Ao longo dos anos, fui guardando as máquinas onde escrevi, vitimadas pela rápida obsolescência nesta era de extraordinárias mudanças para quem opera com as letras. Tenho dificuldade de me desfazer das minhas companheiras de trabalho; cada uma delas lembra um, ou mais, livros que escrevi. São as testemunhas mudas do meu esforço, instrumento único desse solilóquio obsessivo da escrita. Foram ficando pelos cantos, enfiadas em armários, e aos poucos, como para mostrar a mim mesmo de como vim de longe, como foi demorada, trabalhosa e talvez inglória a jornada até aqui, foi surgindo a vontade de reuni-las num mesmo lugar, onde eu pudesse olhar para elas, como os personagens dos meus livros, e dizer: vocês merecem uma boa aposentadoria, mas ainda gosto da sua companhia, podem ficar por aqui.
Na casa nova, achei o lugar e a ocasião: em uma estante de quina entre a saleta de leitura e a de jantar, fui colocando minhas velhas companheiras, perfiladas como num batalhão: soldados que deram baixa depois da guerra e se reencontram para relembrar feitos que, não fosse pelo que escrevemos juntos, só teriam significado para eles e seu comandante.
Sem dúvida, a máquina mais importante dessa pequena coleação é a velha Olivetti-Underwood Studio 44 verde, modelo exato da máquina de meu pai, Alipio. Ela é, na verdade, um sonho de criança, desde os tempos em que eu via meu pai escrevendo; passava pela porta fechada do pequeno escritório onde ele, entre volutas de fumaça de cachimbo, escrevia suas reportagens e editoriais para revistas como Médico Moderno e Contrução Hoje. Entrar lá dentro era proibido; eu só podia fazê-lo por motivo de força maior, o que queria dizer uma ordem de minha mãe ("chame seu pai para o jantar").
Antes, eu parava na porta, para ouvir o claqueteclaque tão familiar, que para mim é como uma música de infância. Entrar no escritório de meu pai quando ele escrevia era como penetrar em território sagrado, como um cemitério indígena ou o solo da Terra Santa. Pelo menos, assim eu pensava, já que ele abominava ser perturbado, por razões intrínsecas ao ofício de escrever, que eu mesmo só entenderia muito mais tarde. O mistério daquele trabalho e esse pequeno tabu fizeram com que esse momento para mim sempre tenha sido cercado de respeito; e me deixou a convicção de que quem escreve tem direito ao silêncio e à solidão.
Meu pai passou anos a trabalhar com aquela Studio, uma das melhores máquinas já feitas para escrever; para deslizar de volta à margem esquerda, o carro macio demandava apenas a ponta do dedo. Quando meu pai não estava, eu roubava algumas folhas de papel para experimentar; escrevia com quatro dedos, como faço até hoje, com a desculpa de que o que fazemos é escrever, e o importante são as ideias, não a datilografia.
Durante anos a fio, sonhei em estar ali, naquele lugar: diante da máquina verde onde os sonhos ainda estavam por ser feitos. Aos dezoito anos, quando tive meu primeiro carro, viajava até Suzano, em geral aos sábados, para visitar meu avô José: adorava ouvi-lo cantar suas antigas modas de viola e, especialmente, contar as histórias com que preenchia o tempo entre uma canção e outra. Ele já tinha passado dos 90 anos, estava encurvado, reclamava de varizes, e da surdez; para me comunicar com ele, eu escrevia frases num velho caderno escolar, sobre a mesa da cozinha, onde fazíamos nossas tertúlias: na verdade um interminável monólogo que comecei a gravar com a ideia de transformar aquelas histórias no meu primeiro romance.
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Fiz isso por cerca de seis meses; tirava as fitas K-7 direto na máquina verde de meu paí. Eu ainda não escrevia nada, apenas transcrevia, com o máximo possível de fidelidade, as frases enfeitadas do português italianado e brejeiro de meu avô. As folhas, algumas de seda, outras de sulfite, foram se acumulando até formar um respeitável calhamaço ao qual eu pretendia dar algum sentido. E quem sabe ver publicado como meu primeiro livro.
As folhas foram sendo rabiscadas e passadas a limpo na Olivetti, mas aquilo não formava ainda um romance; era um proto-livro, o rascunho do que viria a ser o que eu primeiro pensaria intitular como Iusfen e, mais tarde, foi Filhos da Terra. Levei tempo para entender que a degravação das histórias de meu avô não dariam um romance e que eu precisaria absorver aquela matéria prima e recriá-la, para surgir um livro de verdade.
Meu avô tinha razão: quando eu lhe dizia que tinha vontade de usar suas histórias para escrever um livro, ele apenas ria e falava: "isso está em você". Filhos da Terra, de fato, não é um livro de meu avô, ou sobre meu avô, mas de como eu o via e, ao final, acabaria sendo um livro sobre mim mesmo.
Filhos da Terra levou sete anos para ser concluído; quando penso no enorme esforço que me custou, parece que uma parte da minha vida foi engolida no tempo. Trabalhei nesse romance como se fosse a única e última coisa que faria na vida; foi meu primeiro romance para adultos e, acredito, ainda o melhor.
Quando saí da casa de meu pai, deixei de escrever na mesma máquina que ele; o romance foi concluído num laptop Toshiba 1000, um precursor dos notebooks modernos; mas as folhas onde o livro nasceram continuaram numa pasta que me servia de referência, onde estava a linguagem que eu queria conservar, o frescor de sua origem. Mais tarde, comprei a máquina que agora está na Casa da mata. Era já uma peça de museu, reformada numa oficina de máquinas de escrever, no centro de São Paulo, próxima do Pátio do Colégio. De alguma forma, necessitava daquela companhia, que me lembra, até hoje, como comecei e por que, mais do que gostar, preciso escrever.