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segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Troia Canudos: viagem através da Humanidade

Conheci o jornalista e poeta Jorge da Cunha Lima há muito tempo, quando eu era apenas um jovem repórter estreante, numa noite inesquecível para muitos: o coquetel num bufê de Higienópolis onde seria a festa da vitória do então candidato a prefeito de São Paulo, Fernando Henrique Cardoso, e acabou sendo a "festa da derrota", depois que ele perdeu numa virada de último minuto para Jânio Quadros, no já distante ano de 1985.

Era para ser uma noite de gala, no salão enfeitado, recheado de celebridades. Com o tiro pela culatra, FHC, mesmo, não apareceu. Ficaram políticos, artistas e outros apoiadores, tomando champanhe e dando entrevistas sobre aquela inesperada catástrofe política. O então candidato favorito da fina flor da inteligência nacional tomara da velha raposa uma lição - e planava um clima de espanto e consternação.

No meio daquela gente, eu ainda era um rapazote assustado. Mas lembro bem de ter conversado com Jorge, o cavalheiro amável que ali pareceu o único interessado em saber quem era aquele novato desajeitado (eu). Ele, e a Maitê Proença.

Mais tarde, nas vezes todas em que cruzamos na vida, Jorge se mostraria para mim exatamente como naquela noite. Enquanto a maioria das pessoas vive centrada em si mesma, Jorge se interessa realmente pelos outros. Quando soube que eu escrevia romances, ainda mais.

Enquanto a maioria dos escritores se volta para o próprio umbigo, ele tem aquele tipo mais raro de generosidade, desprendida de vaidade, e se permite reconhecer e valorizar a virtude no que os outros fazem.

Vindo do mundo cavalheiresco, uma civilização mais avançada, Jorge talvez sinta falta daquela antiga solidariedade entre artistas, que antes fazia a força da cultura brasileira. Lamenta discretamente a diáspora dos intelectuais, cada qual isolado no seu próprio círculo, o que divide e enfraquece a cultura como um todo.

Jorge foi muitas coisas, como presidente da fundação que dirige a TV Cultura, secretário de governo, entre outras funções, creio, por um esforço real de querer mudar esse estado de coisas, mesmo contra as tendências, e contribuir para a coletividade. Favorecer a cultura e melhorar o Brasil.

O mesmo tipo de generosidade que ele manifestava comigo era também o que ele espalhava no trabalho, com os poderes que sua eventual proximidade com o mundo da política lhe concedeu.

Porém, nunca deixou sua essência, que é a do escritor e a do poeta. E eu, que sei bem como é sustentar uma vida executiva, ou de jornalista, ao mesmo tempo em que não se pode deixar de escrever premido pelas questões da alma, nunca deixei de admirá-lo por isto.

O exercício de outras funções nunca o tirou da escrita. Artista por essência, Jorge desenha e, sempre, escreve (a perda de um computador lhe tirou da vida anos de trabalho). Por quarenta anos, porém, dedicado a outras coisas, deixou de publicar poesia - silêncio entrecortado por um romance, o Jovem K, lançado pela antiga editora Siciliano.

E então, depois de tanto tempo, já tão longe de Ensaio Geral, Mão de Obra e Véspera de Aquarius, veio este Troia Canudos.

Viagem pelos personagens, ideias e sentimentos da obra basilar da poesia, da história e da própria cultura ocidental, o poema de Jorge não reconta a obra de Homero: é uma viagem pelas reflexões de Jorge sobre ela, poesia gerada por poesia, que leva às questões fundamentais do homem.

Uma visão tão pessoal que, dali, como sugerido nos Sertões euclidianos, ele viaja para a "Troia brasileira" - Canudos, uma história igualmente épica, com outro tipo de heróis e heroísmos, que traduz a grandeza da resistência existente na miséria brasileira.

Esse paralelo na história, entre tempos tão diferentes, lugares tão diferentes, passa a fazer completo sentido. É o sentido que lhe dá o poeta, que na realidade pensa além de Troia, além de Canudos.

O que há no livro é o mundo de Jorge, seus interesses, suas preocupações, nascidas desde o tempo em que ele, ainda aos 13 anos de idade, escrevia na escola sobre "o notável cerco que serviu de inspiração a todos os cercos possíveis da História, inclusive a nossa infeliz Canudos, a Troia de Taipas".

Seu mundo é de heroismo, de beleza, de poesia sobre poesia. E de constatações que, mesmo com a formação não diplomada ou oficial da poesia, têm algo de ciência política e sociologia:

"Pobre nação a que precisa de heróis
e de homens inteligentes;
bem mais pobre a que não os tem,
nem por acidente"

A construção do mundo pela civilidade é atributo glorioso do homem. Ele, porém, é o elemento que coloca tudo a perder: contradição entre o amor e a guerra, a oposição que fez a grandiosidade da obra da Homero. O amor de Jorge é pela civilização, ao mesmo tempo que é dela que sai sua melancolia e seu desalento:

"Só o homem
produz desertos"

Troia Canudos termina, mas não o livro, nem o mundo de Jorge, que em seguida nos leva a outros tempos e lugares,  que são todos Jorge: as Américas, a Europa, a Ásia, amplas paisagem e pequenos detalhes.

Jorge tira de cada lugar aquilo que o espírito lhe traduz, com graça e originalidade, como no momento em que fala da Espanha:

"Un hombre en España es España.
Una mujer es mucho más:
es una mujer."

Atravessa o mito fundador da América Inca, no poema-conto Tahina Can. Muda de lugar e de língua, para chegar mais perto do sentimento daquilo que está falando: mais que as palavras certas, cada poema, ou sentimento, pede o seu idioma, a sua linguagem própria. E é na língua dos conquistadores que ele tece a vida dos conquistados:

"Cada hombre
en pie
es el atestado
de su propria integridad."

Troia Canudos não e, enfim, sobre poesia, tempo ou lugar. É sobre a essência da própria Humanidade.

Demorei para acabar o livro de Jorge; apesar de ser em poema, cada página pede tempo; para o desfrute, e para pensar. Avançamos lenta, mas prazerosamente; é entretenimento fácil, mas, para o prazer completo, é preciso ir com calma, passo a passo.

E poucas coisas me deram tanto prazer este ano quanto ler este livro, um recanto de tranquilidade, de paz, erudição e refinada reflexão neste mundo em crise e meio caótico. Jorge reordena o mundo dentro dele mesmo: repõe as coisas nos seus lugares, devolve sentimento ao homem, reativa o gosto pela cultura, pelas ideias, pelos princípios. E que beleza sentar nesse trem e se deixar levar de estação em estação.

Troia foi ao chão nove vezes, mas só uma reconstrução interessa, que é a reconstrução da própria civilização. É imensa a tarefa de recolocar a educação, o cavalheirismo e o respeito ao sentimento alheio em primeiro lugar.

Jorge é avis rara, mas é isso o que faz dele também um poeta único e, neste momento, mais do que nunca, indispensável. Mais que um simples livro que surge e morre por aí, Troia Canudos é dessas obras que vêm para ficar e por onde todo mundo, desde a escola, pelo menos uma vez na vida, deveria passar, como um degrau importante para a salvação geral da espécie humana.



segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Brasileiros


O que temos e o que não temos

Brasileiro não precisa de ciência, já vem geneticamente modificado. Última escala na evolução do protozoário, vem bem acabado e vocacionado para a neutralidade. É tão misturado de raça e credo e de tudo que, tudo somado no caldeirão da humanidade, as forças opostas se anulam.


Daí a nossa ausência de radicalismos, de intolerâncias, de questionamentos. Brasileiro é bem resolvido, de natureza pacífica, espírito conciliatório, tendência protelativa. O que não significa ser um inerte, um bobão. Tendo dentro toda aquela maçaroca peninsular, ibérica, africana, oriental, a soma final fica zero, mas cada elemento está lá dentro, latente, e pode ser despertado por circunstâncias.


Nisso o brasileiro é ainda como o índio, que nasceu aqui e deu o tom à terra, da mesma forma que os papagaios e o Pau-Brasil. Índio é alegre, criança, inocente, brincalhão. Não se preocupa com nada, porque sabe que vive numa terra grande, cheia de fartura, que provê quando necessário, é só ir lá e pegar.

O índio é gozado, vira de humor de repente, parece que não conhece até o amigo, fica cego, e não custa nada para meter a borduna na cabeça de alguém. Mas depois, a raiva passa, depressa como veio; e ele sai embora dando risada de novo.

O mundo é muito sisudo, cheio de coisa estranha; isto é verdade, só aqui a gente se sente completamente à vontade. Brasileiro se dá bem em todo lugar, mas ao mesmo tempo não se dá bem em lugar algum; fica triste, desenxabido, sente saudade até do feijão.

O turco é alegre, aberto, amigo; o egípcio também é gente de origem pobre, sem ser revoltada, que tem sempre um sorriso no rosto, amiga de todos; e está sempre pronta para ajudar, mesmo quando não tem condição.

Do primeiro mundo, povo bom assim tem só o italiano, também vocacionado para a felicidade; não alimenta culpas, nem se pega tanto em briga de vizinho ou religião, só de futebol. Não se importa com ideologias. O italiano idolatra a família e coloca a emoção na frente de tudo; para as coisas sentimentais, rasga o coração.

Mas como o brasileiro não tem igual, porque aqui no Brasil essa alegria de viver é multicultural, vem do escravo que dançava de roda. Nossa coragem é do bandeirante que vencia as mutucas com sua casca grossa e não se assustava sequer com os índios antropófagos. Ao contrário, gostava era das índias morenas que achava pelo caminho, enquanto abria picada pelo país inteiro. Caía também pelas negrinhas da senzala, o que deu nessa mistura doida. O brasileiro ficou povo colorido, rosado de gordo e queimado pelo sol tropical.

O brasileiro é povo sem teoria, é tudo natural para uma gente que anda de sandália e bebe cerveja na esquina e torce para o Corinthians ou o Flamengo ou algum outro time que sempre é o melhor do mundo. O brasileiro é sábio, porque sabe que a felicidade está nas pequenas coisas; não fica pensando muito, nem estraga a vida como esses povos ranzinzas. Não perde tempo pensando em armas nucleares nem coisas assim, nem se leva muito a sério, mesmo nas coisas mais sérias. No Brasil até mesmo juiz de direito já pulou carnaval.


Ah, se e o Brasil tivesse só um pouquinho mais de organização, e esses políticos um pouco de vergonha na cara!