sábado, 16 de março de 2024

A busca das almas mais sensíveis

Ela é casada e mora em outra cidade. Ama o marido, embora diga que ama "também a ele, F". Ele já deixou dois noivados, o último a pretexto da doença - tem tuberculose, algo, naquela época, fatal.

Tem tudo para dar errado, mas Kafka se apega a essa relação, por um motivo: aquela mulher 13 anos mais nova, que mal viu, uma só vez, está traduzindo um conto seu para o tcheco. Ao fazer dela as palavras dele, se estabelece a ponte.

E ela o traduz tão bem. Neste mundo em que ninguém se interessa realmente pelo outro, ou se importa, ela é capaz de entender, olhar por dentro. E essa relação de trabalho de repente se apresenta como uma estreita possibilidade de amor - e isto vale todos os esforços do mundo.

Em cartas a Milena, que reúne as cartas de Kafka a Milena Jesenská, entre 1920 e 1923 - correspondência incompleta, pois não se conhece as respostas dela -, Kafka aparentemente monologa em busca de amor no mundo inóspito.

Esse é o sentido não apenas das cartas, como de sua psique, traduzida em sua obra, expressão e busca das almas mais sensíveis, o que lhe custou também, provavelmente, a saúde.

Kafka é comumente interpretado como uma espécie de mestre do absurdo - o sujeito que se transforma em barata de A metamorfose, ou perseguido por um sistema tão perversamente sem sentido que ganhou justamente o nome de "kafkiano". 

Milena de fato o conheceu bem. Escreveu, de Kafka, que "ele via o mundo cheio de demônios invisíveis que aniquilavam e despedaçavam pessoas indefesas". Esse é o verdadeiro sentido de toda a sua obra - e das aflições pessoais que o mantinham solitário.

Com certa psicologismo, pode-se entender que a solidão de Kafka vem de certo sentimento de abandono, que manifesta sobretudo em sua Carta ao Pai, outra obra epistolar, em que fala sobre ser constantemente desaprovado desde a infância. O amor então se torna um prenúncio do sofrimento.

Suas cartas, como seus livros, são um rico manancial para os analistas, extremamente contemporâneo, numa época em que, apesar da extrema facilidade de comunicação, as pessoas se isolam cada vez mais e a solidão se torna uma epidemia social.

Kafka é, também, um bom exemplo para quem consegue quebrar esse isolamento por meio de um talento artístico, como uma ponte para superar o medo do outro - isto é, de ver seu amor  novamente traído.

A arte - no caso dele, a literária - é a grande válvula de escape para as tristezas inconsoláveis e as pessoas que facilmente se magoam, encontrando, como alternativa à solidão, um campo salvador (ou misericordioso) para a solidariedade.

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