles. E, na medida em que nossas necessidades, desejos e vontades interferem na vida alheia, cada indivíduo ao nosso redor se reserva o direito de se proteger de nós de alguma forma – até mesmo do amor.


É essa a sensação da solidão inevitável que carregamos, uns melhor, outros nem tanto, ao longo de toda a vida.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Os bons princípios da redação


Escrever bem nunca foi tão importante como agora

O crescimento da internet como meio de informação e também de manifestação do indivíduo aumentou a necessidade e a oportunidade de ler e, sobretudo, de escrever. Com isso, aumentou também muito o interesse pela prática da boa redação. Escrever é importante em nossa vida pessoal como um meio de plena expressão. E é fundamental no exercício de qualquer profissão, sobretudo o jornalismo.


Não importa se alimentamos um blog, redigimos um e-mail, fazemos um paper para uma reunião de diretoria ou escrevemos um texto para internet, jornal ou revista. Os princípios de uma boa redação são sempre os mesmos, não importa o tamanho e a finalidade do texto ou onde ele será veiculado.

Escrever bem não é meramente uma questão técnica. Implica não só no trabalho de redigir o texto, como tudo o que está por trás dessa tarefa - da qualidade do conteúdo à maneira como se conquista a atenção e o interesse do leitor.

Não é possível se transferir a alguém o dom ou a faculdade de escrever bem. O que se pode mostrar é a maneira mais correta de escrever. O tempo, a dedicação e o talento individual completam o trabalho.

Mesmo para aqueles que não desejam escrever profissionalmente, é possível escrever textos gramaticalmente corretos, interessantes do ponto de vista estilístico e importantes pelo seu conteúdo. De um simples bilhete a uma tese de doutorado, o essencial para superar as dificuldades normais da pessoa que escreve é encontrar o foco do texto, desenvolvê-lo e terminá-lo de maneira memorável.

Na imprensa, o esforço cotidiano de escrever não chega ao seu melhor sem outro ingrediente: um certo idealismo, tanto mais necessário quanto menos se dissemina no mundo contemporâneo. É preciso estimular de modo permanente um jornalismo no qual não se abandona os ideais da imprensa diante das pressões inerentes à atividade. Deve-se com o mesmo empenho sustentar a qualidade diante da inércia e da rotina.

A busca pela informação correta e sua transmissão de forma transparente pede um trabalho diligente e incansável. A credibilidade, princípio fundamental da independência jornalística, é o maior patrimônio de um veículo de comunicação e seus profissionais. Para construí-la e manter a confiança do público é necessária uma série de pequenas ações cotidianas ao longo do tempo. Para perdê-la, basta um único deslize.

Essa escola, que vem na tradição da grande imprensa livre mundial, sobretudo depois do seu período de profissionalização, finca-se na idéia de que o patrão do veículo de comunicação é o leitor. É para ele que trabalham o jornalista e o editor. Na busca pelo serviço prestado a cada indíviduo, há também um compromisso permanente com a sociedade democrática.

Mesmo para aqueles que não desejam seguir a carreira jornalística, é bom ter claro estes princípios, ainda mais agora, em que não se exige mais o diploma específico para o exercício do jornalismo, numa decisão infeliz do Supremo Tribunal Federal.

Talvez a disseminação desses bons princípios ajude a nortear aqueles que desejam se aventurar no mundo da informação qualificada. E ganhar leitores com o mesmo receituário com que a imprensa tradicional fez sua História: uma leitura clara, instigante, com conteúdo importante, surpreendente e de credibilidade.

terça-feira, 16 de junho de 2009

O valor dos romances


Milton Hatoum no Autores e Ideias

Diante da platéia no auditório envidraçado onde uma vez por mês acontece o Autores e Ideias, entrevista com a participação do público que conduzo da Livraria da Vila do Shopping Cidade Jardim, o romancista Milton Hatoum não perdeu sua fleuma aristocrática. O manauara de 57 anos, com dois prêmios Jabuti na bagagem, é uma estrela do romance brasileiro há já uma década. Nesse período, acostumou-se a platéias, como me contara pouco antes, no café da livraria, em uma conversa preliminar.


O Autores e Ideias tem a finalidade de dar destaque para quem tem algo importante a dizer no Brasil hoje – e Hatoum é uma dessas pessoas. Notabilizado por seus romances, pouca gente ainda conhece sua vida, o trabalho por trás de sua obra e suas idéias, algumas delas apenas permeadas em seus livros. Como os poemas que ele gosta de disfarçar dentro de sua prosa. “O romancista é um poeta frustrado”, diz.


A literatura de Hatoum é colorida pelas memórias de descendente de libanês no universo da antiga Manaus em seus tempos provincianos. A isso, ele agrega um pouco das lendas indígenas, mitologia que empresta um certo toque mágico ao cotidiano, como no mais recente de seus romances, Orfãos do Eldorado, escrito originalmente para uma editora inglesa dentro de uma coleção dedicadas a mitos.


Os romances de Hatoum parecem monotemáticos, talvez fruto de uma obsessão. Seu desfecho às vezes pode ser previsível e a trama pouco engenhosa ou truncada, como em Cinzas do Norte, em que a fluidez da leitura é interrompida pelas memórias do Tio Ran, um personagem também recorrente em sua obra. Hatoum enfrenta bem a crítica. Acredita que cada leitor vê suas qualidades e defeitos de uma maneira muito particular – o que desagrada a uns, agrada a outros. E tem um trunfo inquestionável. Muito mais que na trama, é na maneira como ele escreve que reside seu magnetismo. “O que mais atrai num romance é a linguagem”, acredita.


Hatoum trabalha numa edícula, nos fundos do gabinete de um dentista. O barulho da broca diante de bocas abertas lhe dá a certeza aliviadora de que há gente no mundo em pior situação que a do romancista quando escreve. “Escrever não me faz sofrer”, disse ele. “Dá trabalho, nos leva ao limite, mas é o que eu sempre quis fazer na vida. Eu sofro, isto sim, quando vejo uma criança pedindo dinheiro no sinal de trânsito.”


Ex-professor de literatura em Manaus, que morou quatro anos na França e chegou a ter a “pretensão” de escrever em francês, Hatoum é um crítico da vida contemporânea, sobretudo das grandes urbes que se transformaram em imensas zonas de pobreza. A começar pela sua cidade natal, hoje bastante diferente da Manaus de sua infância e que agora existe somente na sua literatura. Hatoum alinha-se entre os céticos, desanimado com os rumos da “selvageria” da qual para ele não escapam sequer os países europeus, mas não deixa de fazer o seu papel. “Para mim, o mais importante nos livros são os valores que neles expressamos”, afirma.


Hatoum ganhou um prêmio Jabuti logo em seu romance de estréia, Relato de Um Certo Oriente, que no entanto vendeu “apenas 3.000 exemplares” – número que, no Brasil, já faz qualquer romance ser considerado um sucesso, embora tal cifra possa ser considerada uma vergonha num país com 200 milhões de habitantes, com mais de 150 milhões de leitores potenciais. Teve melhor resultado com seu segundo romance, Dois Irmãos, que além de premiado caiu no gosto dos professores de literatura nas universidades e nos “círculos de pessoas que gostam de ficção”, combinação à qual ele atribui sua independência financeira como profissional da literatura, com mais de 200.000 livros vendidos.


Órfãos do Eldorado é um romance curto, “quase uma novela”, que contém todos os elementos de sua prosa – incluindo uma trama que sempre leva a uma teia um tanto inexplicável de amores e relações dramatizadas pela consanguinidade. “A família não é um tema proposital em minha obra, ela está em toda a literatura”, afirma. Hatoum por vezes parece a negação de si mesmo. Afirma que em determinada passagem de determinado romance emocionou-se porque fora inspirada na vida de seu pai. Em outro momento, diz que nenhum de seus personagens tem relação com sua família ou mesmos pessoas reais.


É possível que, como muitos escritores, nem ele saiba ao certo de onde vem sua literatura – a motivação em geral está em razões ocultas que nem o exercício psicanalítico da escrita consegue por vezes desvendar. Isso explica também o processo tortuoso de escrever vários livros ao mesmo tempo (“ao menos um deles acaba dando certo”, explica). Hatoum joga fora boa parte do escreve, num esforço de garimpagem, e já atrasou o lançamento de dois livros por mais de dez meses para atender recomendações dos editores, que sempre “melhoraram” o que ele faz. “Sou flexível, aceito sugestões, essa é uma de minhas qualidades”, explica.


Quando jovem, Hatoum morava na mesma pensão do cantor e compositor Arrigo Barnabé – ele vindo do Amazonas, Barnabé do Paraná. Trocavam confidências, dizendo um ao outro o que desejariam ser no futuro: um escritor, o outro músico. Hatoum publicou seu primeiro romance aos 47 anos, prova de como é difícil ingressar no ramo – e de como a maturidade pode fazer bem à literatura. Barnabé teve seus tempos de sucesso junto ao público universitário nos anos 1980, que fizeram dele um autor cult.


Ninguém sabe ao certo o que leva à concretização dos nossos sonhos – mesmo quando eles já estão realizados. “Confesso que não sei extamente o que deu tão certo nos meus livros”, diz Hatoum. Ele é mais uma prova de que a literatura não serve como busca pelo sucesso ou por dinheiro, seja no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. É muito mais a realização de uma promessa de fidelidade àquillo que desejamos fazer de nossa vida, desde a juventude. E de que, às vezes, isso também pode ser coroado com algo mais.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Pensar é perigoso


Reflexos na vida cotidiana desse hábito revolucionário


Quando eu levantava algumas dúvidas sobre a vida e questionava nosso relacionamento, minha primeira mulher olhava para mim, com seus olhos cinzentos, e dizia, com uma ponta de desdém: “Você pensa demais”.


Levei algum tempo para entender o que ela queria dizer. Só hoje percebo melhor o alcance e as consequências do fato de que minha vida é pensar. Pensar, mas não apenas pensar: pensar para a ação.

Por pensar demais, deixei para trás uma porção de simplificações – a começar pelas da minha ex-mulher. Hoje entendo que por trás da crítica ao intelectual, interpretado como um mero e inútil criador de caso, havia algo mais. Melhor do que eu, minha ex-mulher intuía algo bem concreto. Pensar é perigoso. No fundo, creio é que ela tinha medo disso.

Pensar é perigoso porque o indivíduo que pensa se abre a possibilidades. Analisa, compara, estuda mudanças, novos caminhos. E é mais perigoso ainda quando quem pensa levar a sério o resultado do seu pensamento, transformando idéias e sentimentos em atitudes muito práticas.


Quem pensa - e age em função dessa força inquietante - é uma perturbação para quem precisa de segurança, sobretudo aqueles que dependem ou estão ligados a nós de forma permanente, como supostamente deve ser o casamento. Pensar é um hábito revolucionário. É o princípio das revoluções, das políticas às mais pessoais.

Um romancista é um pensador, um indivíduo sempre nômade, que analisa e explora possibilidades. Na pele de seus personagens, fala coisas diferentes do que diria na vida normal, passa por outras experiências e testa suas consequências num empirismo imaginário.

Não se trata apenas de fantasia. A ficção é invenção, mas a emoção colocada nos personagens é real, assim como os problemas da vida que os envolvem. Como um ator que se transforma em assassino, estuprador, vigarista, ou travesti, o romancista vive diversas vidas e procura encontrar o que há dentro dele algo que torne verossímil a sua criação.

Essa experiência pode ser perturbadora, não apenas para quem cria, como para aqueles à sua volta. A maioria das pessoas não quer ver destruído o mundo organizado a duras penas no qual elas se sentem mais seguras, confortáveis e por vezes mais felizes. A idéia de que é melhor não saber para nao ter que mudar é um padrão de muita gente.

Para os mais conservadores, a sensação é de que nunca se conhece realmente o indivíduo que pensa. Porque quem pensa pode sempre mudar, quebrar regras, subverter os padrões. Não se sabe exatamente em que mundo ele está ou a que tipo de ação suas divagações podem levar. O pensador é uma encarnação de variáveis.

Pensar – isto é, admitir mudanças – não significa que faremos coisas contra o bom senso, que mudaremos mesmo, ou que estaremos em mudança permanente. Mas pensar, em si, é uma forma de trair, pela simples aceitação das alternativas.

Existe uma diferença entre pensar e fazer, ou pensar e ser. Não há nada melhor do que pensar e não mudar, o que seria uma escolha mais consciente pela estabilidade, mas a natureza do pensador assusta, assim como onde seu pensamento pode parar.

Um exemplo. Há pessoas que leram meus romances e já me disseram coisas do tipo: “Como você pôde pensar naquilo, é tão cruel!” Como se alguém capaz de pensar em uma situação onde a crueldade se manifesta de maneira chocante faça parte de quem a criou.

Romancistas tiram da realidade a maior parte das coisas que não conhecem, não sentem ou não lhe pertencem, como um empréstimo. Eles não são seus personagens, elementos construídos para fazer sentido em si mesmos. Porém, a partir do momento em que aquilo foi recriado dentro de um livro, passou também a pertencer ao seu criador. E a simples ligação da criatura com seu criador, o fato de um ter saído do outro, já é suficiente para assustar outras pessoas.

A mente inquisitiva não pode ser vista apenas como uma ameaça que carregamos ao entes queridos e pessoas próximas. A mudança é também o que nos faz melhorar, criar coisas boas e atrair para as pessoas de que gostamos algo melhor – inclusive de nós mesmos.

Por trás das boas mudanças do mundo, desde as revoluções libertárias aos grandes engenhos, há uma história do pensamento e de pensadores que utilizaram sua inquietação permanente para fazer o mundo melhor. Isso funciona também no microcosmo onde vivemos. Um pensador procura, antes de tudo, se tornar um ser humano melhor. E isso faz com que todos os que estão à sua volta, de uma forma ou outra, acabem por se beneficiar.


Quem não aceita o pensamento escamoteia o fato de que a vida é mutante. E, na tentativa conservadora ou amedrontada de congelar no tempo, renuncia à vida.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Vastas emoções


Doutor Jivago lembra do que são feitos os grandes romances
Revi na TV, domingo passado, o grande Doutor Jivago, clássico de Pasternak, tão belamente transposto para o cinema - a história de amor impossível protagonizada por um médico e poeta tragado pela revolução bolchevique na Rússia. Para mim, a mais bela cena do filme é a noite que ele e Lara passam em uma velha dacha, nos campos cobertos de neve da estepe russa, feita de amor pleno, sem saber que em breve serão separados para sempre.


No meio da madrugada, ele se levanta, acordado pelo uivo dos lobos; sai na noite gelada e espanta os animais, breve metáfora de alguém que decide esquecer o medo e as ameaças. A luz de uma vela tremula quando ele entra em casa e senta-se à mesma mesa onde aprendeu a escrever na infância. Atravessa a noite escrevendo poemas num país que condenou a poesia em nome de uma ideologia onde não se permite mais a individualidade. Sim, na Rússia revolucionária, a poesia era perseguida como a feitiçaria pela Inquisição.


Pela manhã, ao acordar, Lara encontra sobre a mesa aqueles papéis. Ela os lê e diz que o retrato pintado por ele é melhor do que ela; ele reafirma o que escreveu, lendo o nome de Lara, que é também o título do poema; é como ele a vê. Naquele mesmo dia eles voltarão a se separar, ameaçados pela chegada de revolucionários, e Lara levará no ventre um bebê em gestação; deixa para trás o amor de sua vida, salva por outro homem, aquele a quem mais odeia.


Eles desaparecem para sempre, mas seu amor tumultuado, entrecortado, proibido e pecador sobrevive nos poemas que, apesar da perseguição, resistem graças à paixão do povo russo pelo verso. A poesia sobrevive ao comunismo, assim como a religião. Está também na balalaica levada às costas pela moça que jamais conheceu os pais, herança que somente o tio compreende plenamente.


Isto, mais aquela música que quase leva a gente a chorar, ainda faz de doutor Jivago um grande romance em todos os sentidos; vi o filme e pensei que sempre quis escrever grandes histórias, romances que trouxessem estas vastas emoções, abarcassem a vida, atravessassem ao mesmo tempo o Tudo e o Nada. Doutor Jivago é algo assim, não uma reprodução da vida, mas o mais próximo que se pode chegar disso, e da forma mais sublime.