quarta-feira, 13 de março de 2024

A profissão proibida - 1

Eu tinha 17 anos e era ainda madrugada, quarta-feira, 27 de janeiro de 1982, quando levantei, desci pé ante pé as escadas do sobrado da casa de meus pais e saí, de mansinho, andando pela rua ainda escura até a Praça Centenário, na Casa Verde, onde havia uma banca de jornal.

O Estadão chegava às 5 da manhã e, na praça deserta, havia apenas a luz da banca e o jornaleiro. Tão logo passou o caminhão, comprei um exemplar do Estadão. 

Sentado no banco de cimento da praça, abri eletrizado a lista de aprovados no exame da Fuvest, para o curso de Jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da USP. Corri os olhos pela lista, nervos à flor da pele e, com alívio, mais que alegria, vi meu nome ali. 

Voltei para casa; no caminho joguei o jornal no lixo, entrei fechando a porta tão silenciosamente como tinha saído, me enfiei debaixo das cobertas e, sem falar nada a ninguém, quando começava a clarear o dia, voltei a dormir.

*
Não podia comemorar aquele meu grande sucesso, como tantas vezes depois, por uma razão. Minha mãe, Dona Marlene, tinha um amor do qual ninguém duvidava, mas era daqueles amores de mãe autoritários e possessivos - e ela não admitia que eu fosse fazer Jornalismo. 

"Profissão de pobre", dizia. Meu pai era jornalista. Não éramos pobres, nem de longe. Eu tivera escola o bastante para passar no vestibular em duas faculdades públicas, ambas na melhor universidades - desde o ano anterior, estudava Ciências Sociais na USP. E, muito embora eu não tivesse dinheiro no bolso, nunca tinha me faltado realmente nada importante.

Minha mãe não se incomodava com aquela crueldade implícita de desdenhar da profissão do marido, muito embora com a profissão proibia ele pagasse a maior parte das despesas da família. É que dona Marlene tinha grandes aspirações e seus próprios planos para o filho mais velho.

Estes variavam, mas o principal deles era me fazer casar com a Maria Pia Matarazzo, muito mais velha que eu, mas herdeira solteira da fortuna dos Matarazzo - o que ela me propôs várias vezes, muito seriamente. Hoje dou risada, e me vejo discutindo esse assunto com ela em outra vida, mas naquele tempo era um inferno.

Eu já cursava Ciências Sociais na USP, o que me fazia ler, trazia conhecimento, uma visão mais compreensiva da sociedade - uma forma de desenvolver conhecimento, análise, visão. Porém, essa era apenas a base para o que eu queria fazer de verdade, que era escrever. 

 Além de campo para o exercício das ideias, o Jornalismo dava experiência de vida, por meio da reportagem, e sobretudo a prática diária da escrita, que me permitira, afinal, fazer o que eu queria: viver escrevendo. Não adiantava explicar nada disso a minha mãe. Como em muitos outros momentos da minha vida, ao entrar na Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP, eu estava feliz como nunca - mas guardava essa satisfação comigo.

*
Não me recordo ao certo quando minha mãe soube que, além da faculdade à tarde, eu passaria a ir à USP também pela manhã. Mas eu estava lá, no primeiro dia de aula, depois de tomar muito cedo o Vila Nilo, ônibus que cumpria o trajeto mais longo da cidade, passando pela Casa Verde e atravessando São Paulo até chegar duas horas e meia depois à entrada da Cidade Universitária, no Butantã. 

A ECA ficava num paralelepípedo de cimento, suspenso próximo da reitoria, com um jardim e um lago na frente e, na entrada, uma grande mesa de aço escovado, dessas de açougue, onde os estudantes sentavam ou deixavam suas mochilas, à espera do sinal.

Aquilo estava apinhado de gente e, apesar de já estudar na USP, eu estava maravilhado - aquela gente era a minha gente, afinal. E ali, de fato, fiz muitos amigos e conheci gente com quem passei a conviver a vida inteira e que se tornou importante no mundo das comunicações, numa era de grandes mudanças, não apenas para a comunicação como do Brasil e do mundo.

Eu não estava, no fundo, muito interessado em estudar. Fazendo o curso à tarde, em Ciências Sociais, já estudava muito. Para mim, o mais importante era o diploma, que me permitiria mais tarde trabalhar em um jornal ou revista. Logo no primeiro dia, me enturmei com o pessoal do segundo ano. 

ECA era um mundo à parte. Nos dois primeiros anos, juntavam-se os alunos dos diferentes cursos - Jornalismo, Marketing (onde estava o Billy), Rádio e TV, Teatro. As classes eram maiores e por isso era mais divertido. Nossa primeira aula prática era fazer um cartaz numa velha linotipo que ficava no piso térreo do caixote da Faculdade. Fui eu que escrevi o texto de quatro linhas que mais parecia uma estrofe, montamos as letras de chumbo e rodamos aquela geringonça, na época já uma velharia de museu. Dizia: "Nada a dizer/num mundo onde/ninguém ouve/e ninguém lê"

Todos os dias, uma turma se voluntariava para levar até o primeiro andar, por uma longa e penosa escadaria, o Marcelo Rubens Paiva, que ainda não havia publicado Feliz Ano Velho, e, com sua cadeira de rodas, não conseguia chegar lá sozinho, numa época em que ninguém pensava em acessibilidade. 

Todo dia, três ou quatro de nós o levámos no braço escada acima, junto com o seu acompanhante permanente, cujo nome eu não sabia - só o chamavam pelo apelido de Neguinho. Até que certo dia perderam o pé e todo mundo caiu lá do alto de cambulhada. 

Marcelo passou uma temporada no hospital e, na volta, a direção, por conta dele, mudou provisoriamente o primeiro ano e depois em definitivo o Jornalismo para o edifício ao lado, uma construção térrea, com salas envidraçadas que, por esta razão, chamavam de Aquário.

Não queríamos saber da politica estudantil, viciada nas receitas da esquerda, tão velhas quanto o autoritarismo do regime militar. No primeiro ano, resolvemos organizar uma chapa apolítica, com a finalidade de promover festas, shows, eventos culturais - e desalojar do Centro Acadêmico as chamadas "tendências", correntes partidárias presentes na política estudantil.

Havia na escola um único membro do PCB - João Carlos de Oliveira, o Cao, que estava na escola fazia 7 anos e se tornou quase um estudante profissional. Teimava em querer apoiar a nossa chapa, contra a da Libelu, ligada ao PT, embora recusássemos seu apoio, que mais prejudicava que ajudava, uma vez que não queríamos associação com legenda alguma.

- Mas eu quero apoiar, não há nada que vocês possam fazer para me impedir - dizia ele. 

A chapa chamava ACordaEca, com múltiplos sentidos. O presidente do Centro Acadêmico seria Marcelo Durst, meu colega de classe nas Ciências Sociais, um ano à frente na ECA, onde entrara para cursar Cinema. Durst me propôs ser o diretor cultural; Nem sabia o que estava arrumando e não imaginava também que iríamos ganhar.

AcorDaEca teve seus momentos. Fiz uma festa para arrecadar fundos num dos prédio do Aquário que foi um sucesso - tão grade que se tornou um problema. Começou a a chegar gente estranha à escola e pressenti que a festa ficaria barra pesada por volta da meia noite, quando fui embora, porque esse era o horário limite que meu pai (por causa de minha mãe) me deixava voltar para casa.

Quando voltei, no dia seguinte, limpar a sujeira da festa não foi mole. Ninguém explicava como, um carro que estava no estacionamento da rua amanheceu  dentro do lago em frente à escola.

Quando entrei na escola, a USP andava pichada com a frase "Almeida vem aí". Ninguém sabia quem era o Almeida. Era propaganda: Almeida tratava-se do jornal do Jornalismo, feito pelo CA. Liquidamos aquilo, que tinha viés político. Porém, tínhamos de mandar representantes para os eventos estudantis, que eram só política. AcorDaEca não era política, mas a escola tinha de ser representada. 

O primeiro foi o Coneb - Congresso Nacional das Entidades de Base, em Belo Horizonte.  Durst me entregou cinco mangos do caixa do CA, o que não dava para fazer uma única refeição no Crusp, e passagem de ônibus para Belo Horizonte, sede do Congresso.

- Mas eu diretor cultural - reclamei.

- Não tem mais ninguém pra fazer isso.

Eu não tinha dinheiro de meu para fazer a viagem. Precisei me virar. Desembarquei do ônibus depois de 20 horas de viagem e passei cinco dias  do jeito que podia: sem gastar um tostão furado. Comia de graça no bandejão do congresso. Com não tinha dinheiro  para ir dos alojamentos ao ginásio onde se realizavam os debates, passei a circular de carona com os estudantes de Goiânia, que tinham ido num ônibus fretado.

Eu mal assistia ao Congresso: estava ali para fazer presença. Pegava o ônibus e dormia com a delegação goiana, no chão, em sacos de dormir, dentro de uma sala de aula do Colégio Renault, cercado por um grande e belo jardim arborizado.

Certa noite, saí daquele amontoado de gente, por volta da meia noite, e fui tomar ar no jardim do colégio. O jardim estava silencioso e iluminado pela lua. Súbito, percebi um vulto me seguindo. Uma garota saíra do dormitório improvisado e vinha atrás de mim. Vou chamá-la de G, porque a esta altura deve ser uma senhora bem comportada.

Passamos boa parte da madrugada brincando de esconder, olhando a noite enluarada enrolados num cobertor e  namorando no gramado à luz do luar. A certa altura, porém, G disse que precisava voltar para o dormitório improvisado na sala de aula. Quando sugeri que ela ficasse comigo ali fora, no cobertor, disse que precisava mesmo voltar.

- Meu namorado está lá dentro - explicou.

Aquela inesperada e tardia revelação dificultou minha vida com a delegação goiana. Tive que passar a evitar G quando se encontrava perto do namorado. Felizmente, o congresso já se encaminhava para o final. Eu não voltava de Belo Horizonte sem nada: tinha uma história para contar.

*

Depois do Coneb, foi o Enecom - Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação -, que se realizava aquele ano em Florianópolis. Dessa vez foi mais gente, ou melhor, praticamente todo mundo.

Logo percebi que muitas coisas aconteceriam quando, já no ônibus, uma colega loura de olhos azuis abriu a minha braguilha e enfiou a mão dentro da minha calça, no silêncio do trajeto noturno. Quando chegamos a Florianópolis, e pelos dias seguintes, porém, quase não a vi mais. Era uma daquelas coisas que aconteciam, somente, e depois ninguém falava mais.

Cada sala de aula da Faculdade de Jornalismo virava dormitório de uma delegação. Na primeira noite, dentro do meu saco de dormir, acordei com uma mão passeando pelo meu baixo ventre. 

Quando fui olhar, era um sujeito que eu nunca tinha visto e continuou me importunando, mesmo depois que reclamei. Deixei o saco ali e fui dormir em outro lugar. 

No dia seguinte, em cima do meu saco de dormir, havia uma poça de vinho,  que exalava um cheiro nauseante. Andei querendo saber quem era o estranho que dormia com a nossa delegação e ninguém o conhecia. Diziam que podia ser um "rato" - isto é, um policial à paisana, infiltrado entre os estudantes, para nos espionar.

Dali em diante, passei a dormir cada noite no meio de uma delegação diferente. Na verdade, não dormia quase nada.

De dia, eram os debates. Desde o primeiro dia, fiquei fascinado por X, uma estudante que para mim já era uma mulher. Eminência da delegação de Belém, era conhecida por todos do movimento estudantil, de edições anteriores de eventos como aquele, e presidia as mesas mais importantes, colocando ordem nos debates.

A delegação de Belém, à qual ela pertencia, tinha as mulheres mais bonitas do congresso (e possivelmente do mundo). Isso incluía CS, afiada, inteligente e combativa, bela e esguia como uma náiade, e que mais tarde faria muito sucesso como repórter e correspondente da TV Globo, muito amiga de X.

Porém, eu estava hipnotizado mesmo por X, carismática,  com seu imponente cabelão anelado, nome de imperadora, voz meio rouca e possante, autoridade indiscutível por trás dos óculos de fundo de garrafa - conjunto para um irresistível desafio.

Havia por perto também uma garota da ECA que estava um ano na minha frente, a mais popular da classe, e que parecia ter simpatizado comigo desde o primeiro dia da escola, e no futuro teria também bastante destaque como apresentadora de telejornal numa importante rede de TV. Eu nem imaginava que dava bola para mim, nem quando certa noite me deu seu chapéu de palha, ao estilo dos caçadores africanos, e sua echarpe cor de rosa, para poder ficar livre e ir a uma festa dançar. Levei e usei o chapéu e a echarpe a uma mesa presidida por X e fiz questão de participar da discussão travestido daquele jeito.

- Não apenas apare e assim como ainda pede a palavra  - disse X - vamos ouvir a Greta Garbo.

E passou a me chamar assim.

Certa noite, na minha rotina das noites itinerantes, penetrei de mansinho na sala de aula onde dormia o mar de gente que era a delegação de Belém. Achei X no escuro e me aninhei ao lado dela. Aos poucos, fui chegando. Ela me deixou dar alguns beijos por todos os lugares que procurei e se divertiu comigo um pouco, até me mandar embora, desdenhosa:

- Agora chega, Greta.

Às vezes, eu saia com a turma mais velha, da classe de Durst, que estava lá com o propósito declarado de fazer turismo. Certa noite, fui à cidade com eles, para variar a comida barata e monótona do  bandejão do Congresso. Comemos num restaurante macrobiótico com cheiro de sabão e  brincamos ao lado, numa cidade miniatura, feita para crianças.

Uma tarde, fomos para a praia da Joaquina, com um vento furioso, areia entrando nos ouvidos e um.mar turbulento. Para meu espanto, apareceu o Rato - e sumiu por algum tempo no meio das dunas. Quando olhei, um de nossos colegas tinha sumido junto.

Depois de mergulhar e rolar pelo areal como selvagens, nos encolhemos numa bolha humana para esquentar o corpo e nos proteger  do vento até chegar o ônibus, já alta noite. Nessa hora, somente, a dupla desaparecida no areal reapareceu.

Juntos nos divertimos, nos entusiasmamos e sofremos. No penúltimo dia, a mesa de debates foi ocupada por um televisor daqueles da época, de tubo, e assistimos à anticlimática derrota do Brasil para a Itália na Copa da Espanha, no dia 5 de julho de 1982. A tristeza de perder, quando todos sabiam que tínhamos o melhor time do mundo, se misturou ao clima de Woodstock em que a gente vivia; debatíamos ideias e ações para tirar o Brasil da ditadura e da miséria, e de repente aquela frustração era um duro golpe na esperança.

Acabou o jogo e fomos para o gramado da universidade jogar uma pelada. Joguei como nunca na vida, descalço, como se purgasse a tristeza com o suor, e quisesse mostrar a mim mesmo do que um brasileiro era capaz. Quando a noite caiu, já no escuro, e quase sem ver a bola, continuamos jogando, até a exaustão.

O congresso em Florianópolis fazia a gente sentir que estava mudando o mundo - e mudou realmente muita coisa,  a começar por mim. Na noite anterior à da partida, quando eu vasculhava a mochila, e todos os outros já tinham saído para o jantar, R - a última a sair - virou-se e, de longe, me chamou.

Já tinham apagado a luz da sala de aula, de maneira que ela era quase uma silhueta na porta, contra a luz do corredor. 

- Você volta comigo amanhã no ônibus, não é?

Aquela pergunta, que era um convite, ficou rodando na minha cabeça até a noite seguinte. Eu não sabia o que aconteceria, duvidando que aquilo fosse verdade, ou suspeitando que na hora nada iria  acontecer. Eu, que nada esperava, e passara o Congresso olhando para todos os lados, sem querer olhar para aquele, me vi em terrível expectativa.

Quando entramos no ônibus, R veio e sentou ao meu lado. Foi quase mágica. O ônibus saiu e passamos a noite aos beijos, namorando. R dormiu no meu colo e, 17 horas de viagem depois, quando chegamos, tudo na vida tinha mudado.

(SEGUE NA PARTE 2)

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