domingo, 3 de março de 2024

Tognolli e um certo senso de justiça


Claudio Julio Tognolli tinha um Chevette meio desconjuntado, e ia me dando uma carona no campus da USP, ao mesmo tempo em que filosofava, porque tinha saído fazia pouco tempo do RPM, onde tocava guitarra - e de repente a banda estava fazendo o maior sucesso, enquanto ele, meu colega de classe, estava ali de meu motorista. Mas não perdia o bom humor.


- Sabe, a gente tem três chances na vida - ele disse. - A primeira, a gente nem sabe que perdeu. A segunda, a gente perde por incompetência. A terceira, não pode perder. O difícil é saber que oportunidade foi esta que eu perdi: se foi a primeira, a segunda ou a última.


Com pouco mais de 18 anos, eu era ainda mais duro do que ele, mas achava que havia toda uma vida de oportunidades pela frente para todos nós, uma geração que saiu daquela escola com as mesmas aspirações (e teve muito sucesso).


O Paulo Ricardo, do RPM, que era mais velho, e estava em algum ano mais adiante, eu só conhecia de jogar futebol no gramado em frente à escola - já ia pouco à aula. Mas eu, Tog e muitos outros convivemos, por amizade e também pelos encontros da profissão.


Depois dos dois anos básicos, em que todos estudávamos juntos, a turma foi dividida nos cursos específicos - o William Bonner, por exemplo, foi para o marketing (só faria jornalismo muito tempo depois). Mesmo no Jornalismo, a gente se dividia - algumas matérias eram optativas e tinham poucos alunos, como Matemática da Comunicação, onde nos inscrevemos só o Marcelo Rubens Paiva e eu. Mas todo mundo se encontrava na entrada, onde sentávamos num mesa de açougue, de aço inoxidável, antes das aulas, e íamos às festas juntos. A partir de certa altura, passamos também a trabalhar juntos, na Editora Abril e outros veículos que pegavam quase turmas inteiras da ECA para as redações.


Tog sempre foi músico, mas em vez do RPM escolheu a imprensa, e não qualquer imprensa. Queria fazer jornalismo investigativo, especialmente na área policial, por causa de um senso de justiça muito grande, que vinha de um coração do mesmo tamanho. 


Sempre a mil, vivia caçando bandidos, esquemas, traficâncias. Desde logo viu a interseção entre a bandidagem pura e simples e a política, o que o levou a enfrentar gente poderosa. Era corajoso e agia sempre como se nada tivesse a perder. Ironizou os riscos da profissão, usando no lançamento de uma coletânea de histórias em 1978 (Mídia, Máfias e Rock'n'roll) uma fotografia na qual apontava um revólver para a propria cabeça.


Arriscava o pescoço sem medo, razão pela qual se manteve íntegro, mesmo num ambiente altamente tóxico e perigoso, onde sempre tem alguém tentando aliciar a imprensa para acobertar a sujeirada, em vez de saneá-la, ou se dispõe a tirar o jornalista do caminho, quando necessário.


Arrumou inúmeras polêmicas, pela disposição de expor a verdade, custasse  que custasse. Arrumou processos variados, como um movido pela JBS, por uma reportagem na qual denunciava que o juiz Sergio Moro teria sido subcontratado pela empresa, por meio de um escritório de advocacia chamado Warde. Levou também paulada de todo lado quando publicou em 2017 a tomografia da primeira dama Marisa Letícia, quando ela se encontrava hospitalizada por conta do AVC.


Era eclético, escrevendo, falando no rádio ou mesmo na TV. Original, inventivo, inquieto, incansável - fez reportagens em mais de 30 países, por vezes infiltrado em torcidas violentas de futebol, organizações criminosas e seitas radicais. Professor de Jornalismo na escola em que nos formamos, procurava passar adiante esse bastão, ou esse espírito, de estar sempre investigando, questionando, e nunca desistir: enfrentar e apresentar a verdade a qualquer custo. 


Cultivava muitas maluquices, como seu fanatismo pelo professor Timothy Leary, que entrevistou ainda  no começo de carreira e de quem se tornou uma espécie de "discípulo". Lembre-se, Leary era um defensor do uso do LSD no tratamento psiquiátrico, e que resolveu fazer de sua morte uma espécie de espetáculo público, depois de publicar um livro em que propunha uma nova visão da morte. 


Tinha na verdade dificuldade de lidar com a morte e estava sempre querendo ajudar alguém. Quando eu era editor de ficção e não ficção da Saraiva, apareceu com a ideia de lançarmos um livro sobre o Roy Cicala, da Record Plant, que tinha sido a maior gravadora de discos americana, de Jimmi Hendrix a John Lennon.


Tog andava com Roy para cima e para baixo. Queria registrar a história dele, não só por ser relevante para a história da música, como para seu levantar seu astral, pois Roy tinha vindo para o Brasil por causa de uma filha brasileira e estava com sérios problemas de saúde. Morreu, de fato, logo depois do livro - que publicamos pelo selo Benvirá, com o título A Porta Mágica, referência ao hábito dos artistas americanos de passarem a mão na porta de entrada da gravadora, depois de Hendrix espalhar a lenda de que aquilo dava sorte.


Por trás da obsessão do jornalista, estava aquele coração. Acho que ele o usou tanto que o gastou ao longo da vida. Virou o seu ponto fraco. Acabou internado, esteve às portas da morte e salvou-se por milagre, embora dependesse ainda de um transplante.


Fui visitá-lo num hospital, perto da cidade de Embu-Guaçu, na companhia dos jornalistas Hugo Studart e Simone Souto Maior, que levou para ele escondido um sanduíche de mortadela. Acho que gostou mais da mortadela do que da nossa presença, depois de dois meses de comida hospitalar.


Recentemente, estava muito feliz por ter ganhado um "coração novinho", como ele mesmo descreveu pelo Instagram. Ter trocado de coração, porém, foi algo que sua mente, mais que seu corpo, provavelmente, acabou não aceitando.


Este domingo, perdi um amigo e o jornalismo brasileiro um de seus mais importantes samurais. Não há mais uma vida de oportunidades pela frente - e a última ele acaba de perder. Mas há uma lista de realizações, e um exemplo de vida que eu registro, para que todos possam se lembrar.

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