Hoje completo 55 anos. Por isso, vou deixar aqui um trecho de um livro de memórias, que está quase pronto, e quero publicar um dia desses. Fala da era de onde eu vim. Fica pra vocês como aperitivo - e para sentir o que significam 55 anos.
"
Certa
vez, ao trazer minha mãe de volta para casa, depois de uma sessão de
quimioterapia no Hospital do Câncer, uma das últimas que ela fez, o caminho nos
levou a passar na Rua dos Estudantes. O lugar onde nasci, no final da ladeira
onde a Estudantes entra no chamado Baixo Glicério.
-
Nosso primeiro apartamento foi aqui, de frente para a rua, no terceiro andar –
disse mamãe, apontando.
Eu
já sabia - e lembrava. Nosso edifício continuava lá, o mesmo bloco de cimento
áspero e cinzento. A porta central dava para o longo corredor interno; do lado
direito ficava a entrada da garagem descoberta e, à esquerda, outra porta
basculante, onde no passado funcionara um bar, estava fechada. Era um cortiço,
não sei há quanto tempo. Ao lado, um imóvel derrubado dera lugar a um beco onde
se amontoavam barracos de plástico preto. Gente sinistra espreitava.
Bem
que eu gostaria de bater à porta e pedir para olhar lá dentro, mas dava medo
descer do carro. Passei reto. A casa onde morei já não estava lá, e sim na
minha memória. Tentei avaliar se aquele lugar já era assim ruim ou decaíra com
o tempo. Certamente piorara; porém, creio que nunca tinha sido bom. Nem a casa,
nem os tempos.
Pelo
horóscopo chinês, todos os nascidos no ano de 1964
pertencem ao signo do dragão. Diz o horóscopo chinês que o Dragão é generoso,
inteligente e tenaz. Pode alcançar a riqueza, mas não é por ela que trabalha.
Gosta da liderança e do poder. Precisa, no entanto, de flexibilidade,
tolerância e compaixão. Não sei. Sei que aquele foi mesmo um tempo de soltar
fogo pelas ventas.
Em 1964, a Liberdade era região dos “inferninhos” – lugares
mal-afamados com dançarinas que faziam programa e nem por isso impediam que logo
ali se instalassem algumas famílias como a nossa. As boates de prostituição faziam à noite um barulho
distante que me intrigava.
Com quatro ou cinco anos de idade, perguntei ao zelador, com a
candura e a curiosidade das crianças, por que lhe faltava um pedaço do dedo
anular direito. Ele me respondeu que trabalhava de guarda numa boate ali perto;
certa madrugada, dera um tiro com uma pistola automática e, quando ela cuspira
a cápsula da bala, arrancara-lhe aquele terço.
Eu o achava simpático e,
ao mesmo tempo, um tanto sinistro. Mantinha sempre fechado o fosso central do
edifício, ao qual se tinha acesso por uma porta no longo corredor, como um alçapão
na parede. Mais tarde, descobri que ali ele criava patos. Poucas vezes vi a
porta aberta: um quadrilátero coberto de guano, com um cheiro repugnante, onde
patos velhos e sujos grasnavam e espadanavam aos montes; um lugar onde o sol
nunca chegava e pelo qual eu passava rápido, mesmo de porta fechada. Eu não
entendia o que faziam ali aquelas aves; ou melhor, intuía que se tratava de um
matadouro; foi esse contato que me deu uma primeira e lúgubre noção da morte.
Tornou-se célebre em casa
o pato com cerveja preparado pela mãe com uma das crias do zelador, que para
sua infelicidade permaneceu no prato, depois da careta dos comensais. Lembro de
mexer co arroz amarelo longamente com o garfo; a expressão interrogativa de
minha mãe, que foi virando zanga, depois fúria; rejeitar sua comida era
rejeitar o seu amor, e isso a deixava tão possessa quanto se deliciava com os
cumprimentos de qualquer almoço do qual saía com os costumeiros elogios.
Como
em outras ruas do centro, na Estudantes o submundo dos proxenetas e outros marginais
convivia com a “gentinha”: aqueles seres anônimos que viviam de pouco. Eram
funcionários de pequenos armarinhos, bares, pensões, lojas de artigos baratos.
Homens gastos pela desesperança e mulheres mestiças de exuberância e pobreza,
aquela beleza suburbana ao mesmo tempo sensual e melancólica que exercia em mim
ao mesmo tempo repulsa e atração.
Sem
horizontes, viviam a beber (os homens) ou a falar da vida dos outros (homens e
mulheres), o que aos poucos transferiu a expressão “gentinha” para a identifição
dos fofoqueiros e maledicentes. Além deles, havia toda a marginália de bêbados,
mendigos e vagabundos que faziam da rua uma zona proibida, como se eu estivesse
numa ilha cercada de águas cheias de tubarões.
Ali
meus pais podiam pagar o aluguel de um imóvel maior que a quitinete de seus
primeiros meses de casamento. Nosso apartamento tinha dois quartos, era próximo
da praça da Sé e do trabalho de meu pai - a Gepesa ficava na Rua Líbero Badaró.
A prefeitura acabara de retirar os bondes da cidade e havia um cemitério deles
num terreno baldio ao lado do viaduto que saltava a via férrea na entrada da
avenida Rio Branco. Os trilhos do bonde ainda estavam colados ao asfalto e as
ruas do centro cobriam-se pelos fios das linhas de trólebus, os ônibus elétricos
que eram o principal sinal de modernidade do transporte público.
São
Paulo ainda possuía algo da elegância de seus tempos áureos. Não havia shopping
centers. O comércio era na rua, especialmente no centro da cidade, onde ficavam
os dois grandes magazines - o Mappin e a Mesbla. Os homens andavam de gravatas
finas e ousavam abandonar o chapéu. Para as mulheres, havia blusas de gola
rulê, saias ou calças justas e curtas, que deixavam de fora a canela. O cabelo
era armado com altas doses de laquê.
Mesmo
quem era pobre, naquele tempo, se vestia melhor que os ricos de hoje. Vejo as
fotografias de minha mãe e suas irmãs em casa de meus avós, ou em lugares como
Campos do Jordão, e penso que aquela foi a última era da elegância. O consumo
de massa ainda não destruíra a roupa de alfaiataria, nem espalhara o jeans para
o uso comum, assim como a camiseta. Naquele tempo, usava-se ainda roupa social
no dia a dia. E as pessoas se vestiam de forma diferente umas das outras.
O
jeans, conhecido ainda como “calça rancheira”, apenas aparecia. Quando eu era
pequeno, meu pai tinha só uma, guardada no fundo do armário, por seu pouco uso.
Era grossa, dura e desconfortável. Criado pelos mineradores para o trabalho árduo
nas minas nos Estados Unidos, o jeans era feito de índigo, uma lona grossa para
ser utilizada no campo ou operários no serviço braçal. A disseminação do seu
uso coincidiu com o início da democratização da roupa e da sua transformação em
artigo rapidamente descartável, segundo os interesses da indústria de massa.
Embora
meu pai não tivesse dinheiro, jamais deixou de lado um certo comportamento
aristocrático, enraizado na família desde um tempo em que meus bisavós possuíam
fazendas cheias de escravos na região de Piracaia, perto da divisa com São
Paulo. Meu avô, que fugira de casa na juventude, depois de brigar com a
madrasta, e vivera vida aventureira, tivera sido destituído da herança por um
irmão trapaceiro. Porém, jamais se queixara de sua condição, do irmão, do
dinheiro – de nada. Papai fazia o mesmo.
Uma
vez casado e obrigado a virar-se por conta própria, ele tinha de viver no meio
da ”gentinha”, mas era diferente dos outros – ele, sim, tinha perspectivas de
sair dali. Educado graças ao gosto pela leitura, herdado de vovô, mesmo depois
do golpe de 1964, que mudara sua carreira de maneira abrupta, acreditava
prosperar no jornalismo. Mesmo não sendo tão culta quanto ele, mamãe estava
ligada à educação pelo trabalho como professora. Além de interesses e ideais em
comum, ela tinha a energia, o espírito de iniciativa e calor para ajudar e
impulsionar o marido.
Era
um casal admirável; eles estavam próximos pelo amor, pelo objetivo em comum da
família e por características que, mesmo onde havia diferenças, se completavam
na direção do bem comum. E talvez seja assim com todos os casais; uns
administram a vida a partir da união inicial para convergir ainda mais ao longo
do tempo, outros divergem até que a distância entre ambos fica tão grande que
torna a separação inevitável.
Eles
se casaram para sempre, num tempo em que “para sempre” começava a ser muito
relativo – eles apenas não sabiam disso, ainda. Além das mudanças da tecnologia
e da política, aqueles anos turbulentos da década da 1960 marcaram também o
início de uma profunda mudança de comportamento e mentalidade. A geração de
meus pais foi a primeira a colocar a felicidade como um bem sem barreiras,
fossem religiosas e psicossociais. E como um bem eminentemente individual,
acima, portanto, da família antes sagrada.
A
manutenção do casamento deixou de ser tão importante; nessa geração, foi
aprovado primeiro o desquite, depois o divórcio. A separação se tornou comum e
este foi um passo decisivo para a criação da era de independência e
individualismo que chegou ao auge nos anos 2000. Um modelo que, todavia, criava
também seus próprios problemas, como o anterior.
As
mudanças de comportamento tinham forte influência nas artes, muito rica naquele
período. Os Beatles, banda inglesa que deu início ao fenômeno de massa em
escala mundial, começou sua carreira usando gravata e terno preto; terminou de cabeleira
e roupas largas que indicavam a liberdade de criação, pensamento e conduta. O
estilo que se tornou conhecido como “bicho-grilo”, teve seu auge depois do
festival de música de Woodstock, em 1968 e inaugurou o que se passou a chamar de
“contracultura”.
A
gíria da época se tornou muito característica; por conta da Jovem Guarda, que
imitava no Brasil os Betles dos primeiros tempos, com suas músicas meio
inocentes de juventude, ficaram famosos os bordões como “mora”, ou “morou?”
(entendeu?). Vinha de “é uma brasa, mora”, frase criada por um jovem talento
que encantava as multidões: Roberto Carlos. Tudo o que causava espanto vinha
acompanhado da expressão “putz”, de “putz grila”.
A
influência das artes no comportamento e vice-versa em escala mundial apenas
começava. Ainda havia pouco contato cultural com a Europa e os Estados Unidos.
A TV incipiente tinha programação local e eram privilegiados os que tinham a
oportunidade de conhecer o exterior – os aviões transcontinentais eram poucos,
caros e demorados.
Esse
relativo isolamento mantinha o Brasil com uma cultura autóctone, muito mais
presente na vida dos brasileiros. Esta refletia apenas de longe a influência
estrangeira que viria quase a substituí-la mais tarde, com o acesso imediato à
informação e a criação do mercado global. A produção cultural brasileira era
forte, predominante e rica. A década de 1960 foi uma fase áurea das artes
brasileiras, com o maior encontro de gênios criativos numa única época, rebento
de um longo período de desenvolvimento, liberdade e elegante despreocupação
vindo desde os anos 1950.
Na
arquitetura, havia Oscar Niemeyer, que acabara de desenhar Brasília; no
paisagismo, Burle Marx. Grandes mestres das artes plásticas, como Di
Cavalcanti, Portinari e Aldemir Martins, buscavam no retrato do povo a
reafirmação da identidade nacional. Não eram assinaturas em museus, mas
artistas vivos, trabalhando, sob a influência do mundo ao seu redor. Na
literatura, conviviam Jorge Amado, Graciliano Ramos, Antonio Callado.
A
década de 1960 foi também palco de grandes compositores, tanto da geração
anterior quanto a mais jovem, todos em sintonia com os acontecimentos políticos
e sociais que fariam a arte se alinhar com as bandeiras da democracia e da
liberdade. Essa tendência cresceria depois do golpe militar de 1964, flor em
meio aos espinhos, bandeira de poesia e liberdade em tempos de brutalidade,
espada de idealismo para enfrentar os desafios sociais de um país que não
aceitava mais o subdesenvolvimento, uma expressão que caracterizava a visão do
Brasil sobre si mesmo nesse período.
O
país ainda veria coisa pior, quando as metrópoles se transformariam em bolsões
de pobreza e violência muito maiores, mas naquele tempo ainda havia a esperança
de melhorar. Ninguém imaginava que levaríamos trinta anos para ter de volta a
democracia plena, nem que a ditadura, apesar de uma série de realizações, como
grandes obras de infra-estrutura a um custo bastante alto, teria de nos levar
primeiro ao caos econômico e social para ruir.
O
artista falava de amor e da vida simples, mas erguia bandeiras de um mundo
melhor. O Brasil era romântico, tanto nas músicas sobre a saudade e o amor como
no sonho de mudar o país e o mundo, alimentado por muitas bandeiras que se
mostrariam também ilusórias, como a do comunismo.
Naquele
tempo, quando a cultura de massa ainda não nivelara a qualidade por baixo, as
canções depuradas, com letras inteligentes, eram também a canção popular. Nesse
ambiente, meus pais vibravam com as vozes de João Gilberto, Maysa, Elis Regina,
Jair Rodrigues, Wilson Simonal. Viviam ao ritmo das canções de Tom Jobim e
Vinícius de Moraes. Assistiam à progressiva influência do rock, com a cara de
uma juventude livre e despreocupada, incorporada pela Jovem Guarda, de onde se
lançou Roberto Carlos. E o despontar de talentos ao mesmo tempo populares e
intelectualizados como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Podia-se
ver agora esses astros refinados em shows multiplicados pela TV cada vez mais
acessível e levá-los para casa em discos de vinil, cultura viva que integrava o
público na nova tecnologia das vitrolas de “alta rotação”. Os sucessos das
rádios eram lançados imediatamente nos “compactos” – discos de vinil pequenos,
que os americanos chamavam de “singles”, contendo apenas aquela música, mais
outra no verso.
(Colocar
a música na vitrola era uma delícia; a ponta do dedo levava a agulha até a
faixa a ser ouvida, aquele barulho da agulha pousando no vinil, iííííí, e então
a mágica, produto da sensibilidade e inteligência, música para a cabeça, o
coração e a alma.)
O
artista contra a supressão da liberdade e política mostrava como a luta contra
a ditadura não era apenas uma questão política, da esquerda contra a direita,
mas do iluminismo contra o obscurantismo, da alegria contra a sombra, da paz
contra a opressão.
As
cidades acompanhavam as mudanças sociais; o Brasil rural se transformava num
país urbano, com uma indústria ascendente e moderna, especialmente a
automobilística. O caos das metrópoles, o tráfego intenso, a violência exacerbada
e o crime organizado ainda não eram sequer uma hipótese. Crimes de morte
chamavam a atenção pela raridade e a brutalidade, sem perder-se na névoa da
indiferença, capaz de cobrir tudo o que se torna rotineiro; o início do
processo de banalização do absurdo, porém, estava ali.
Eu
pouco sabia ainda da vida lá fora; não tinha consciência do que viria, nem
mesmo de onde estava. Cresci naquele tempo de mudança, em meio a uma pobreza da
qual nunca tive exata consciência, talvez até hoje, nem das dificuldades pelas
quais meus pais passavam. Como eles, eu acreditaria sempre numa vida melhor,
não com base em previsões, econômicas, mas simplesmente porque vim daquele
tempo em que as pessoas viviam sobretudo de sonho."