Os desafios da educação na era digital
As crianças hoje querem tudo rápido, e para ontem.
André, 6 anos, no carro.
- Pai, quero água.
- Não tem.
- Quero água.
- Não tem, por duas razões. Uma, porque não tem. A segunda, porque não é assim que se pede.
- Por favor, você podia me dar água?
- Filho, você resolveu a segunda razão, mas ainda tem a primeira. Não tem água. Espere até chegarmos em casa.
*
Vão dizer: ah, André tem apenas seis anos.
Vejamos Lucca, 12 anos, no mesmo dia, dentro de outro carro, indo de São Paulo a São José.
- Mãe, estou com sede.
(Silêncio da mãe).
- Estou com sede!
- O que você acha que eu posso fazer a respeito?
Lucca pensa um pouco.
- Poderia me informar quanto tempo a gente ainda leva para chegar em casa?
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A indústria da informação está acostumando toda uma geração a ter tudo instantaneamente, ao toque de um botão.
É uma geração completamente diferente da de meus avós, meus pais e da minha própria geração. Meus avós vinham da Segunda Guerra, um tempo em que era importante administrar a escassez. Não ter as coisas era normal. E era preciso estar preparado para a falta das coisas.
Eu não vi o tempo da guerra mundial, mas conheci a escassez de outros tempos e outras guerras. Quando era criança, a TV era preto e branco e tinha apenas 4 canais. Custava a ligar e formava a primeira imagem só depois que esquentavam as válvulas. Não havia produto importado no Brasil. Não se podia escolher muita coisa. Nem mesmo os governantes, pois reinavam os prepostos da ditadura militar em todas as esferas: municipal, estadual e federal. Meu pai, que vinha da esquerda, quando nasci perdera o emprego, tinha amigos presos, naquele tempo tudo podia acontecer.
A economia era quase soviética, resultado do nacionalismo militarista que fechara xenofobicamente as portas do Brasil para qualquer coisa que viesse de fora. Andar de avião era raro e caríssimo. Minha mãe coibia o uso do telefone, que era para conversas rápidas e de emergência. Telefone custava caro e a ligação internacional, além de caríssima, era difícil.
Na Casa Verde, onde morei parte da minha infância, com frequência faltava água. Por isso, no quintal da minha casa, havia um alçapão que dava para um reservatório de emergência. No verão, eu gostava de me enfiar pelo buraco e ficar lá dentro me refrescando.
Era preciso estar preparado para a privação. Na verdade, eu nem via essa situação como de privação. Eu tive de aprender a esperar. Até mesmo para beber água.
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É preciso ser duro para sobreviver. Muitas vezes tentei demonstrar ao João, hoje com 16 anos, que nem sempre o caminho mais fácil é o melhor. Como no videogame, para ele o melhor era sempre cortar caminho, trapacear, usar todos os recursos disponíveis pelo jogo para ganhar. Não entendia por que eu não fazia o mesmo. E eu queria ganhar sem apelar para os truques que o jogo proporcionava.
Muitas vezes pensei que era inútil tentar lhe mostrar o valor do trabalho, da necessidade do empenho, e que a maneira como fazemos as coisas é tão importante quanto o resultado. Acho que ele nunca me compreendeu muito bem. Talvez, quando ficar mais velho e tiver outras experiências.
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Qual é a validde de sabermos fazer na caneta as operações matemáticas se a calculadora faz isso por nós? Quando eu era estudante, usar a calculadora em sala de aula era proibido. Creio que isto era para estimular o raciocínio matemático, mas esse ganho abstrato parece coisa do passado. Hoje as crianças usam não apenas a calculadora como todas as informações disponíveis na internet. Isso não quer dizer que não exercitem o pensamento. Ele é estimulado por questões mais avançadas do que fazer de cabeça as quatro operações. As crianças já não partem mais de questões elementares. Já começam mais avançadas, embora isso me faça às vezes pensar que lhes faltam algumas noções elementares.
Hoje muitos alunos tendem a estar mais bem informados que o professor em um ou outro assunto. Podem questioná-lo. Qual o sentido então da educação hoje? Estaremos formando uma geração melhor?
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Na medida em que ficamos mais velhos, tendemos sempre a acreditar que o passado era melhor e tinha melhores ensinamentos. A percepção de que as novas gerações tendem ao comodismo não é novidade. Meu pai não tinha televisão na infância – um privilégio que só conquistou depois de casado e com um filho pequeno. Eu acordava às sete da manhã para ver Regina Duarte, ainda uma adolescente, apresentando os desenhos matinais: Pepe Legal, a Tartaruga Touché, Dinguelinguelingue, o Coelho Ricochete, além do meu favorito, o gato Manda-Chuva, um vagabundo muito simpático que morava dentro de uma lata de lixo. Meu pai bem poderia dizer que minha vida era cômoda e que eu devia sair da frente da televisão para viver a vida de verdade (acho que dizia).
Ele não deixou de ser também, para seu tempo, um privilegiado. Era a única criança de sua classe, na cidade de São Roque, que possuía um par de sapatos. Envergonhava-se deles – deixava-os em um buraco na estrada, a caminho da escola, para não ser discriminado entre os colegas que andavam de pé no chão. Ao voltar para casa, depois da escola, apanhava os calçados de volta no buraco onde os deixara, para chegar em casa calçado. Não queria desapontar meu avô Guaracy, seu pai, que se orgulhava de poder dar sapato ao filho mais velho. E, sem ser sapateiro, os consertava pessoalmente, quando davam no prego.
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As gerações futuras terão de cultivar os velhos princípios de alguma forma. Já nascerão em cima de um tênis com solado amortecedor, poderão assistir qualquer coisa na TV em qualquer lugar a qualquer hora, não perderão tempo fazendo contas elementares na caneta, mas terão outros desafios, a partir daí. Não reinventarão a roda, mas terão de inventar algo novo a partir do que já está feito. Terão confortos que não existiam antes, mas terão de conquistar novos benefícios que ainda não existem.
Ainda acho que o despojamento dá têmpera ao ser humano, mas não é a condição principal para isso. Existe gente completamente despojada sem nenhuma força de vontade para melhorar de vida; tornam-se simplesmente acomodados. Meu filho André quer água na hora, mas é também persistente, tenaz, não desiste, muitas vezes além da conta. Quer as coisas de imediato, e não descansa quando não as obtém. Não aceita “não” como resposta. Para um pai, isso ás vezes é infernal e mostra a necessidade de implantar um pouco de equilíbrio num cérebro fervilhante. Mas acho melhor isto – segurar um garoto radioativo – do que ter de empurrar uma criança inapetente.
André é rápido de raciocínio e sensível. Ainda não sabe ler e escrever direito, mas desenha muito bem e realiza diversas operações no ipad. Tem memória prodigiosa e é muito cioso do que acredita ser a lógica. Questiona e enfrenta adultos, tanto moral quanto intelectual e, por vezes, até fisicamente. Não tem aquela postura obediente da criança de antigamente. Orientá-lo é um desafio, que requer o melhor de mim, como adulto.
Fico imaginando o futuro do ser humano, a partir do meu filho. Tento lhe ensinar o valor de saber esperar, sem lhe tirar o ímpeto e a rapidez do ambiente em que é criado - não por mim, mas pelo mundo ao nosso redor. Parece um mundo mais rápido, agressivo, implacável. Mas eu vejo no meu filho, também, algo da antiga humanidade. Como no dia em que, aos três anos, passando por um mendigo deitado na rua, me perguntou se não poderíamos levá-lo para casa e lhe dar cama e comida.
Sei que o mundo dará ao André os instrumentos para sobreviver na era da informação. Acho que a tarefa da educação, porém, continua a mesma: fazer com que nossas crianças, além de gente do seu tempo, sejam também gente de todos os tempos. E que pensem nos outros, respeitem o bem coletivo e conheçam os limites, inclusive do tempo – tudo aquilo que permite a coexistência na vida em sociedade.
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- Papai, posso jogar videogame?
- Agora não, filho.
- Por que não?
- Porque... não. Vai ver um pouco como está o mundo lá fora.
- Está chovendo, pai.
- Então vai fazer outra coisa.
- Posso jogar no seu celular, pai?