terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

A Exploração do Brasil e um caso de polícia


Um homem encapuzado bateu nesta exata janela, na esquina da rua que hoje se chama Cláudio Manuel da Costa, em Ouro Preto, MG, acordando o advogado e poeta, que alugava a casa, naquela madrugada de 1789.

Avisou-o de que o alferes Xavier havia sido preso no Rio de Janeiro, aconselhou-o a fugir e correu 100 metros acima, para dizer o mesmo ao desembargador Tomás Antônio Gonzaga.
Como conto em A Exploração do Brasil (1700-1800, que está chegando às livrarias, Costa preferiu ficar. 

Foi preso e dias depois, após seu primeiro depoimento no inquérito que apurava a conspiração mineira, apareceu morto numa sala na Casa dos Contos, onde cobravam os impostos e taxas na cidade, transformada em cela e quartel improvisados. Ficava um andar abaixo do salão onde os insurgentes se reuniam em noitadas até às três da manhã.

As circunstâncias da morte de Gonzaga, conforme narro no livro, permaneceram em mistério. O legista assinou um laudo segundo o qual Costa teria se enforcado com um cordão de sapato, amarrado a um móvel tão baixo que não lhe chegava na cintura.

Seu depoimento desapareceu dos autos - só reapareceu um século depois. Nele, Costa sugere que o governador, o Visconde de Barbacena, teria flertado com a ideia do golpe. E mais: que toda a milícia de Vila Rica, antigo nome de Ouro Preto, conhecia a conspiração.

Ao receber a notícia da morte do advogado, o vice-rei, no Rio de Janeiro, tio de Barbacena, mandou que os presos fossem transferidos de Vila Rica para a fortaleza da Ilha das Cobras, na baía da Guanabara, onde já se encontrava o Tiradentes, antes que perdesse outras testemunhas.

Costa, patrono da cadeira n. 2 da Academia Brasileira de Letras, pertenceu ao núcleo central da conspiração mineira, intrincado, fascinante e fundamental episódio da história brasileira, narrada com detalhes em A Exploração do Brasil.

Decifrar o que realmente aconteceu, dado que os depoimentos são defensivos e tudo foi encoberto omissões e mentiras, inclusive por parte das autoridades, requereu o esforço de uma reportagem investigativa, realizada em pleno século XXI.
#historia
#historiadobrasil
#aexploracaodobrasil


sábado, 11 de janeiro de 2025

Ainda estou aqui: nós e nossos pais


No dia 1 de abril de 1994, meu pai, Alípio, parou diante da porta baixada do jornal Última Hora, em São Paulo, onde trabalhava como chefe de redação. Um dia antes, vira os tanques pela rua e sabia que o jornal tinha sido empastelado pelos militares, que acabavam de depor o presidente João Goulart. Sentou-se em um banco de praça, no Vale do Anhangabaú, pensando no que fazer, com um filho recém nascido  (eu) e agora sem emprego, no meio de uma confusão.

Muitas vezes , ouvi de meu pai que eu, seu filho, então com dezesseis dias de idade, salvei sua vida. Isto porque, se não tivesse um bebê para criar, teria entrado para a guerrilha, como alguns de seus colegas de jornal e da escola de Sociologia e Polícia, onde fazia a faculdade, à noite. "Provavelmente, eu teria sido morto", me diz.

Jornalista qualificado para a guerrilha, já que tinha sido treinado no serviço militar pelo Batalhão de Caçadores de São Vicente, de onde saiu como cabo, em vez de entrar para a luta armada meu pai foi procurar emprego. Graças à indicação de José Roberto Guzzo, jornalista que conheceu no jornal A Hora, entrou numa editora de revistas especializadas, de propriedade de um americano, "Bob" Lund. 

Com minha mãe, Marlene, professora da rede pública e assistente social, tornou-se outro tipo de ativista: como Rubens Paiva, não participava diretamente do confronto com a ditadura militar, mas colaborava com quem estava nessa luta, fosse com dinheiro, fosse com algum tipo de suporte ou cobertura, como ocorria com o engenheiro e ex-deputado Rubem Paiva.

Era uma rede de solidariedade política, bastante arriscada. No Rio de Janeiro, Paiva ajudava familiares a ter contato com os ativistas da luta armada, como relata Ainda estou aqui, o livro transformado em filme relato de seu filho, Marcelo Rubens Paiva, que conheço desde a faculdade: somos da mesma turma da ECA, a Escola de Comunicações e artes da USP, da qual fazem parte William Bonner e outros jornalistas que ali estudaram a se formaram juntos.

Meu pai teve um destino diferente de Paiva, que foi preso, morto sob tortura, e dado como desaparecido. Trabalhou mais de 40 anos no grupo Lund; pode-se dizer que teve sorte. Como Paiva, se arriscava ajudando seus amigos, na surdina. 

Lembro dele entrando em casa com minha mãe, certa noite, depois de visitar amigos na cadeia do quartel do Barro Branco, em São Paulo. Riam porque tinham levado para os presos uma lata de queijo Palmira, embalado em uma lata esférica, que os guardas chutavam como uma bola de futebol, sem saber como abri-la, para ver se o que tinha dentro era mesmo um queijo.

Minha tia Malfisa, irmã de minha mãe, que também trabalhou em A Hora como revisora, chegou a abrigar um grupo de guerrilheiros em um sítio de sua propriedade na zona rural de Suzano, em meio a pequenas chácaras de japoneses, que plantavam ali hortaliças e verduras. Como bem mostra o caso de Rubem Paiva, acobertar os opositores do regime era tão perigoso quanto fazer parte do movimento: o que os militares queriam, além de desfazer a rede de proteção, era informação para chegar aos guerrilheiros.

Durante muito tempo, meu pai lutou contra a própria consciência; alguns de seus amigos foram presos, torturados, alguns deles mortos. Como Paiva, ajuda à distância, o que nunca lhe pareceu suficiente, já que outros sacrificaram tudo. Quem estava mais certo?

Ele e minha mãe, Marlene, assim como minha tia Malfisa, colaboraram com a luta contra a ditadura também de outra forma, dentro do processo de redemocratização que juntou a velha e a nova geração, da qual fazemos parte Marcelo, eu e tantos outros.

Comecei a trabalhar em Veja sob a direção, acaso ou não, de José Roberto Guzzo, meu mestre em Jornalismo, sem saber naquele tempo da sua ligação pregressa com meu pai. Em 1989, eu era editor da seção de Assuntos Nacionais em Veja, onde ganhamos um prêmio Esso pela cobertura jornalística da primeira eleição direta para presidente em três décadas, naquele ano.

Ao contrário do pai do Marcelo, meu pai sobreviveu para ver o fim desse período de horrores. Muitos patrões da imprensa precisaram defender seus jornalistas da prisão e da perseguição pelo regime, usando como isto a arma que possuíam: o poder do próprio veículo de imprensa, mesmo tomado pela censura.

É célebre no jornalismo brasileiro a frase de Roberto Marinho, desferida quando alguns de seus funcionários passaram a ser ameaçados de prisão: "nos meus comunistas, ninguém põe a mão." Isto, porém, não era garantia para nenhum deles, haja visto o assassinato de Vladimir Herzog, em 1974, outro marco contra as barbaridades cometidas durante o regime militar.

Também meu pai foi, de certa forma, protegido pelo patrão, um americano que ganhava dinheiro no país fazendo revistas especializadas sobre temas como a medicina e a construção pesada. Quando a Constituição foi reformada, no Ato Institucional número 5, que apertou o torniquete da ditadura, todos os veículos de comunicação foram obrigados a publicá-la; meu pai e o pessoal da redação de Médico Moderno, uma revista que nada tinha de política, não queria dar difusão àquilo.

Seu patrão, contudo, conseguiu convencer a redação a ceder, dizendo que era importante que a população tomasse conhecimento da lei que o governo do país estava a lhes impingir, de maneira a que pudessem fazer dela o seu próprio julgamento.

A resistência sem confronto direto afinal venceu, com a transição democrática, ocorrida com a falência do próprio regime militar. Meu pai gosta de citar provérbios chineses, e o do junco que se dobra ao vento e volta sem quebrar caberia bem, nesse caso. Foi uma longa luta, assim o reconhecimento da morte dos desaparecidos na ditadura, ponto inicial para o ressarcimento de familiares daqueles que foram assassinados por crimes de Estado.

A história de nossos pais é o começo de nossa própria história. Somos a geração da liberdade, que viveu o final do regime militar, participou da campanha das Diretas Já e procurou desarmar o país de ideologias, com os antagonismos que levavam aos caos politico, econômico e social.

Defendemos as causas que todos os brasileiros têm em comum. A primeira deles, e nossa maior conquista, precedeu a Constituição de 1988: o restabelecimento do Estado de Direito, que garante a proteção do cidadãos e os direitos fundamentais. 

Sem essas garantias, todos - inclusive quem se acha no controle do sistema - não têm a mínima segurança para viver. A ditadura não era apenas política: era um regime de terror em que nenhum cidadão estava a salvo da arbitrariedade e da truculência, como se pode ver pela história de Paiva e sua mulher, Eunice, cuja trajetória pelo inferno ganha as cores da vida na interpretação brilhante de Fernanda Montenegro.

Para moderar os conflitos, era preciso restabelecer o regime democrático e por fim remodelar a economia, com a reforma do Estado, o fim da inflação e uma certa estabilidade que nos permitir avançar muito na economia. Esse novo desenvolvimento, porém, não era mais nenhum milagre econômico, para um processo de desenvolvimento sustentável, que implicava em um pouco mais de justiça social, pois um país desenvolvido não é o que mais tem riquezas naturais ou mesmo uma indústria moderna, mas cidadãos de primeiro mundo.

Procurei retratar essa nossa tarefa, a tarefa da geração seguinte, marcada pela liberdade, em um livro que trata do assunto como um poema: Asas sobre nós. É o meu relato não dos fatos, mas do que sentimentos: como fizemos, por que fizemos, e o que queríamos.

Um livro que reflete também minha preocupação com a volta dos fantasmas do passado e os perigos de quando um grupo golpista, não importa sua orientação política, instaura um regime baseado na destruição do estado de direito e garantir o poder pela arbitrariedade e, em última instância, a violência.

Deixo aqui este relato porque a história de Marcelo é também a da geração de nossos pais e do início da nossa própria geração. Nós, que estudamos juntos na ECA, procuramos fazer a revolução a nosso modo: trabalhando pela paz, pela igualdade, pela lei, pela liberdade, e um certo equilíbrio capaz de manter o Brasil num rumo estável.

Fazemos isto hoje escrevendo, e lembrando. O reconhecimento de Ainda estou aqui, com livro, ou como o filme, mostra que ainda há muita gente nas fileiras contra a barbárie; revela a quem não viveu aquele período como é viver com medo; e a importância de não voltarmos atrás em algo tão duramente conquistado.

Meus parabéns a Fernanda Torres pelo Globo de Ouro.  Quando uma pessoa lê algo, ela se informa, mas quando vê um filme, ou lê um livro, passa por uma experiência; e a experiência transforma. Ao viver a vida da família Paiva, quem não viveu aquele tempo pode entender como é viver com medo do escuro, e ter uma ideia do esforço que foi sair da escuridão.


É o que precisamos, para manter a chama acesa.


sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Quem é Thales Guaracy, segundo a IA

As ferramentas de inteligência artificial estão melhorando. Perguntei ao Gemini quem sou eu. Foi a primeira vez que veio uma resposta sem erros factuais. E o aplicativo tira conclusões a partir de fatos, não de opiniões. Eis o que deu:

  Thales Guaracy é um escritor, jornalista e cientista social brasileiro. Nascido em São Paulo, ele é conhecido por suas obras de reportagem, romances, contos e poesia.

O que ele faz:

* Jornalista: Trabalhou em grandes veículos como Veja, Exame e O Estado de S. Paulo.
* Escritor: Publicou diversos livros, incluindo a trilogia colonial sobre a conquista e exploração do Brasil.
* Cientista social: Formou-se em Ciências Sociais pela USP e utiliza esse conhecimento em suas obras.

O que ele escreveu:

* Trilogia colonial: "A conquista do Brasil" e "A exploração do Brasil" são obras que exploram a história do Brasil colonial.
* Outros livros: "A criação do Brasil", "A era da intolerância" e "O sonho brasileiro" são alguns de seus outros trabalhos.

Em resumo: Thales Guaracy é uma figura importante da literatura e do jornalismo brasileiro, com uma vasta obra que aborda temas históricos e sociais do país.

 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

O futuro sem democracia

Não é a primeira vez na história que acaba um ciclo democrático: Platão, o grande pensador grego, já defendia uma ditadura de filósofos, pessoas capazes de governar com sabedoria, uma vez que as decisões tomadas de forma coletiva pela democracia ateniense já não respondiam às necessidades da sociedade.

Para Platão, a democracia tinha funcionado por algum tempo, não por mérito do sistema, mas pelas habilidades de um líder - Péricles, que levou Atenas e toda a Grécia à sua era de ouro, fonte de inspiração da civilização ocidental.

Vejo isto mais claramente hoje, tempos após a publicação do meu livro talvez mais corajoso: A Era da Intolerância, que procura identificar a origem e a natureza do processo de ascensão e decadência dos regimes democráticos, no Brasil e no mundo, em busca de soluções civilizadas para o futuro.

O sistema democrático patrocina a liberdade e se coloca como o melhor possível para acomodar conflitos e interesses em sociedades as mais complexas. Porém, depende essencialmente da civilidade e da qualidade do cidadão. Ele tem de ter educação para fazer boas escolhas e aceitar a diferença na igualdade, tanto quanto a igualdade na diferença.

A democracia acaba gerando grandes avanços políticos, econômicos e sociais, mas esse desenvolvimento levou a humanidade a um novo esgotamento. Na escassez, a natureza humana nos leva de volta à defesa de interesses, à disputa pelos meios de produção: o lobo é outra vez o lobo do homem, dizia Hobbes, e a única coisa que nos impede de nos comermos uns aos outros é o império da lei - qualquer lei, mesmo a que se confunde com a barbárie.

Quando a lei não parece o bastante para garantir direitos, ou as dissensões são tão grandes que uns se apropriam a lei para usá-la como um poder coercitivo, a democracia torna-se falsa - mera carapuça para um sistema opressivo e potencialmente não apenas ditatorial, como totalitário.

Esta é a situação das democracias do mundo hoje: a população cresceu e a massa ignorante, por falta de educação, ou porque a influência das redes sociais é capaz de lobotomizar e transformar os cidadãos em uma massa mesmerizada, favorece os projetos obscurantistas. Por trás deles, há o interesse de uns poucos, que se apropriaram agora do que é o maior capital da vida moderna: a inteligência, seja a digital, a artificial ou a humana.

O processo de idiotização da massa popular serve a interesses monetários, protegidos por redes de poder onde a manipulação da comunicação social por via digital exerce papel preponderante. As democracias de hoje, inclusive no Brasil, são sistemas dissimuladores do fato de que há uma pouca gente os controla. A ilusão de que as pessoas podem se manifestar livremente pelas redes sociais é isto: ilusão. De nada serve ser livre, se isto está a serviço de repetir as mesmas mensagens, geralmente mentirosas, bombardeadas na audiência pelos seus artífices.

A solução seria devolver educação ao povo, como forma de discernimento, mas isso parece cada vez mais difícil. Isto começa pelo controle da mídia, e a falência financeira da imprensa, cada vez mais dependente do poder público, de forma que perdeu sua independência.

 À sua crise financeira, que vem da falta de interesse das pessoas (leitores) em notícias de verdade, somam-se as campanhas de destruição da credibilidade pela indústria do ódio e das fake news.  Nunca houve perseguição, patrulhamento e constrangimento tão grande do livre pensamento quanto nesta era em que qualquer um pode aparentemente ser livre para dizer o que quiser.

O processo de tomada da superestrutura intelectual que agrega a sociedade humana ganhou ovos mecanismos com a rede digital, inicialmente projetada para a informação e a liberdade, mas que, como virtude do sistema democrático, permite que tal máquina seja usada contra a democracia e a própria liberdade.

Com a imprensa, vai ruindo um pilar essencial de defesa da democracia. A educação também seria importante para desmontar o mundo de mistificações em que vivemos. Porém, a escola tem se tornado cada vez mais inócua no processo de formação do cidadão.

Quem sai hoje do segundo grau não tem nenhum gosto pelo conhecimento. as mais novas gerações parecem não se interessar por nada, ainda que esteja em jogo seu destino. Não há um professor capaz de entusiasmá-los com assunto algum, nem convencê-los a ler, ou estudar. Para que fez do livre pensamento a própria vida, como eu, há um gosto amargo de fracasso, como revelo em outro livro, este de poesia: Asas sobre Nós.

Como missão coletiva, nós da geração da liberdade, que tiramos o Brasil do regime militar e o devolvemos ao estado de direito e à democracia e à liberdade, estamos diante de um inacreditável mas galopante retrocesso.

Fracassamos coletivamente, ao fazer um país em que o povo não tem qualidade, nem para votar: e disso depende o regime democrático. O que vemos hoje - essa contrafação de democracia que avança sobre o Brasil e mundo - é somente uma manipulação obscurantista da massa de idiotas que ainda chamamos de povo.

Quem dera pelo menos um governo de filósofos, como queria Platão, depois do fracasso da democracia ateniense. Uma democracia ainda depende de um povo de qualidade, que saiba fazer escolhas. Uma falsa democracia, porém, apenas manipula idiotas, e não há filósofos, nem no poder.

O uso de conceitos velhos e binários como de direita e esquerda mostra o despreparo da própria elite intelectual para solucionar a crise democrática, e assim deter o avanço do obscurantismo de caráter totalitarista. 

Não se trata de esquerda ou direita, mas de ter uma sociedade que permita o desenvolvimento humano, um país decente, sem fome, com segurança, qualidade de vida. Não se resolve os problemas da humanidade aniquilando-a, mas preservando o que temos de melhor: justamente o que chamamos de humanidade.

Esses conceitos ultrapassados que voltaram a ser usados só mostram o atraso da intelectualidade, que usa ferramentas velhas para explicar fenômenos novos, e nada novo é resolvido com ferramentas antiquadas. O resultado está aí:  ninguém entende nada, ninguém se entende, os aproveitadores lançam o caos para tomar o poder e as soluções reais estão cada vez mais longe.

No Brasil, o governo de Lula ao menos percebeu que o capitalismo da era digital vai nos levar à extinção humana e nenhum país resolverá o problema sozinho. Daí para baixo, tudo o que se faz só acrescenta ao desastre, como se o problema se resumisse a aumentar a receita do Estado para alimentar programas assistencialistas.

Meu livro A Era da Intolerância vem sendo adotado em escolas, é o que ofereço como minha pequena esperança. Talvez daqui a 20 anos alguém entenda o que está escrito ali, se é que haverá mundo. Hoje, esta possibilidade, que antes parecia piada, se coloca como uma ameaça iminente.

Na ditadura da ignorância, os governantes são igualmente ignorantes; assim caminhamos para a barbárie, desta vez com poderes nucleares. Só um louco disfarçado de bilionário como Elon Musk acha que o futuro da Terra está em Marte: levaremos conosco para o espaço a discórdia e nossa capacidade de auto destruição. Sem democracia, sem imprensa, sem justiça, sem bom senso, o futuro é sombrio: porém, eu sei por experiência própria que das cinzas os bons ideais sempre renascem.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Maguila e a derrota de uma nação

O ex-pedreiro​ Adílson "Maguila​" Rodrigues lutou a vida inteira. Para chegar ao boxe e ter uma oportunidade melhor. Lutou no boxe. E lutou depois, contra as consequências do boxe.

É triste um homem ter que entrar numa rinha de galo para poder levar comida para casa. Eu já fui fã de boxe, por justamente expor de forma explícita  a luta humana, como um esporte. Hoje, só não desprezo mais que o MMA, que está ainda mais perto da selvageria e, creio, a incentiva. 

A normalização da violência faz com que seja preciso cada vez mais violência, para chamar a atenção, ganhar audiência. Estamos voltando, em plena era tecnológica, ao Circo Romano.

Numa era em que a luta deve ser contra a luta, isto é, pela paz, qualquer demonstração de incivilidade me parece que vai na direção contrária do que deveria ser a história.

Pobre Maguila, vítima de um tempo em que a brutalidade é normal. Em vez de acabar com a pobreza, matamos. Sobretudo os que mais precisam do apoio  da sociedade.

Não haverá civilização digna desse nome  enquanto alguém precisar usar os punhos para ganhar a vida. Não haverá nação que mereça este nome enquanto houver guerra. Não importa se os mortos são crianças, mulheres, velhos ou soldados. Soldados foram crianças, e serão velhos, se sobreviverem. Nenhuma morte se justifica.

Só há no mundo uma guerra justa: é pela educação. Maguila dizia, com orgulho, que era pobre e ignorante, como um vencedor que veio de baixo. Sua humildade e seu português claudicante, confundidos com simplicidade, foram sua marca. Porém, essa marca não é a da vitória esportiva ou pessoal. É a do atraso. 

Ao morrer, aos 66 anos, depois de sofrer muito tempo com as sequelas dos golpes que levou na cabeça, para mim Maguila infelizmente não é um herói do esporte. Simboliza apenas a estupidez e  a desumanidade.

A morte de Maguila é a derrota de uma Nação. Que sirva para cada um refletir sobre o que gosta de ver, o que apoia, o que crê, o que quer de um país,  ou para seus filhos. A sociedade é feita de cada um de nós: criança, mulher, velho, soldado.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Olivetto e o negócio do prazer

Certa vez, na revista VIP, que eu então dirigia, pedi a Washington Olivetto que escrevesse um roteiro do que gostava de fazer em Nova York. Ele escreveu um texto com uma série de endereços do que havia experimentado na cidade - e que considerava não o melhor de Nova York, mas do mundo. Assim, o hambúrguer do Broome Street Bar (que comi muitas vezes, depois, quando morei lá) não era apenas o melhor hambúrguer de Nova York, mas do planeta, feito na brasa, na grelha, servido dentro de um saquinho de pita bread. E não havia outro igual, até porque tinha de ser comido naquela esquina ali, e só ali.

O melhor do mundo era o do mundo de Washington, porque seu negócio era dizer o que era melhor - e a partir de certa altura, o que ele dizia, ficava sendo. Essa inclinação para indicar o melhor vinha do seu interesse pela vida, fonte da inspiração legendária daquele que foi considerado o melhor redator de publicidade do Brssil de todos os tempos - e depois um dos maiores donos de agência também.

Ele gostava da vida, o que o levava a se interessar pelas coisas, pelas ideias, pelas pessoas - profundamente. Essa vida vivida intensamente e a busca pelo maravilhoso ou especial é a fonte de toda criação, aplicada aos mais variados assuntos - qual o melhor sutiã para adolescentes, por exemplo, ou a melhor palha de aço.

Assim Washington colecionou leões de ouro, fama, dinheiro, mas principalmente  amigos: conquistou a vida. Mostrou que o cuidado e o interesse por tudo está por trás da qualidade e que o sucesso profissional vem mais fácil quando você apenas está desfrutando a vida. Gostava de tudo, de música (W/Brasil nasceu junto com a música de Jorge Ben Jor e as trilhas eram a alma dos comerciais) à literatura, comida, os hotéis, o cinema, enfim, tudo o que enriquece e dá mais valor à vida.

Washington faleceu domingo passado e é com pesar que escrevo, sentindo já sua falta: aquele jeito de sorrir com um nariz enrugado, o cabelo sempre despenteado de professor maluco, a cabeça girando a mil. O estilo era dele, mas o jeito de fazer bem, como extensão do prazer da vida, essa é a propaganda que ele fez de si mesmo e vai durar para sempre.

#washingtonolivetto
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sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Marcelo Ariel e a realidade rasgada

O poeta e dramaturgo Marcelo Ariel está na mesa do II Festival de Poesia promovida pelo departamento de Letras da USP, com o tema "poesia contemporânea". Tarde quente de sexta-feira, há uma breve paz entre cartazes da guerra ideológica, pregados nas paredes da honorável escola. Com um chapéu de palha de lavrador e camiseta de Miles Davis, ele fala.

Fala, não; ou não apenas fala. Coloca som de pássaros como sonoplastia, canta, declama. Diz que ele mesmo, Ariel, é o cavalo de Exu e seu objetivo é a destruição, para a substituição da realidade por um "mundo digno". Lê um poema inédito: o "vazio vai iluminar o Brasil". 

Acaba de lançar um livro pelo Círculo de Poemas (A água veio do sol, disse o breu), onde há poesia que poderia ser chamada de "negra", por tratar do tema e promover essa voz. Para ele o negro não é um tema político, é a vida.  "Como ser um negro II" é o poema em que ele escreve como sua própria mãe, até o dia em que nasce, um livro que pretende "não terminar nunca".

A poesia de Ariel, porém, vai além dos temas da diversidade: ela é  ponto de partida para o universal. Não defende um interesse, um gênero,  uma raça: sua poesia é filosófica, humanista, geral. Expulso da escola, ele diz ter se formado na rua, a "universidade desconhecida". Diz representar o "pensamento coral" e fazer parte de um "oceano de vozes contrárias".

Tem o privilégio de pertencer à corrente dos poetas contemporâneos ainda vivos, o que lhe permite estar em todos os lugares, ao mesmo tempo em que, como um poeta sem tribo, ou da tribo de um só, está em lugar nenhum. Ele me confirma algo que digo há muito tempo: o poeta é um ponto infinito.

Os vivos se ligam ao seu tempo, e isso deve ser a "poesia contemporânea". Ariel escreve sobre os "transe-entes" da vida, que não enxergam o que ele enxerga e, portanto, não sabem ou não entendem viver. Em busca da clarividência, evoca novos significados e combinações da palavra, suas conjugações, produzindo novos sentidos para o mesmo. Invoca os mistérios inexplicáveis. "O corpo é o nosso pajé", diz ele. É um feiticeiro e também um Quixote, contra os moinhos da ignorância. 

A busca semiológica da poesia no mundo de hoje quer, diante de tanta informação, encontrar novos significados, ou que sejam de novo verdadeiros. Num mundo sem verdades,  ou de pós-verdades, a própria palavra perde seu sentido original: porém,  da sua recombinação, vêm novas edificações mentais e emocionais.

A diferença de Ariel para outros é que ele usa a beleza da expressão para rasgar a realidade. Há no seu desconcerto a intenção de destruir o mundo conhecido: um sentimento que não é do negro, mas da contemporaneidade. Intencionalmente ou não,  essa realidade rasgada como papel picado forma uma nova massa reciclável, transformada em energia, fonte do mundo de Ariel, ou pelo menos do mundo como gostaria que fosse. 

A poesia contemporânea não existe: existe só o poeta, o vivo e o morto. E a arte, a única realidade, objeto de seu trabalho. Na sua confecção,  Ariel não inventa palavras, como os neologistas do construtivismo, que desconstruíam e reconstruíam a palavra como tijolos semânticos de edifícios  inesperados. Mas a usa como arma, até contra ela mesma. "O problema é a linguagem" diz ele. "Precisamos fazer um curto circuito da linguagem."

Coloca o desafio de trazer o sonho para a realidade. "Essa é a grande viagem", diz. Nesse esforço geral para transformar o visto em não visto, Ariel ataca a ordem com fúria niilista. O Breu do título do livro "é nossa memória mais antiga", explica. É a escuridão, mas ele deixa entrever um pouco de fé: a regurgitação do velho pode produzir não apenas algo reciclado,  mas o novo, e o melhor. 

A transcendência da realidade pela poesia é a nova realidade. Exalta a "vida livre", e a "erotização da vida", tudo o que a faz valer a pena. Esse tudo virá de novo do Big Bang poético: tudo virá do nada. A esperança é esta: "o Breu renovará nossa vida".