terça-feira, 18 de junho de 2024

Ricardo Castilho: tintin

Ricardo Castilho sentou à minha frente, do outro lado da mesa de trabalho que eu dizia habitar, num edifício na marginal do rio Pinheiros onde hoje há um laboratório médico Diagnósticos da América. Na época, ele era editor de Playboy, da Editora Abril, um dos maiores especialistas em vinho da imprensa brasileira, responsável pelos célebres rankings da revista, e eu era o diretor de uma editora de publicações de estilo de vida entre as quais estava Gula, então a mais prestigiada revista de gastronomia do país.

- Gostaria que você viesse trabalhar aqui.

Castilho, que eu conhecia dos meus próprios tempos de Abril, deu risada. A Abril era quinhentas vezes maior que a editora onde eu trabalhava. Gula ser a maior revista de gastronomia do país não queria dizer grande coisa. Vendia 6 mil exemplares em banca e lutava para ter outro tanto de assinantes. Playboy chegava em certas edições a vender 1 milhão de exemplares. Ele tinha um emprego sólido, estável, num dos melhores lugares para se trabalhar, não apenas da imprensa, como do país, quem sabe do mundo. Gostava do que fazia, e de onde estava. E muito.

- Eu estou na Playboy! - ele disse.

- Eu sei. Mas vou pedir pra você pensar.

- E como você pretende me convencer?

- Só vou te fazer uma pergunta: quando aquilo que você faz vai sair na capa da tua revista?

Duas semanas depois, Castilho estava comigo, em Gula.

Saí da editora quando ela estava sendo fundida com a editora Peixes e ele, insatisfeito com a nova configuração, logo depois saiu também. Conosco, Gula tinha mudado. Rejuvenescera, criara novos serviços, vinha crescendo - tinha 16 mil assinantes. Na Peixes, queriam que voltasse ao que era antes. Castilho resolveu continuar a revista que fazíamos, mas sozinho, em outro lugar.

Juntou-se a dois outros corajosos amigos - a jornalista Mariella Lazaretti e seu marido, brilhante empreendedor, Georges Schnyder -, e eles botaram na revista que Castilho fazia, do jeito que fazíamos, o nome de Prazeres da Mesa.

Agregaram ao negócio o que já vínhamos fazendo em Gula - uma parceria com eventos que, no caso de Gula, na época se chamava Boa Mesa, evento gastronômico iniciado por Josimar Melo. E, corajosamente, Castilho e seus parceiros seguiram em frente, saindo do zero.

Vinte anos depois, posso dizer que Castilho se tornou um de meus maiores orgulhos. Gula e Playboy acabaram. Prazeres da Mesa ainda existe - e como. Ainda publicada em papel, tem hoje 361 mil seguidores no Instagram, um número que jamais imaginaríamos, quando fazíamos Gula.

Com seus parceiros, Castilho tornou-se indiscutivelmente o maior editor de gastronomia do país. O que ele fazia nunca mais deixou de ser capa.

Ele foi isso, e muito mais que isso. Era dual, risonho mas às vezes meio rabugento. Porém sempre ético e trabalhador ao extremo - disposto a colaborar, a resolver, a qualquer custo. Amava o que fazia. E tínhamos algo mais em comum: a paixão atávica pelo Palmeiras, nosso time do coração.

A notícia de que Castilho faleceu de repente esta manhã é dessas coisas que beiram o inacreditável. Esta foto que eu coloquei aí deve ser do Ricardo D'Angelo, que começou a trabalhar conosco lá atrás, em Gula, e colocou em prática o estilo e a qualidade visual que queríamos em Gula e também na revista de Castilho.

Contei uma história profissional do nascimento de um negócio no qual penso como se fosse também quase meu. Mas Castilho que fez, e fez muito mais que isso: era um grande homem, honesto e amoroso, e , para mim, um amigo indispensável. O que ele fez fica, mas sua falta me deixa indignado com a atrocidade do destino.

Prefiro pensar nele como se estivesse ainda ali, com taças a tilintar, num memorável jantar em minha casa, com um grupo de confrades, em que bebemos uma inesquecível garrafa de Montrachet e consumimos mais de um quilo de sobremesa cada um.

Ricardo: tintin.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Kafka 100 anos depois

 

Há 100 anos morria Kafka, num asilo para tuberculosos, aos 50 anos de idade. As cartas que escreveu para Milena Jesenská, uma jornalista casada, por quem se apaixonou pela empatia criada durante o período em que ela o traduzia do alemão para o checo, mostram bem como foram seus últimos anos. O fato de Milena não deixar o marido, contra as expectativas criadas nos encontros que a distância dificultava, traz à tona a principal característica de Kafka, tão presente na sua literatura: o desejo de amor, ou de entendimento, que para ele era o sentido do amor - sempre irrealizado, ou incompreendido, talvez impossível.

Essa impossibilidade do entendimento, ou do amor genuíno, é o que causa a estranheza do mundo kafkiano. A crueldade do mundo destrói sua inocência e seus melhores sentimentos: consome. Milena o conheceu bem; descreve Kafka como uma alma frágil que via "demônios" em toda parte.

"Kafkiano" virou sinônimo de absurdo. Mas o que é absurdo, para Kafka? Não sabemos se estranho é o mundo que ignora e atropela os sentimentos de cada um, ou se o indivíduo mais frágil que é estranho a um mundo tão duro.

Essa dúvida, presente em toda a obra, as cartas e a vida de Kafka, fez dele um dos maiores autores contemporâneos e, como Orwell, um profeta do mundo atual. Hoje o meio digital expõe a privacidade como nunca e coloca todos em comunicação permanente, mas, como ele apontou, a solidão e o sentimento de abandono e impotência nunca foram tão grandes na vida humana.

Seja diante da família indiferente de Metamorfose,  seja sob o opressivo sistema condenatório de O Processo, o ser humano de Kafka se contrapõe à desumanidade dos outros, ou do sistema, que se impõem. A necessidade de amor é tão maior quanto a sensação de incompreensão. Mas será a sua frágil alma que inventa as coisas ou o mundo é realmente impiedoso?

O solitário Kafka escrevia cartas a um amor impossível enquanto lentamente morria.  Sua obra é uma defesa do amor, da compaixão, da humanidade, e é também um alerta. Alguém que morreu sozinho e jovem hoje fala com muita gente - mas é tarde demais, para quem precisava disso, tanto, em vida.

terça-feira, 14 de maio de 2024

Para onde vai o mundo

A Ética da Discussão e a Questão da Verdade, uma reunião em livro de palestras proferidas em 2001 pelo filósofo alemão Jürgen Habermas, por essas razões que só a vã filosofia explica, continua extremamente atual. No evento Revistas Perdidas, no Centro George Pompidou, em Paris, Habermas discorreu sobre um tema cada vez mais essencial e desafiador no mundo contemporâneo: como manter a sociedade unida e organizada, ao mesmo tempo em que o multiculturalismo ganha força.

A ordem social, como se sabe, depende de códigos em comum, respeitados por todos. A democracia contemporânea pressupõe, nesse concerto, a igualdade de direitos e deveres para todos. Ocorre que essa igualdade sempre esteve longe de ser perfeita e interesses de grupo, prejudicados no passado ou no presente, ganharam força - especialmente em função da comunicação digital, que empoderou grupos de interesse, abrindo divergências de pontos de vista dos antes oprimidos ou simplesmente ignorados.

Como empoderar minorias e extirpar práticas e comportamentos do passado, como descolonizar nações, sem retirar a ordem que mantinha a sociedade unida, e ao mesmo tempo evitar que a discórdia e as disputas causem uma profunda fragmentação e joguem o mundo no caos político-social?

O ser humano é o único animal paradoxal: ao mesmo tempo em que precisa da sociedade, quer exercer sua individualidade por meio da liberdade. Sua realização se dá tanto pelas suas aspirações individuais como coletivas.

Diz Habermas que fracassou o projeto Iluminista, cujo grande resultado são os regimes democráticos da era contemporânea, instaurando a cidadania e o direito individual. A democracia atual, adaptada da antiga Grécia com um sistema representativo mais sofisticado para uma sociedade mais numerosa e complexa, não deu conta de promover a igualdade, muito menos riqueza para todos.

Pode parecer fracasso, mas, como digo no livro A Era da Intolerância (editora Matrix), os males da democracia contemporânea são resultado do sucesso. O resultado do Iluminismo e da democracia dele frutificada foi proporcionar grandes avanços para a sociedade - como a redução da mortalidade, o aumento da expectativa de vida, o aperfeiçoamento da tecnologia numa escala jamais vista e, por fim, uma série de mudanças sociais.

Caem estruturas, como a relação entre "patrão e empregado", da mesma forma que no passdo caiu a escravidão. Questiona-se todo tipo de situação desigual, movimento que levou ao fim patriarcados ou matriarcados e vem criando um "empoderamento do oprimido", seja por sexo, cor, raça, cultura: a mulher, o gay, o negro, o indígena.

Como acomodar interesses numa sociedade que vem de diferentes vértices da história e da cultura e conciliar "identidades individuais e coletivas"? A valorização do pluralismo cultural, com o respeito à perspectiva de diferentes povos ou grupos, torna-se também um desafio para a manutenção da agregação social, ameaçada pelo sentimento de submissão de uns a outros.

"Devemos então procurar saber como cada um dos demais participantes procuraria, a partir do seu próprio ponto de vista, proceder à universalização de todos os interesses envolvidos", diz Habermas. Daí a necessidade do diálogo construtivo que ele propõe.

A ideia iluminista de que "uma pessoa só é livre quando outros são livres igualmente" vem sendo atacada pelas correntes sócio-políticas para as quais é preciso restaurar a ordem por meio de alguma forma de autoritarismo. Há uma crítica da democracia pela própria democracia e um movimento de ressurgimento do conservadorismo, entendido no sentido que lhe deu Schopenhauer, de busca pela restauração da ordem. 

Ao mesmo tempo, grupos extremistas procuram semear o caos, para surgir como solução e apoderar-se das posições de comando - a história de todos os golpes totalitários, que, para derrubar a democracia, atacam a sua própria base, que é a liberdade e a igualdade, e a base destas, que é o princípio iluminista da razão.

O Iluminismo não é um fracasso, ou o fracasso da razão. Ao contrário, gerou grandes avanços. Estes, porém, por sua vez, criaram novos e maiores problemas. Num mundo que prosperou muito e gerou grandes riquezas, surigiram também grandes distorções, especialmente uma concentração de riqueza semprecedentes, com equivalente desigualdade social.

Para ssanar esse cenário, sem perder o rumo democrático, Habermas nos aponta a saída. Como Bartley, discípulo de Karl Popper, adota a ideia de uma ecologia da racionalidade, como uma aliança para a organização social.

Habermas propõe uma "ética da discussão", com o objetivo de "nos proporcionar uma nova formulação do projeto kantiano de estabelecer um fundamento objetivo de normas práticas". Creio, que, em 2001, o filósofo não imaginava que, na era da informação, a discussão poderia ser utilizada também para fomentar o ódio, disseminar mentiras e manipular a opinião pública, como meio de desestruturar a confiança na democracia e criar condições para golpes de fundo totalitarista, em países como o Brasil.

No entanto, ele já apontava para a substituição do "paradigma kantiano da subjetividade" (um comportamento em comum a todas as pessoas, que aceitam normas às vezes não explícitas sem discuti-las, e para o filósofo Immanuel Kant seriam a base da socialização) pelo "paradigma da comunicação" como elemento essencial para a formação dessa consciência coletiva comum - e o concerto entre os interesses de grupo e os interesses gerais.

A preocupação de Habermas, que é o grande dilema do pensamento contemporâneo, é como preservar o Estado, e a gestão dos interesses em comum, criando um equilíbrio que permita ao governo funcionar. E tem de funcionar, já que todos, seja qual for sua cultura, cor, credo ou posição social, dependem de água potável, pavimentação nas ruas, segurança e outras atividades que, para serem mantidas e geridas com equidade, dependem de um consenso social mínimo.

O entrechoque de interesses, com a disputa pelo controle do Estado por um grupo específico, em vez de representar e pesar as diefrenças da sociedade, sempre existiu. No limite, ele leva aos caos.  Em alguns países, especialmente o Oriente, como a China, a agregação social foi mantida por regimes de opressão, que, na virada do Século XX para o XXI, tiveram no entanto de se permitir alguma distensão, face às crises internas criadas pelo dirigismo estatal e face ao progresso do mundo livre ocidental.

Porém, chegou a vez da democracia contemporânea ser desafiada a evoluir para uma sociedade que aumentou sua complexidade e desenvolveu novos mecanismos de participação, organização e manifestação, numa velocidade muito maior do que a do antigo sistema representativo, que assim perdeu muito da sua legitimidade. 

Com isso, o autoritarismo voltou a ser tornar uma sombra, não apenas nos países onde sempre vigorou, incluindo a Rússia, como nos próprios países democráticos. A começar pelos da América Latina, com uma história recorrente de apelação aos militares e outros instaladores da "ordem", geralmente com a aplciação da violência. Os defensores do emprego da força esquecem que a abolição do Estado de direito faz com que no dia seguinte os próprios aplicadores da ditadura no dia seguinte podem ser vítimas dela. Num regime de terror, ninguém está a salvo. 

Habermas observa que a democracia do mundo novo deve promover as condições "econômicas, sociais e culturais que garantam uma participação abrangente e competente de todos os que podem ter algum interesse no discurso prático; e, em segundo lugar, a condição de que cada parte disposta a aceitar as normas intersubjetivamente reconhecidas possa contar com que todas as demais partes interessadas se comportem da mesma maneira". 

A "intersubjetividade" de Kant, ou a "metamoral" de Habermas, que formam esse corpo psicossocial onde estão regras não ditas e que agregam a sociedade, são justamente a área em que os ideólogos da comunicação de massa na era digital trabalham, de forma a mobilizar as massas em torno de projetos antidemocráticos. A repetição de bandeiras pela disseminação do ódio e a desestabilização da sociedade organizada vigente, que visam o golpe e a instalação de grupos de interesse no poder, procura modelar justamente essa consciência coletiva invisível, com instrumentos de comunicação que não existiam ao tempo da propaganda nazifascista, muito eficiente para sua época.

Muitos teóricos hoje falam em "plasticidade neural", isto é, na mudança do próprio cérebro humano, como uma máquina que se adapta às influências externas, passando a funcionar de uma forma diferente; o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis menciona em sua palestras o que chama de uma "rede neural", que conecta os seres humanos e pode provocar movimentos coletivos, da mesma forma que as formigas se orientam para uma mesma tarefa ao mesmo tempo, sem nem mesmo comunicação.

Para Habermas, o espaço onde as diferenças são resolvidas ainda deve ser o da democracia constitucional, e não no âmbito da "teoria moral". Contra os profetas da "terra plana", da anti-razão e do ati-Estado de Direito, é preciso uma defesa da razão, para que as questões possam ser sanadas de forma pacífica dentro de "um Estado constitucional em que o reformismo democrático é institucionalizado como parte normal da política".

Assim, "os cidadãos que se dedicam à realização desse projeto conjunto podem, com coerência, promover a melhoria das condições de acesso à política deliberativa e participação nesta, ao mesmo tempo que podem racionalmente esperar que as normas sejam devidamente respeitadas".

*

Pode-se dizer que esta é a visão otimista do problema, uma saída dentro do que Habermas chama de "padrão evolutivo da modernização social e cultural". Ele defende a criação de uma"teoria da ação comunicativa" para o aprofundamento do estudo da crise, bem como de uma "teoria da racionalidade" e uma "teoria moral".

Vê uma convivência possível entre as diferentes culturas que pedem espaço e afirmação na sociedade contemporânea, ao mesmo tempo em que se mantém uma"cultura política geral", que "deve ser comum a todos os cidadãos para que a sociedade possa conservar-se".

Essa cultura, no entanto, depende essencialmente do bom funcionamento do Estado, que sofre por sua incapacidade de atender a todas as demandas da sociedade multicultural e também da economia digital global, subtraindo meios e recursos dos Estados nacionais. Isto faz com que a sociedade passe a ser progressivamente dominada por auto-organizações paralelas ao estado, supostamente "protetoras" de grupos de interesses, em especial as igrejas e o crime organizado.

Habermas nota que o Estado tem falhado inclusive no estabelecimento de um "Estado incolor", como promotor da igualdade racial, modelo que vem sofrendo uma "revisão". Cita Will Kymlicka pelo desenvolvimento da noção de "cidadania multicultural". 

Tal conceito viria a abraçar uma nova visão dos direitos civis, onde a noção geral de igualdade passa a considerar que os "cidadãos desenvolveram sua identidade pessoal no contexto de certas tradições, em ambientes culturais específicos, e que precisam desses contextos para preservar sua identidade".

Nesse sentido, propões incluir dentro dos direitos civis também "direitos culturais", que "garantem o acesso a uma tradição e à participação nas comunidades culturais de sua escolha, para que possam estabelecer sua identidade".

Não é uma tarefa simples, sobretudo pelo fato de que, para a implantação de qualquer mudança, é preciso passar justamente pelas dificuldades da "ética da discussão". "Esse modelo, como é óbvio, leva em si o perigo intrínseco da fragmentação", afirma Habermas. "Uma comunidade não pode se fragmentar na multiplicidade de suas subculturas, e penso que isso so pode ser permitido sob a condição de que todos os cidadãos possam se reconhecer numa única cultura política que transcenda as fronteiras de sua diversas subculturas".

Tal disposição é ainda mais importante nas sociedades onde as culturas reconhecidas como"minoritárias" estão em conflito com as majoritárias. "Do ponto de vista histórico, é evidente que a cultura da maioria sempre determinou (refiro-me à França) a cultura política em geral", afirma o filósofo. "A partir do momento em que as subculturas reprimidas tomam consciência de suas tradições específicas e uma cultura supostamente homogênea dá lugar a uma sociedade cada vez mais 'multicultural' (no sentido atual do termo), as pressões de adaptação tendem ao menos a uma certa separação entre a cultura política e a cultura majoritária".

Não é nada fácil, porém, a tarefa de agregar a sociedade digital, sobretudo em função da ação da guerrilha que procura minar as condições da sua própria discussão, que é a racionalidade e a sua base, a noção de verdade. 

Verdade, para Habermas, é uma "proposição verdadeira, para sempre e qualquer público, não só para nós". Ele assim derruba a noção de pós-verdade, ou da ideia da "verdade de cada um", retomando a relação entre a noção de verdade com o do fato científico, objetivo, e que pode ser empiricamente comprovado.

Não se trata também da verdade "moral", religiosa, que justifica tudo, e à qual não cabe discussão, mas um conceito que pode ser aceito por toda a sociedade, independentemente de crenças e avaliações morais e subjetivas, de forma a preservar a própria noção iluminista de igualdade. Nesse sentido, a noção de verdade não pode se dissociar da "argumentação, no contexto do mundo vital das práticas cotidianas".

Para minar a democracia, os grupos de interesse têm atacado a noção de verdade e a própria razão, que é base da igualdade, pois não há motivo para se acreditar que alguém tenha mais direitos que os outros, como aponto em A Era da Intolerância. Ainda não há nenhum sistema melhor que a democracia como campo para solução pacífica de conflitos, e o reformismo onde a convivência entre o multiculturalismo e a "cultura única" (representada pelo Estado democrático) proposta por Habermas me parece uma boa saída.

Quem disse, porém, que a humanidade resolve suas grandes questões de forma pacífica? Receio que tenhamos, nós da geração da liberdade, criado e desfrutado de um período relativamente pacífico e próspero, mas que tenha sido apenas um breve parênteses na história. E que este animal bípede, terrível espécie dominadora da terra, movido por uma "metaconsciência" que dispara comportamentos coletivos violentos, no limite brutais, jamais vá perder sua dose de selvageria ancestral.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Senna e um aperto de mão


 Eu não estava esperando, e talvez por isso me lembre ainda mais, como se fosse ontem - ou melhor, hoje, agora. Eu trabalhava numa revista de estilo de vida, eles estavam trazendo para o Brasil a marca Audi. Na sala de Leonardo Senna, irmão do Ayrton, em seu escritório no bairro de Santana, de repente, sem bater na porta, ele entrou. Levantei, Ayrton veio, me deu um sorriso, e apertou minha mão.

Um simples momento, do qual eu lembro até hoje, uma sensação difícil de descrever. Como é difícil de descrever a importância que Ayrton tinha naquele tempo, em que o Brasil lutava para sair de uma crise penosa, desacreditado de si mesmo, e ele levantava os brasileiros, carregando a bandeira do país, a cada vitória. Mostrava que o Brasil ainda podia ser o melhor, e que podíamos fazer coisas fantásticas, podíamos acreditar em nós mesmos, acreditar na vitória, acreditar no impossível.

Acreditar era fundamental, e ele, além do talento natural, tinha aquela obstinação pela vitória: não desistia, lutava contra o sistema, contra as adversidades, as circunstâncias que o jogavam para trás. No dia em que morreu, exatos 30 anos atrás, o impacto foi ainda mais terrível, porque não morria só Senna, o ídolo do esporte. Era uma ducha de água fria em todos os que começavam a acreditar, que viviam aquele tempo intensamente, absorviam seu espírito. Ele era humano, afinal,  e o Brasil por um instante pareceu amaldiçoado pelo azar, pelo destino, em choque como o cavaleiro de metal, imóvel dentro daquele carro batido contra o muro do destino.

Não houve choro comovido, não houve multidão na rua acompanhando o féretro, não houve palavra amiga que consolasse aquilo. E eu sinto essa perda até hoje.

Então eu penso naquele aperto de mão. Um aperto de solidariedade, de positividade, de confiança. De gente que se conhece, não por se conhecer, mas porque no Brasil todos se conhecem, sabem como são. Estamos entre irmãos, dizia aquela mão que guiava o carro que levava um país e segurava a minha.

Obrigado, irmão, 30 anos depois, eu e muita gente ainda te amamos.


@institutoayrtonsenna

@leonardosennasilva 

#ayrtonsenna

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Os meninos e os homens

Hoje em dia as crianças começam muito cedo a sofrer pressão pelos adultos para verem as coisas do jeito que os adultos vêem. Essa realidade é ainda mais dura nos lugares onde famílias dependem das crianças. Como no Brasil, onde elas são colocadas para pedir dinheiro na rua, ou, no caso dos meninos, para jogar futebol, transformando-se na esperança da família de sair da miséria. É uma responsabilidade muito grande.

Il Capitano: há bondade nos meninos

Vi  há pouco tempo o filme italiano Il Capitano, sobre dois meninos africanos com o sonho de migrar para a Europa e assim sustentar  suas respectivas mães e famílias. Salvar uma mulher que deixam para a morte no deserto, ou o amigo levado pela máfia para trabalhar como escravo, ou ainda os refugiados num barco prestes a afundar, são responsabilidades grandes demais para um menino, mas, como mostra o filme, é isto o que se pede dele.

Il Capitano é a comovente jornada da transformação precoce e violenta de meninos em homens. E o que se vê é ainda a beleza dos sentimentos mais puros - o que, no homem feito, mantém acesa a chama dos seus melhores sonhos.

É isto, afinal, o que é ser homem. Não se trata de sexo, como gênero, mas de um conjunto de valores que fazem os homens serem homens, segundo a perspectiva masculina. Homens são pais, irmãos, filhos, trabalhadores, arrimos de família. São amigos, leais, defensores dos fracos e da justiça, cumpridores da palavra, corajosos como os heróis que admiramos desde a infância.

Muita vezes homens sacrificam sonhos e objetivos pessoais por amor de alguém ou de uma causa. Conheço muitos homens devotados à mulher, à família, ao país, à arte, à justiça, às causas sociais  mais nobres, que colocam acima deles mesmos.

Todo homem tem em si o menino e age conforme foi criado. Fala-se muito dos abusos sofridos por mulheres, o que é real, mas pouco dos meninos que sofrem maus tratos na infância, inclusive e principalmente de mulheres, o que também é real. O abuso não é uma questão de gênero.

Se queremos melhores homens, é preciso tratar bem dos meninos. E deixar também, sob todos os aspectos, que tenham infância.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Musk e o novo que é velho como o mundo

Elon Musk está demitindo 10% de seus funcionários. A Tesla não está vendendo seus carros elétricos como ele imaginava. Elon Musk também não está se vendendo como imaginava.

A intromissão de Musk na política brasileira, dizendo que não vai colaborar com a Justiça no inquérito das fake news, mostra que o novo, no mundo dos negócios, é na verdade bem velho. Em muitos sentidos.

Musk é velho como o mundo, primeiro, porque se mostra o empresário de faroeste, que só pensa nos seus interesses, e não nos países, ou nas pessoas.

Do tamanho que ele ficou, torna-se uma ameaça mundial. As megacorporações, do jeito que são hoje, acreditam que têm recursos e poder para confrontar os Estados nacionais. Especialmente os titubeantes, como o do Brasil.

São elementos imponderáveis da vida contemporânea. Empresários privados aventureiros que se metem em coisas antes reservadas ao poder público, como a corrida espacial, deixam perguntas. E quem regula o espaço? Nessa zona onde não há fronteira, como no mundo das corporações transnacionais, o que podem fazer? Resposta: algo que atende seus interesses, geralmente diferentes dos coletivos. 

Musk, o bilionário elétrico-digital, nesse aspecto, é também tão antigo quanto os velhos barões do petróleo  e da ferrovia. O discurso de que o carro elétrico vai salvar o mundo da poluição é uma enganação descarada. Não há nada mais mentiroso do que acreditar que o carro elétrico é ecológico. 

Para fazer funcionar carros e celulares com suas baterias, o engenho menos biodegradável já inventado pelo ser humano, é preciso uma quantidade enorme de minérios encontrados na superfície do planeta - os "terras raras". Por conta disso, extensas áreas de terra hoje são  revolvidas - em Araxá, Minas Gerais, por exemplo.

Por ser mais barato que comprar áreas continentais, empresas de 26 países hoje raspam o fundo do mar, com o objetivo de recolher lítio e outros elementos. Estão destruindo a flora e a fauna marinhas e com elas o crio, de onde vem a maior parte do oxigênio do planeta. Perto disso, destruir a Amazônia inteira não é nada.

E o que dizer de como ficaremos daqui oito anos, quando essas baterias veiculares se transformarem em lixo?

Quando as vendas de algo vão piorando, começam a vender para o Brasil como grande novidade. As vendas de elétricos balançam no exterior enquanto chegam por aqui como algo  sensacional. Muitos lançamentos de carros elétricos vêm sendo anunciados. Graças ao incentivo fiscal - nosso dinheiro - como ocorreu nos Estados Unidos.

Musk diz que é a favor da liberdade, como se seu negócio dependesse do livre mercado, e não do dinheirão que o Estado botou nele. No campo político, esqueceu também que o limite da liberdade é o direito - e a liberdade - do próximo. Não se pode fazer algo que coloca em risco o futuro do planeta, em qualquer área.

O mesmo se pode dizer das redes sociais, negócio onde ele entrou para enganar o público sem intermediários. A mídia digital vem sendo usada sistematicamente para espalhar mentiras, com finalidade eleitoral, de forma inescrupulosa, e proteger os interesses por trás dessas mentiras. São usadas, também, para patrulhar quem pensa diferente e constranger a opinião alheia - o contrário da liberdade.

Quem é Elon Musk? A resposta está bem clara. É mais uma raposa, travestida de benfeitor, dessas que querer tomar conta do galinheiro para fazer a festa. É temporário. Acabam levando chumbo do fazendeiro, antes de acabarem os ovos - e as galinhas.

domingo, 14 de abril de 2024

Decolonizando a decolonização

A convite da artista plástica Cynthia Loeb, passei pelo Cama de Gato, exposição dos artistas reunidos no condomínio de ateliers conhecido como Edifício Vera, no centro de São Paulo. No meio de muita coisa brilhante, lá encontrei o trabalho de Sérgio Adriano H - artista plástico que se dedica a rever, em forma de arte, a história do Brasil. Preocupa-se em denunciar a narrativa clássica sobre a negritude, a escravidão e o discurso histórico, feito da perspectiva do colonizador português.

Hoje há um forte movimento pela ideia da “decolonização”, palavra que ele aplica em muitas de suas obras. Em sua arte, Sérgio cola as páginas dos livros de história e as utiliza como tela, gravadas com essa palavra. Pinta de branco negros sendo castigados no pelourinho, nas gravuras históricas clássicas – uma forma de mudar a perspectiva e chocar quem vê a cena. Os negros de Debret se tornam brancos.

A “decolonização” – no sentido de extrair a perspectiva colonizadora – é uma preocupação para nós, jornalists e historiadores contemporâneos, que temos revisado a história do Brasil, como aprendemos nos livros escolares. Em A Conquista do Brasil (1500-1600), por exemplo, procuro mostrar a vida dos povos indígenas tal como era e destacar lideranças ignoradas pela historiografia oficial, como Aimberê, Cunhambebe e Piquerobi, muito mais importantes para a nossa história que Pedro Álvares Cabral.

No entanto, buscamos um equilíbrio, pois não dá para simplesmente jogar fora a informação dos jesuítas, detentores da narrativa sobre a história do Brasil na época. E que também escamoteavam portugueses como João Ramalho.

Não dá para embarcar na ideia dos “povos originários”. Como aponto em A Conquista do Brasil, os indígenas encontrados pelos europeus no território hoje do Brasil não estavam aqui há mais que 500 anos – terra que tinham conquistado de forma tão inclemente quanto o fizeram os portugueses, de quem se tornaram aliados contra os seus próprios inimigos.

A história, a meu ver, tem de ser contada pelos fatos, e os fatos dentro de seu contexto, não de pontos de vista que são narrativas contemporâneas. É preciso retratar a realidade com o máximo de informação objetiva. A história é o que é: ponto. 

A historiografia deve ser entendida da mesma forma, como parte da história. Colar páginas ou queimar livros pode valer como manifestação artística, uma forma de apontar injustiças e chamar a atenção para a igualdade de direitos. Porém, criar uma narrativa para se sobrepor a outras não é a melhor maneira de mudar alguma coisa.






Uma forma de obscurantismo não pode ser substituída por outra. Trata-se apenas de mudar privilégios, sem a promoção de uma real igualdade.

A arte faz seu papel, de chamar a atenção, chocar, abrir mentes. Porém, é preciso entender também os livros no seu contexto, considerá-los e preservar toda forma de história, em vez de queimá-la. Este é o único caminho: encarar a realidade, e não sepultá-la, de maneira a podermos mudá-la, de fato, para algo melhor.