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terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Os pecados da tribo contemporânea

Em seu romance Os Pecados da Tribo, de 1976, o escritor goiano J.J.Veiga, falecido em 1999, imaginava um mundo em que desaparecera toda a tecnologia, depois de uma inexplicada catástrofe que tirou a energia artificial: um planeta sem carros, geladeiras e outras máquinas, onde a consulesa - uma mulher casada desejada pelo narrador por seus lindos pés -, andava sempre descalça.

Uma interessante fábula para mostrar que, sem os meios criados pela indústria contemporânea, o homem permanecia o mesmo, com seus desejos, mesquinharias e problemas, que remontam aos tempos das cavernas. Prova de que a civilização está no comportamento, e não nos instrumentos de que a sociedade dispõe.

Falo deste livro para fazer um exercício contrário, tomando o mundo real de hoje. Desde a invenção da roda e da máquina a vapor, a sociedade não mudou tanto quanto agora, na era da informação. Impregnado de tecnologia, especialmente a que hoje conecta todo os indívíduos, vemos que esse avanço civilizatório não fez progredir também os elementos essenciais da Humanidade. O mundo continua o mesmo, ou pior, já que a tecnologia tem servido para acirrar suas dissensões.

Onze Cabeças, de Pavel Filonov,
Museu Russo, em São Petersburgo
Em vez de dirigir o mundo para uma fase desenvolvimentista, objetiva e integrada às bases humanistas ou iluministas, como seria de se esperar de uma geração tão próxima dos elementos da razão, o que a tecnologia fez foi impulsionar a intolerância religiosa, acirrar o maniqueísmo político, dar voz aos extremistas de esquerda e direita e fortalecer minorias que tentam encobrir a maioria com seu ativismo.

A  multiplicidade se transforma em uma infinidade de defesas de interesse que buscam tirar a legitimidade umas das outras e tendem a desintegrar um mundo cada vez mais integrado pela comunicação.

Assim como as tribos africanas não deixaram de ser tribais, apenas hoje usam metralhadoras no lugar dos antigos chuços para dizimar seus inimigos em  maior escala, a internet se tornou um instrumento de última geração para a ação de ideologias  que se supunha anacrônicas.

Ressurgiu a velha dicotomia de esquerda e direita, que parecia destinada à submersão no processo de redemocratização do Brasil. Levantaram-se da tumba os arautos de velhas esquerdas, como a stalinista, segundo a qual os fins justificam os meios, defensores da erradicação do capitalismo a qualquer preço, que tem muitos correligionários ao redor do governo da presidente Dilma Rousseff.

Surgiram também do limbo, ao mesmo tempo, os radicais de direita, para quem tudo o que a esquerda prega é um absurdo, e justifica-se portanto o absurdo do lado contrário, incluindo silenciar a esquerda e defender bens imponderáveis como a pátria, a família e a liberdade com a luta armada, outra aberração anti-civilizatória de tempos pregressos.

No mundo, acontece a mesma coisa. Pela internet, agrupam-se e se fortalecem movimentos radicais islâmicos que acabam nas ruas, como o que resultou na morte de mais de uma centena de pessoas, recentemente, em Paris. Ressurge o nazi-fascismo, que se julgava morto e enterrado desde a experiência macabra da Segunda Guerra Mundial.

Da mesma forma que permite a adolescentes suicidas encontrarem apoio uns nos outros para realizar o seu intento, a internet é um espaço onde interesses específicos podem se reunir em redes e fortalecer o ânimo de grupos com propósitos fora da curva.

Ao patrulhamento ideológico, que tenta matar toda e qualquer manifestação contrária nas redes sociais, junta-se a cizânia pura e simples, daqueles que veem defeito em tudo e só sabem criticar o governo, o vizinho, as instituições, a democracia e reclamar da vida - da falta d´água ao preço do dólar.

Excluída a tecnologia, como o rei da fábula, que de repente se viu nu, ainda somos os mesmos. Os cruzados ainda lutam contra os mouros, e a irracionalidade da intolerância religiosa ganha força e amplitude com sua agregação virtual: Jerusalém agora é cada cidade do mundo, como Paris. A Guerra Fria não é mais entre americanos e soviéticos, é entre todos os que defendem o Estado absolutista e do outro lado o capitalismo liberal, se possível selvagem e desenfreado.

O movimento das minorias ganhou ainda mais força, seja das feministas, dos gays, dos negros. E com isso vão também se criando guetos de exclusividade e privilégio em que o cidadão fora dessas nomenclaturas vai sendo alijado do direito de igualdade.

Essa guerra microfísica, que está no dia a dia das pessoas, vai tornando o ambiente virtual estressante e potencialmente explosivo. A facilidade com que a organização de grupos na internet ganha as ruas, de repente e aparentemente do nada, para quem não vigia os meios virtuais, é o maior fenômeno social da era contemporânea.

Dentro desse cenário, está também a tentativa de desmoralizar a imprensa, para a ocupação do espaço da informação com o ponto de vista dos grupos de interesse. Um mundo em que não há verdades, ou fatos, e apenas versões sobre tudo, vai se tornando um campo minado para a sociedade, sujeita mais a campanhas de marketing que à realidade.

A divergência política, que se dava apenas em períodos eleitorais, e antes se restringia às páginas de opinião dos jornais ou ao churrasco de fim de semana, hoje é um campo aberto e cotidiano. Os projetos de interesse coletivo estão sujeitos a uma infinidade de pressões que ameaçam paralisar as atividades de Estado e precisam ser defendidos diariamente, assim como a reputação daqueles que são achincalhados impunemente no meio virtual.

A democracia se obriga a respeitar o direito de opinião livre de todas as minorias, não pode ir contra a multiplicação desse tipo de material que infesta hoje o espaço virtual, tão presente na vida das pessoas, ainda que isso não represente o pensamento da maioria, geralmente silenciosa. É um desafio para o mundo se tornar governável diante de todas essas fontes de pressão.

A tecnologia avança, mas ainda somos os mesmos que levaram este planeta às guerras mundiais, à Inquisição, à perseguição política, à censura e outros males crônicos da Humanidade. A civilização não é a tecnologia, e sim o que está por trás dela, e agora aparece à frente, tão claramente. Espera-se que seja uma fase e venhamos a encontrar fatores de equilíbrio, a começar pela consciência das consequências do mundo virtual no mundo real.

Uma certa volta aos pés no chão da consulesa, símbolo último da realidade.








quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Por que Bezos comprou o Post?



Jeff Bezos, dono da Amazon, comprou o Washington Post, um dos mais tradicionais jornais americanos. Pagou 250 milhões de dólares - pouco, se pensarmos no que valiam as empresas de mídia até pouco tempo atrás. Muito, talvez, para um modelo que vai tendo cada vez mais dificuldades com o avanço do meio digital sobre o impresso e suas consequências. Porém, não é o valor que chama a atenção nesse negócio. Por que Bezos, o visionário que entendeu antes de todo mundo o negócio de cauda longa na internet, e que demoliu o mercado convencional do livro e das livrarias no mercado americano com seu site de compras pela internet e o Kindle, compraria um velho jornal - e como pessoa física? Eis a questão.

Ao anunciar o negócio, os donos do Post, um jornalão dirigido há 80 anos pela mesma família, e que teve seus dias de glória décadas atrás, quando suas reportagens derrubaram o presidente Nixon, disseram que com a redução de custos sabiam que podiam manter o jornal por longo tempo. Porém, não viam como fazê-lo crescer novamente. E que, com Bezos, um ícone da imprensa americana teria maiores possibilidades. Ou seja, teria futuro. Um extraordinário realismo, ou desapego, demonstração de humildade? Talvez tenha sido, mais que tudo, a sensação de impotência de quem não é capaz de enxergar mais à frente.

Sabemos que a imprensa não pode nem vai desaparecer. A questão é como ela se amoldará a novos tempos e uma nova maneira de pensar. Uma era em que os leitores respondem ao veículo em tempo real, em que se pode saber o que eles querem realmente saber, além do que o editor quer dizer, e onde se pode ter acesso imediato à informação. Uma era em que o alcance de uma publicação não depende de haver uma banca de jornal nas redondezas, ou de um sistema de assinatura em que folhas de papel chegam pelo correio. Tudo isso está virando passado rapidamente.

Bezos deve ver um futuro para a imprensa, algo que não acontece com os editores tradicionais, muito acostumados aos velhos paradigmas. O próprio nome (imprensa) já não faz muito sentido para designar o negócio da informação. Mas ele não mudou muito em sua essência e não deverá mudar.

Se os antigos editores têm algo a aprender com os tycoons da era digital, esses também podem aproveitar o que o velho mundo tem a ensinar. Que a imprensa existe. Que ela depende de credibilidade, algo que o Post tem de sobra. Que a credibilidade depende da separação entre igreja e Estado - conteúdo editorial e publicidade. Que a informação gabaritada é essencial, formadora de opinião pública e um pilar da democracia e da própria sociedade onde vivemos. O que os velhos editores não sabem, apenas, é como financiar o mesmo serviço num ambiente em que a publicidade convencional se encontra em queda, o meio papel vai ficando caro, e as receitas são insuficientes para manter os mesmos custos de produção que davam no veículo impresso.

É muito provável que Bezos tenha uma ideia do que fazer a respeito, caso contrário não compraria o Post - seria como comprar uma fábrica de discos de vinil. Todos os editores buscam as respostas que ele provavelmente acha que tem na cabeça e devem estar ansiosos para ver o que um pioneiro do novo mundo fará com um negócio tido como decadente.

A primeira coisa que Bezos fez foi convidar os donos e principais editores do Post para continuar em suas cadeiras. Ele sabe que a imprensa depende ainda da mesma coisa: editores e repórteres com credibilidade. Foi isso o que ele comprou. E os próprios editores esperam que ele faça o negócio novamente crescer no ambiente onde ele enxerga coisas que eles não estão enxergando.

Ninguém tem a resposta muito certa sobre qual modelo fará a imprensa se reafirmar. Por mais que tenha uma visão a respeito, Bezos deve saber que não é mais do que uma visão. Só temos certeza sobre o que vai acontecer depois que tudo acontece e temos na mão o resultado. O mundo digital é muito mutante. Porém, alguns caminhos estão delineados.

É preciso manter a separação entre igreja e estado, mesmo num meio em que o dinheiro parece vir da possibilidade de monetizar tudo aquilo que se clica dentro de um computador. A saída certaemnte está na cobrança pelo serviço, um modelo de assinaturas que não é diferente de quando foram criadas as assinaturas para jornais e revistas, o que aconteceu no Barsil cerca de 40 anos atrás.

Nessa época, os editores se deparavam com as mesmas questões de hoje, no mercado impresso. Como ter uma receita maior e estável de publicidade? Garantindo um público permanente, ou seja, a circulação paga. Para isso, era preciso inventar um sistema sólido de assinaturas, o que não era um problema técnico, mas psicossocial: era preciso convencer as pessoas de que elas precisam pagar antes pela assinatura de um serviço que receberiam ao longo do tempo. E isso funcionou para revistas e jornais impressos, que chegavam em casa pelo correio.

Hoje o dilema é o mesmo, só que numa mídia diferente. É preciso convencer as pessoas de que, para ter um serviço de informação confiável, num ambiente cheio de informações inidôneas como a internet, o consumidor terá de pagar. Provavelmente os custos das empresas terão de se adequar a um novo patamar de receitas. E os publishers deverão ter conteúdo exclusivo e importante para que sua carteira de assinantes se mantenha ou venha a crescer num ambiente em que, em compensação, muito mais gente terá acesso à informação.

No Brasil, os jornais - mesmo os ditos ''nacionais'' - sempre foram regionais. Folha de S. Paulo, por exemplo, sempre circulou em grande parte em São Paulo; O Globo e Jornal do Brasil são publicações do Rio de Janeiro. Na internet, a possibilidade de ter um assinante em qualquer lugar do Brasil cresce exponencialmente para os veículos tradicionais. Em tese, isso pode compensar uma perda de receita com o declínio da venda avulsa em bancas e um valor mais baixo para o serviço de assinatura. E a publicidade, ainda que num patamar de valores também mais baixo, pode voltar.

Será certamente uma transição complicada para veículos tradicionais que ainda têm de bancar o papel e uma grande oportunidade para quem está começando do zero. Com certeza, Bezos quer estar lá do outro lado, depois que essa fase de transição acabar.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O fim da sociedade do ócio

O desafio da era contemporânea é preservar o sentido da coletividade sem perder a liberdade individual extrema que a era digital permite



O filósofo e economista André Gorz, em seu livro Adeus ao Proletariado, previa ainda na Década de 1980 que viveríamos numa "sociedade do ócio". A criação de facilidades com a computação doméstica e a industrial, onde a produção passou a ser feita por robôs, criaria riqueza e geraria mais tempo para o homem dedicar-se ao lazer e a si mesmo.

Não aconteceu nada disso. Claro, os robôs estão na fábrica, assim como os computadores pessoais estão não apenas em casa como agora no bolso dos cidadãos, mas não existe a sociedade do ócio. As corporações exigem agora que se responda a tudo imediatamente, fazendo tudo mais rápido, ao mesmo tempo, e por menos dinheiro. Uma solicitação por escrito pode e tem de ser respondida em tempo real.

Perdemos o direito de não sermos encontrados e de ter um tempo para nós mesmos. Antigamente, o trabalho não era tão selvagem. As pessoas ganhavam a vida sem tantas tarefas. Tinham menos pressa. Não sabiam pelo Facebook o que acontecia na vida dos outros. Vivíamos na sociedade do ócio e não sabíamos.

*
Claro que a frase anterior é de efeito e não retrata a realidade. A bem da verdade, a sociedade do ócio não aconteceu e não acontecerá jamais. O homem foi feito para querer sempre mais. É o único animal com capacidade e vontade de acumulação. É o único ser da natureza que junta mais do que o necessário para viver. É que tem noção de futuro, o conceito que impulsiona a necessidade da provisão.

O homem guarda para si, para a família, para o amanhã. Ou simplesmente para ter mais. Inventou o capital e a concorrência. A sociedade se amoldou ao processo cumulativo.

O ganho de capital aumentou ainda mais a desigualdade social. Na idade Média, o rico morava num castelo de pedra, mas andava a cavalo e comia pernil em cima do mesmo feno onde defecavam os cachorros. O pobre vivia numa cabana, mas andava a cavalo e comia pernil em cima do feno onde defecavam os cachorros. A geração de riqueza aumentou também a distância entre os que se aproveitam dela e os que são apenas explorados ou marginalizados.

A multiplicidade de seitas religiosas hoje parece querer compensar esse mundo agreste, criados por nós mesmos. Olhar o próximo com compaixão, pensar no outro generosamente e sermos solidários são formas de restabelecer não apenas nossa humanidade, como de pedirmos um pouco de clemência para nós mesmos. Nenhum homem é produtivo, cumulativo e auto-suficiente a vida inteira. Existem os seres dependentes, física e financeiramente. E todos ficam velhos.

É preciso pensar nos sistemas de saúde, que atendam não apenas os que têm dinheiro ou são capazes, mas os que simplesmente não podem ficar desassistidos. É preciso pensar nos problemas coletivos e oferecer nossa cota parte de trabalho individual em benefício do bem comum. Sabemos que uma sociedade com mais equilíbrio reverte seus benefícios também para os que mais contribuem com ela. O rico não pode passar a vida dentro de um muro cercado pela favela. Isso não é viver bem.

A compaixão é algo que devia ser incentivado nas novas gerações. O smartphone é o símbolo de uma era de extremo individualismo, em que cada um pode levar no bolso seu pequeno universo pessoal. Com um iphone, podemos não apenas satisfazer necessidades pessoais como nos relacionar com os outros.

Cada geração possui seus desafios, e a desagregação será com certeza um deles. A educação sempre tem como objetivo estabelecer comportamentos éticos coletivamente aceitos e isso se torna cada vez mais difícil numa cultura que permite e estimula a múltipla escolha.

Sem sombra de dúvida, a educação será o maior negócio do futuro. Dela dependerá o sucesso das Nações para se manter unidas e preservar sua organização e a força coletiva.

O individualismo é essencial para a existência humana, vocacionada para a liberdade, um direito inquestionável. O problema é como aprofundar a liberdade sem perdermos o sentido coletivo da Humanidade, que hoje parece tão ligada virtualmente, mas nos oferece universos absolutamente individuais e sem fronteiras.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

"Pai, tenho sede"

Os desafios da educação na era digital



As crianças hoje querem tudo rápido, e para ontem.
André, 6 anos, no carro.
- Pai, quero água.
- Não tem.
- Quero água.
- Não tem, por duas razões. Uma, porque não tem. A segunda, porque não é assim que se pede.
- Por favor, você podia me dar água?
- Filho, você resolveu a segunda razão, mas ainda tem a primeira. Não tem água. Espere até chegarmos em casa.
*
Vão dizer: ah, André tem apenas seis anos.
Vejamos Lucca, 12 anos, no mesmo dia, dentro de outro carro, indo de São Paulo a São José.
- Mãe, estou com sede.
(Silêncio da mãe).
- Estou com sede!
- O que você acha que eu posso fazer a respeito?
Lucca pensa um pouco.
- Poderia me informar quanto tempo a gente ainda leva para chegar em casa?
*
A indústria da informação está acostumando toda uma geração a ter tudo instantaneamente, ao toque de um botão.
É uma geração completamente diferente da de meus avós, meus pais e da minha própria geração. Meus avós vinham da Segunda Guerra, um tempo em que era importante administrar a escassez. Não ter as coisas era normal. E era preciso estar preparado para a falta das coisas.
Eu não vi o tempo da guerra mundial, mas conheci a escassez de outros tempos e outras guerras. Quando era criança, a TV era preto e branco e tinha apenas 4 canais. Custava a ligar e formava a primeira imagem só depois que esquentavam as válvulas. Não havia produto importado no Brasil. Não se podia escolher muita coisa. Nem mesmo os governantes, pois reinavam os prepostos da ditadura militar em todas as esferas: municipal, estadual e federal. Meu pai, que vinha da esquerda, quando nasci perdera o emprego, tinha amigos presos, naquele tempo tudo podia acontecer.
A economia era quase soviética, resultado do nacionalismo militarista que fechara xenofobicamente as portas do Brasil para qualquer coisa que viesse de fora. Andar de avião era raro e caríssimo. Minha mãe coibia o uso do telefone, que era para conversas rápidas e de emergência. Telefone custava caro e a ligação internacional, além de caríssima, era difícil.
Na Casa Verde, onde morei parte da minha infância, com frequência faltava água. Por isso, no quintal da minha casa, havia um alçapão que dava para um reservatório de emergência. No verão, eu gostava de me enfiar pelo buraco e ficar lá dentro me refrescando.
Era preciso estar preparado para a privação. Na verdade, eu nem via essa situação como de privação. Eu tive de aprender a esperar. Até mesmo para beber água.
*
É preciso ser duro para sobreviver. Muitas vezes tentei demonstrar ao João, hoje com 16 anos, que nem sempre o caminho mais fácil é o melhor. Como no videogame, para ele o melhor era sempre cortar caminho, trapacear, usar todos os recursos disponíveis pelo jogo para ganhar. Não entendia por que eu não fazia o mesmo. E eu queria ganhar sem apelar para os truques que o jogo proporcionava.
Muitas vezes pensei que era inútil tentar lhe mostrar o valor do trabalho, da necessidade do empenho, e que a maneira como fazemos as coisas é tão importante quanto o resultado. Acho que ele nunca me compreendeu muito bem. Talvez, quando ficar mais velho e tiver outras experiências.
*
Qual é a validde de sabermos fazer na caneta as operações matemáticas se a calculadora faz isso por nós? Quando eu era estudante, usar a calculadora em sala de aula era proibido. Creio que isto era para estimular o raciocínio matemático, mas esse ganho abstrato parece coisa do passado. Hoje as crianças usam não apenas a calculadora como todas as informações disponíveis na internet. Isso não quer dizer que não exercitem o pensamento. Ele é estimulado por questões mais avançadas do que fazer de cabeça as quatro operações. As crianças já não partem mais de questões elementares. Já começam mais avançadas, embora isso me faça às vezes pensar que lhes faltam algumas noções elementares.
Hoje muitos alunos tendem a estar mais bem informados que o professor em um ou outro assunto. Podem questioná-lo. Qual o sentido então da educação hoje? Estaremos formando uma geração melhor?
*
Na medida em que ficamos mais velhos, tendemos sempre a acreditar que o passado era melhor e tinha melhores ensinamentos. A percepção de que as novas gerações tendem ao comodismo não é novidade. Meu pai não tinha televisão na infância – um privilégio que só conquistou depois de casado e com um filho pequeno. Eu acordava às sete da manhã para ver Regina Duarte, ainda uma adolescente, apresentando os desenhos matinais: Pepe Legal, a Tartaruga Touché, Dinguelinguelingue, o Coelho Ricochete, além do meu favorito, o gato Manda-Chuva, um vagabundo muito simpático que morava dentro de uma lata de lixo. Meu pai bem poderia dizer que minha vida era cômoda e que eu devia sair da frente da televisão para viver a vida de verdade (acho que dizia).
Ele não deixou de ser também, para seu tempo, um privilegiado. Era a única criança de sua classe, na cidade de São Roque, que possuía um par de sapatos. Envergonhava-se deles – deixava-os em um buraco na estrada, a caminho da escola, para não ser discriminado entre os colegas que andavam de pé no chão. Ao voltar para casa, depois da escola, apanhava os calçados de volta no buraco onde os deixara, para chegar em casa calçado. Não queria desapontar meu avô Guaracy, seu pai, que se orgulhava de poder dar sapato ao filho mais velho. E, sem ser sapateiro, os consertava pessoalmente, quando davam no prego.
*
As gerações futuras terão de cultivar os velhos princípios de alguma forma. Já nascerão em cima de um tênis com solado amortecedor, poderão assistir qualquer coisa na TV em qualquer lugar a qualquer hora, não perderão tempo fazendo contas elementares na caneta, mas terão outros desafios, a partir daí. Não reinventarão a roda, mas terão de inventar algo novo a partir do que já está feito. Terão confortos que não existiam antes, mas terão de conquistar novos benefícios que ainda não existem.
Ainda acho que o despojamento dá têmpera ao ser humano, mas não é a condição principal para isso. Existe gente completamente despojada sem nenhuma força de vontade para melhorar de vida; tornam-se simplesmente acomodados. Meu filho André quer água na hora, mas é também persistente, tenaz, não desiste, muitas vezes além da conta. Quer as coisas de imediato, e não descansa quando não as obtém. Não aceita “não” como resposta. Para um pai, isso ás vezes é infernal e mostra a necessidade de implantar um pouco de equilíbrio num cérebro fervilhante. Mas acho melhor isto – segurar um garoto radioativo – do que ter de empurrar uma criança inapetente.
André é rápido de raciocínio e sensível. Ainda não sabe ler e escrever direito, mas desenha muito bem e realiza diversas operações no ipad. Tem memória prodigiosa e é muito cioso do que acredita ser a lógica. Questiona e enfrenta adultos, tanto moral quanto intelectual e, por vezes, até fisicamente. Não tem aquela postura obediente da criança de antigamente. Orientá-lo é um desafio, que requer o melhor de mim, como adulto.
Fico imaginando o futuro do ser humano, a partir do meu filho. Tento lhe ensinar o valor de saber esperar, sem lhe tirar o ímpeto e a rapidez do ambiente em que é criado - não por mim, mas pelo mundo ao nosso redor. Parece um mundo mais rápido, agressivo, implacável. Mas eu vejo no meu filho, também, algo da antiga humanidade. Como no dia em que, aos três anos, passando por um mendigo deitado na rua, me perguntou se não poderíamos levá-lo para casa e lhe dar cama e comida.
Sei que o mundo dará ao André os instrumentos para sobreviver na era da informação. Acho que a tarefa da educação, porém, continua a mesma: fazer com que nossas crianças, além de gente do seu tempo, sejam também gente de todos os tempos. E que pensem nos outros, respeitem o bem coletivo e conheçam os limites, inclusive do tempo – tudo aquilo que permite a coexistência na vida em sociedade.
*
- Papai, posso jogar videogame?
- Agora não, filho.
- Por que não?
- Porque... não. Vai ver um pouco como está o mundo lá fora.
- Está chovendo, pai.
- Então vai fazer outra coisa.
- Posso jogar no seu celular, pai?

sábado, 30 de maio de 2009

O futuro do jornal e do livro


O que muda - e o que vai melhorar


Os catastrofistas gostam de achar que a decadência dos jornais pelo mundo será o fim da imprensa. Assim como muitos apontam que a era digital nunca substituirá o livro. Em geral, os catastrofistas acertam apenas quanto a si mesmos. É preciso pensar o que a era digital pode trazer de bom para a imprensa e o livro. Ela pode.


Daqui a alguns anos, o jornal em papel certamente será lembrado como um anacronismo igual ao que é hoje a velha máquina de escrever. O custo de esperar a árvore crescer para fazer o papel, industrializá-lo, imprimi-lo e distribui-lo é incomparavelmente maior que o do meio eletrônico. É a única razão pela qual o jornal desaparecerá e isso não está longe, já que a internet tem agora um alcance suficiente para cobrir os leitores que antes só tinham acesso à imprensa da maneira convencional, em bancas ou assinaturas.


Quando quebraram as mãos do jornalista Antonio Maria por conta do que escrevia, ele disse: “Tolos, pensam que a gente escreve com as mãos”. O mesmo se pode dizer da imprensa. São tolos os que pensam que a imprensa se faz com o papel. Não importa o meio onde ela se propaga, mas os seus princípios: informação com credibilidade, facilidade de acesso, defesa da liberdade de expressão e de opinião. A internet traz também vantagens nessa área. Permite atualização constante e consulta permanente ao que já foi publicado.

Se os veículos de imprensa hoje estão em dificuldades, é porque estão em sua fase de transição – enquanto entram na era digital, ainda têm de carregar o velho negócio em papel. Em vez de investir no novo, precisam empregar esforços em sustentar o decadente. É difícil a decisão de simplesmente acabar com o jornal impresso e ficar só na internet. A sensação é de diluição no mar virtual. Porém, quem tem um serviço de qualidade, e uma marca de prestígio, tem mais chances de consolidação no mercado de informação virtual.

O mesmo deve acontecer com o livro. Já tive a oportunidade de manusear o Kindle, o livro eletrônico da Amazon, o mais conhecido do gênero. Ele ainda é caro (cerca de 700 dólares nos Estados Unidos), ainda não há uma plataforma para produzi-lo com obras em português, e não sabemos se as pessoas comprarão um aparelho exclusivamente para ler livros ou jornais. Ele tem, porém, uma série de vantagens incomparáveis sobre o livro convencional.

Para começar, ao contrário do que dizem os preconceituosos, ele é mais amigável . Como um palmtop um pouco maior, pode ser segurado com uma única mão, ao contrário do livro, que a gente tem de abrir – e por vezes administrar as duas partes, que tendem a fechar-se novamente. É possível fazer marcações no texto. E, sobretudo, ali cabe uma biblioteca inteira. Assim, você pode ir para a praia levando não apenas o livro da vez, como toda sua biblioteca. E ler ainda o jornal do dia.

Assim como no caso dos jornais, o livro eletrônico elimina enormes custos de produção e armazenagem de volumes impressos. Mesmo o custo do aparelho é relativo: basta pensar que sai muito mais barato do que comprar uma biblioteca de 3.000 livros, sua capacidade de instalação. Com a erradicação dos custos de papel, impressão e estocagem, o livro novo pode ser barateado, e muito. Isso com certeza difundirá a leitura ainda mais, já que o principal impedimento da expansão do mercado, sobretudo no Brasil, é o preço.

Claro, há dúvidas. Uma ameaça é a pirataria. Se as editoras e autores forem atropelados pelos piratas, com a distribuição gratuita das obras, não haverá muito mais gente disposta a escrever, produzir e divulgar livros. Os direitos autorais não podem ser reduzidos, mesmo em face da queda no preço unitário do livro, sob a mesma pena de eliminar o seu produtor. Isso já tem acontecido na música com a troca do CD pelo Ipod.

Pode ser que a literatura, assim como a música, deixem de ser atividades profissionais, para se tornarem novamente produto do diletantismo de pessoas que fazem outras coisas na vida e escrevem, compõem ou tocam como uma atividade secundária, por prazer ou necessidade pessoal. Se isso acontecer, teríamos um grande retrocesso. Cabe aos cérebros digitais estudar como evitar melhor a pirataria e o desmanche de uma indústria fundamental para a educação e o entretenimento.


Não importa o veículo onde se coloque a imprensa e a arte; ambas são uma necessidade da sociedade e do indivíduo; por isso, sempre existirão. A profissionalização de ambas é que garante sua qualidade e por isso deve ser respeitada e incentivada, em vez de destruída. A boa imprensa e o bom livro são indispensáveis e parte da vida contemporânea, contraponto do barbarismo das civilizações antigas que perseguiam iconoclastas e queimavam livros para manter o povo na obscuridade.


A era digital tem, acima de tudo, essa virtude: o acesso a tudo, por qualquer um, em qualquer tempo. É um enorme passo para um futuro melhor.