Mostrando postagens com marcador Filhos da Terra. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Filhos da Terra. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A mais livre das mulheres

Quando eu pensava em escrever meu primeiro romance, aos 18 anos de idade, costumava dirigir de São Paulo até Suzano, onde ficava a chácara de minha tia Malfisa, que lá morava com meu avô e muitas histórias repletas de perigo.

Ali, por algum tempo, no final da década de 1960, com risco da própria vida, minha tia havia escondido um grupo de amigos, guerrilheiros contra a ditadura. Todas as vezes em que eu a visitava lá, pensava que, de certa forma, a chácara continuava meio esconderijo.

Tia Malfisa falava de política com convicção, mas, para ocultar aqueles que o regime chamava de "subversivos", era preciso também muita coragem e generosidade.

Um de seus primeiros empregos foi o de revisora no Diário da Noite e assim conhecia muitos jornalistas, a maioria dos quais, de uma forma ou outra, defendia a liberdade - a começar pela liberdade de expressão.

Ser livre, então, era perigoso - e ela era a mulher mais livre que nós da família conhecíamos. Fazia uma porção de coisas que naquele tempo - e falo da década de 60 - eram pouco comuns para mulheres. Fumava. Tomava cerveja. Falava o que pensava. E nunca casou.

Lembro dela entrando em nossa casa, um apartamento térreo no bairro da Liberdade, no jogo final da Copa do Mundo de 1970 - não haverá outra igual, pois aquela tinha Pelé, pela primeira vez havia transmissão direta em cores pela TV e o povo brasileiro estava meio cansado de sofrer.

Tia Malfisa, que adorava futebol e acima de futebol o Palmeiras, irrompeu porta adentro com um bando de amigos, agitando bandeiras, cantando e pulando de cerveja na mão - e o jogo, que se afigurava uma goleada, ainda nem havia terminado. Saíram incontinenti para a rua, inebriados pela vida, como se fosse carnaval. Eu tinha apenas seis anos e lembro de pensar: quando for adulto, quero ser assim.

Ela só andava de fusca, e andou de fusca a vida inteira, mesmo quando o carro virou peça de museu. Quando eu ainda era criança, pediu o fusca de meu pai emprestado e deu uma batida feia. Saiu ilesa, daquela vez, e lembro de meu pai desolado, olhando o ferro retorcido que antes era um veículo, sendo depositado no pátio que servia de garagem.

Não escapou tão bem de outra batida, em que prensou o braço esquerdo. Dali em diante carregaria aquele bracinho atrofiado, por muito tempo quase imóvel. Mas continuava dirigindo o fusca, usando um braço só.

Segundo minha mãe, minha tia nunca casou por ter tido na juventude uma grande frustração amorosa - supostamente, enamorou-se de alguém sem saber que era casado. Mas acho mesmo que ela gostava de ser livre - e livre ficou.

A bem da verdade, chegou a tentar o casamento durante dois anos, com Jurado, um sujeito muito simpático, mestiço de japonês, louco por ela. Como a tia não tinha filhos, sempre que eles vinham em nossa casa visitar, Jurado nos trazia presentes - para mim, e minha irmã, Lara. Só queria agradar. Mas a tia passara dos 40 anos, estava já acostumada demais a viver sozinha e logo achou a vida conjugal uma amolação.

Não tendo filhos, acabou tendo muitos. Eram as crianças da escola, como professora e depois diretora. E eram como filhos os muitos sobrinhos, de quem sempre foi tão próxima. Especialmente de minha irmã Lara, caçula da sobrinhada. Para os sobrinhos, era uma mãe melhor que uma mãe. Porque, como tia, podia ser mãe, sem dar as broncas nem ter os grilos de mãe.

Minha tia era uma das poucas pessoas que me defendia em qualquer situação, mesmo quando eu estava errado, mesmo quando a pessoa com quem eu brigava era a irmã dela, a minha mãe. Talvez por isso, era também das poucas pessoas que tinham o direito de falar qualquer coisa comigo - e eu escutava sem discutir.

Tinha aquele poder de fazer a gente, mesmo depois de adulto, se sentir ainda amado e querido como criança. Talvez por ter passado toda a minha infância perto dela, ela fazia eu me sentir como nos tempos em que, na Casa Verde, abria a porta do quarto dela, que dava para a rua, com uma escada feita de lajota vermelha. Eu passava o dia brincando e vinha suado, deitar ali, para refrescar as costas na lajota, sempre fresquinha, ou esperar passar a chuva de verão, e voltar a brincar.

Por viver solteira, minha tia sempre morou com meus avós; quando meu avô ficou viúvo, e velhinho, pode-se dizer que passou a viver com ela. Deixaram a casa térrea da Casa Verde e mudaram-se para Suzano, onde ela lecionava.

Eu aparecia com meu gravador K-7 na mão, para passar o dia ali. Colocava o gravador, ouvia meu avô cantar, e no meio das canções, colhias história de família com que aos poucos ia tecendo Filhos da Terra, cujo título original, Iusfen, era o nome dele - José - no dialeto bolonhês.

Às vezes, ele parava de cantar para esfregar as pernas com limão - um remédio caseiro que neutralizava a coceira das varizes, dizia .

Minha tia cuidava dele, ou ele dela, enquanto lá fora fazia um sol de rachar. Ela me ajudava na comunicação, porque meu avô, já passado dos 90 anos, não apenas estava surdo como àquela altura monologava às vezes sem direção.

Foi a paciente testemunha de todo o trabalho que tive para começar Filhos da Terra, um romance que mostra a dura cepa daqueles italianos que encontraram um Brasil ainda bruto e selvagem. Fazia muitas coisas como antes, como matar as galinhas no quintal da Casa Verde dando um tlec no pescoço, ou estrangulando-as com o pé sobre o cabo da vassoura.

Nascida no campo, gostava da roça e, na cidade, sentia-se prisioneira. Gostava de viajar, viajava conosco sempre, e mesmo já muito idosa ia para o sítio da montanha que hoje está na guarda de minha irmã - gostava de ficar sozinha, precisava do campo, precisava de paisagem.

Essas raízes de contadina, que brotavam nela vindas de um passado que no romance parece hoje um pouco mitológico, estão na realidade no sangue, na educação, no exercício do amor passional - tudo aquilo que nos une em família, com uma identidade só.

Um amor turbulento, excessivo, por vezes destrutivo, que por vezes parece raiva, ou ódio, ou desamor, mas é no mundo um amor como não tem outro maior.

Tia Malfisa faleceu ontem, no único dia da vida em que lhe faltou o coração. Disse à irmã, minha tia Mafalda, que dormira mal, sentia-se fraca, não queria dar trabalho e era hora de partir. "Já vivi muito", disse ela. Foi tia Mafalda, com quem ela morava nos últimos anos, quem isto contou, a minha irmã.

A coragem que me falta nesses momentos foi aquela com a qual, resoluta, tia Malfisa foi buscar sua paisagem no céu, mais livre do que nunca, nos deixando desolados nestes tempos de pandemia, que não permitem sequer um adeus.

Em Filhos da Terra, quando Iusfen - o narrador - lamenta ser o último e mais inútil dos irmãos, é lembrado de que era por ele, por meio de suas histórias, que todos viviam, na memória e na ação. De tia Malfisa, também penso o mesmo, da forma como aprendi, e que em família se ensinou: enquanto viver um de nós, todos viverão.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Mais romancista que repórter: meu placar no skoob



Roberto Civita, falecido dono da editora Abril, onde trabalhei muitos anos, certa vez encontrou o banqueiro Armando Conde, do BCN, que lhe disse estar em contato comigo, para que eu pudesse ajudá-lo a escrever seu livro de memórias. E perguntou o qeu Civita achava sobre mim.  "Péssimo jornalista", disse Roberto, com seu ar sempre blasé. "Mas é um grande contador de histórias..."

Fui pesquisar no Skoob meu placar junto aos leitores, para saber como avaliaram meus livros. E verifiquei, agora em números, que de fato sou mais romancista que repórter - os meus romances são mais bem avaliados que os livros de não ficção.

O primeiro da lista é Filhos da Terra, meu primeiro romance, que com 20 avaliações recebeu 5 estrelas de 60% dos leitores. Entre quatro e cinco estrelas, são 80% de aprovação.

No mesmo plano está O Homem que Falava com Deus, com 14 avaliações, que recebeu cinco estrelas de 64% dos leitores. Com 14% de 4 estrelas, o índice vai a 78% de aprovação.

Amor e Tempestade, meu romance mais recente, publicado originalmente pela Objetiva/Suma de Letras, tem 77% de aprovação, mas quase o mesmo número de avaliações de quatro e cinco estrelas (33% e 38%, respectivamente).

Os livros de não ficção não são tão festejados, mas também estão muito bem avaliados. O Sonho Brasileiro, biografia de Rolim Amaro, fundador da TAM, tem 70% de aprovação, entre 4 e 5 estrelas, por 25 avaliadores. A Conquista do Brasil é muito recente e recebeu por enquanto apenas 2 avaliações: uma de quatro e outra de cinco estrelas. Promete.

Se você já leu alguns desses livros, vá ao Skoob e vote! O autor aqui agradece o interesse. Isso nos ajuda a continuar trabalhando. O leitor é que manda! Meu próximo livro, por sinal, será um romance. Assim como Conquista do Brasil, será lançado pela editora Planeta.

http://www.amazon.com/Filhos-Terra-Portuguese-Thales-Guaracy-ebook/dp/B00EDXV2UW/ref=sr_1_2?ie=UTF8&qid=1439582147&sr=8-2&keywords=filhos+da+terra

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Um livro curtido no tempo


A história de um romance que levou dois séculos para poder existir e sete anos para ser escrito

Não sei bem ao certo quando comecei a escrever meu primeiro romance, Filhos da Terra. Talvez tivesse começado ainda criança, quando ouvia as histórias de meu avô José.O mais certo, no entanto, é que tenha começado naquelas férias de verão, em 1983.

Eu tinha 19 anos de idade. Ainda estava fazendo duas faculdades, jornalismo e ciências sociais, e pude aproveitar uma semana inteira de férias para visitar vovô, a bordo de um Fiat 147 preto, com rodas de liga leve e volante de couro costurado, com a lataria meio carcomida pela ferrugem. Era o meu primeiro carro, comprado com o dinheiro apurado de maneira esparsa, trabalhando como modelo em comerciais de televisão.

Vovô se mudara para uma pequena chácara em Suzano, junto com minha tia Malfisa, com quem passara a viver sozinho desde a morte de minha avó, seis anos antes. Ficava a pouco mais de meia hora de carro de São Paulo, pela rodovia dos Bandeirantes. Mais dez minutos por uma estradinha vicinal, que se infiltrava sinuosamente pelo que se tornara com o tempo um vasto campo verdejante. Ali, desenhava-se o mosaico de propriedades dos pequenos agricultores, que formava o cinturão verde da metrópole, abastecedor do mercado central de frutas e verduras.

Aquela chácara era historicamente um refúgio. No final da década de 1960, minha tia a cedera a amigos que eram militantes de esquerda, para esconder-se da polícia política, durante o regime militar. Meio aposentada, foi dar aulas na escola de Suzano e mudou-se para lá, numa espécie de exílio involuntário para vovô. Como titia não se casara, ou melhor, se casara tardiamente e se separara do marido de forma meteórica, encarregara-se ela, entre os cinco filhos de vovô, de cuidar dele - já passado dos noventa anos de idade. Tia Malfisa desbastou o matagal ao redor da asa, a estrada de terra que ligava a chácara à estradinha de asfalto foi alargada e clareada, e o lugar se tornou mais aberto, embora ainda bastante retirado.

O terreno já limpo era um aclive onde tia Malfisa e vovô lutavam com suas parcas forças para que brotasse um pouco de grama e um rarefeito pomar. A casa, com o chão de cimento queimado vermelho, típico das casas de interior, uma cozinha pequena, uma sala ampla e um puxado de alvenaria recém-construído, onde ficava o novo banheiro e os dois quartos, era mobiliada com os móveis de madeira negra que outrora ocupavam a casa de vovô quando minha avó Dileta ainda vivia: a cristaleira da sala, a pesada mesa de pernas em X, as cadeiras de espaldar trabalhado e uma estante de livros, alguns dos quais eu mesmo havia dado a minha tia de presente.

O lugar preferido de encontro, contudo, era a cozinha. Fresca, refrigerada pelo vento que entrava calmamente pela janela, com o filtro de barro de onde vinha uma água cristalina, aquele era o lugar para fugir ao calor tropical, sentar, ouvir meu avô cantar, o que ele mais gostava fazer. E ouvir as histórias com que ele entremeava suas cantorias, atividade em que podia passar horas intermináveis, indiferente ao possível aborrecimento da audiência e ao desgaste do corpo e da garganta, que ele combatia a partir de certa altura com pequenas doses de pinga com limão. Escarradas desobstruidoras se seguiam, para permitir que prosseguisse no seu impávido monólogo.

Digo monólogo porque a essa altura vovô José já era quase completamente surdo, o que dificultava de saída qualquer comunicação de mão dupla. Tentara utilizar diversos aparelhos para surdez, mas nunca se ajustara a nenhum. Tia Malfisa dizia que, diferente de surdo, ele na realidade não queria escutar mais ninguém. Apenas sabia que gostávamos de ouvir suas histórias, eu, minha irmã Lara e meus primos, e começava a falar de enfiada.

Possuía memória extraordinária. Podia cantar dezenas de canções sertanejas, ou “modas”, como dizem os caipiras, sem repetir uma sequer. Além disso, dispunha de um vasto repertório de canções italianas, algumas das quais raridades que ouvira cantar ainda em criança e das quais se lembrava quase à perfeição. Era um verso engatado no outro, em porfias que podiam durar até uma hora sem parar dentro de um mesmo poema. Assim foi que aprendi histórias como as dos briganti Passanante e Il Passatore, galantes e sanguinários bandidos da antiguidade, e canções dramáticas como a de Salvador Misdea, que possui talvez o melhor começo de poema que conheço, depois do célebre “As armas e os barões assinalados” dos Lusíadas: “Canto um drama terribile e funesto, da caserna de Pisa Falcone”...)

Continuei a gravar tudo o que meu avô dissesse. Passei a visitá-lo regularmente, não só com o intuito de encontrá-lo, mas de deixar um registro vivo de tudo o que dizia, agora certo de que naquele sertão onde vivera podiam ocorrer coisas realmente extraordinárias. Tomava do meu Fiat 147 e lá ia para Suzano, com meu gravadorzinho, cuja chegada ele recebia com festejos, pois a presença da máquina era sinal de audiência garantida por algumas horas. De vez em quando, eu pedia alguma coisa, ou o dirigia para outro assunto, canção ou história, munido de um caderninho onde anotava minhas observações; esse era nosso meio de comunicação, embora não surtisse muito efeito. Na verdade, ele cantava o que lhe dava na telha, e ignorava meus esforços de pedir alguma coisa em especial. Antes de começar, apenas olhava animado para a maquineta de gravação e proferia a pergunta preparatória:

- Tá ligado?

Meu dia preferido para essas visitas era o sábado. Vovô começava a dissertar por volta das duas horas da tarde, quando terminava o almoço, e podíamos ir naquelas tertúlias sem interrupção até dez ou onze horas da noite, quando, vencidos pelo cansaço e os apelos de minha torturada tia, íamos enfim para a cama.

Daquela maneira, fui juntando um farto material. Mais do que a música, o que aumentara meu entusiasmo era a visão do mundo que se revelava pelo meu avô; suas opiniões simples mas particularíssimas sobre as pessoas e o mundo; e, sobretudo, as histórias e os personagens que ganhavam vida nas suas memórias. Aí começara a nascer o romance do velho José, embora ele mesmo nunca tivesse se interessado pelo assunto. Numa daquelas tardes, por meio do uso do caderninho rabiscado a lápis preto, comuniquei a ele que estava pensando em escrever um romance, inspirado nas histórias que me contava. E pedia seu auxílio. Ao ler o meu bilhete, contudo, vovô apenas riu.

- Está pensando em escrever um romance? – disse. – Isto está em você.

Logo terminaram as férias de verão e voltei à minha rotina de estudante. As fitas com as histórias de vovô ficaram guardadas, mudando de gaveta para gaveta, sem destino certo. Muitas vezes pensei em iniciar o tal romance que havia imaginado. Seria o relato de um homem desconhecido, mas que tinha grandes coisas a contar; um homem simples, elevado à condição de herói pelas suas atitudes e pelo ambiente épico que conseguia enxergar à sua volta durante toda a vida. Eu queria tornar aquele reles José num personagem à altura do homem que meu avô via nele mesmo, e que de certa forma todo ser humano vê em si próprio. Aos poucos, comecei a transcrever as fitas, pensando simplesmente em arrumar as histórias como ele as havia contado. Seria um relato em primeira pessoa, com as expressões e maneirismos da fala de meu avô. No entanto, aquilo não tomava corpo, e eu não sabia por quê. Era jovem demais, destreinado, e teimava que aquela tinha de ser a história de José Fiorini, contada por ele mesmo.

Nos anos que se seguiram, fiz algumas tentativas de arranjar aquele texto, pouco burilado em relação ao original. Mostrei-o a algumas pessoas, que jamais demonstraram grande entusiasmo. Por cerca de dez anos, aquilo permaneceu nas minhas gavetas, como um sonho de juventude, praticamente abandonado. Ainda mais quando meu avô veio a falecer, alguns anos depois, deitado em sua cama, numa noite em que se encontrava sozinho em casa, sem que alguém estivesse por perto para socorrê-lo. Muitas vezes pensei em como teria sido essa noite, o homem sozinho, diante da morte. E mais, diante da perspectiva do esquecimento eterno. Aquilo me deixou profundamente abalado e certo de que precisaria fazer alguma coisa para trazer aquele homem de volta à vida.

Só mais tarde comecei a refletir que o romance só começaria realmente a se transformar em livro quando as histórias reais, contadas por meu avô, começassem a entrar no terreno da imaginação. Seria um passo difícil, porque não seria mais ele a narrar a história, mas eu a conduzi-la por meio dos seus olhos. Poderia aproveitar alguns trechos, idéias, personagens herdados do relato de meu avô, mas teria que inventar a maior parte de tudo, a partir de uma teia complicada, tecida por muitos personagens. A essa altura, eu já trabalhava há dez anos como jornalista; decidi abandonar um bom emprego como editor da revista Veja para que pudesse ter mais tempo de dedicação a escrever. Antes de voltar aos meus alfarrábios e às fitas de meu avô, procurei escrever algumas histórias curtas, como um treino para o trabalho que viria a seguir. Dois anos mais se passaram, até que eu me senti enfim à altura da história que considerava realmente grande.

Então aconteceu um pequeno milagre. Tantas vezes eu já ouvira as histórias de meu avô, que sequer voltei a consultar minhas anotações. Elas haviam se incorporado a mim de tal forma que por vezes eu já nem distinguia mais o que ele havia me contado de minha própria imaginação. A narrativa corria fácil, surgiam personagens, novas tramas começava a tomar forma. Eu sabia aonde queria chegar, mas não imaginava quantos caminhos surgiriam até que todos os personagens pudessem encontrar o desfecho pretendido. O livro foi ganhando corpo. Saído do zero, em seis meses tinha mais de 100 páginas. Depois de um ano, estava quase pronto, com mais de trezentas páginas. Cansado, contudo, encerrei-o abruptamente e deixei-o dormir novamente. Tinha preguiça de encontrar aquela tarefa hercúlea outra vez pela frente; adiava-a, relutava. Retomei o trabalho somente um ano mais tarde, sem rever o início, puxando o fio onde a meada acabara, de maneira a enfrentar com fôlego o trecho final.

Quando terminei, as histórias de meu avô já eram parte diminuta do conjunto do texto. Elas ganharam cores, outras histórias e novos sentimentos nasceram. Foi só então que percebi o que meu avô queria dizer, quando afirmava que aquele livro estava dentro de mim. Filhos da Terra, que então eu chamava apenas de Iusfen, o apelido doméstico de meu avô, não era um livro do desconhecido José Fiorini. Era o meu livro, sobre um homem chamado José Fiorini - um outro contador de histórias. E era um livro sobre todas as personagens que ambos vimos de forma material ou imaginária passando pela vida, como nós próprios. Com o desejo, muito íntimo, de que nossas histórias pudessem se cristalizar, registradas no papel, e ficar na memória de todos para sempre.