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terça-feira, 7 de outubro de 2014

Paulo Coelho, Deus e a função do editor



Ao assumir em novembro de 2.009 a direção editorial da Saraiva, para lançar livros de ficção e não-ficção, eu tinha dois desafios. O primeiro, como fazer uma editora que tinha a maior cadeia de livrarias do país vender também em outras redes e livrarias independentes. Segundo, que contribuía com o primeiro: como trazer grandes autores, que em geral estavam bem colocados em empresas concorrentes.

Com apoio da empresa, o primeiro desafio foi resolvido com a criação de uma marca: Benvirá, que seria divulgada por meio de um prêmio literário, entre outras ações. Precisávamos dar prestígio ao selo, colocando autores na Flip, por exemplo, o que viria a acontecer depois. Quanto a conquistar autores vendedores... Bem, esse era o maior desafio. Comecei a pesquisar autores de alta qualidade, que estavam meio abandonados, e eu poderia recuperar; autores novos, ainda despercebidos; e autores de calibre grosso que, com projetos sólidos, e dinheiro, eu tentaria conquistar.

A primeira oportunidade que surgiu foi justamente com o maior best seller brasileiro: Paulo Coelho. Naquela época, ele acabava de deixar sua antiga editora; seu primeiro livro em uma nova casa estaria em leilão. Enviei um e-mail para sua agente em Barcelona, Monica Antunes; marcamos para a feira de Londres, em abril seguinte, uma reunião.

O destino complica a vida das pessoas, sobretudo as sem experiência no ramo, como era o meu caso; naquele mês de abril, aconteceu na forma de um vulcão. A montanha, localizada na Islândia, resolveu bem naquela hora explodir; lançou uma nuvem de cinza sobre a Europa, que fechou os aeroportos; muita gente, como eu, teve cancelado o avião. Um dia depois da feira, onde, segundo eu acreditava, não tinha acontecido nada, li no jornal uma nota sobre a compra de Aleph, o novo livro de Paulo, pela editora Sextante.

Eu, que tinha com Monica aquela reunião, na expectativa de poder pelo menos fazer um lance, não podia estar mais frustrado. Tinha perdido o negócio, mas não a disposição. Mandei para ela nova comunicação. Disse que iria a Barcelona visitar alguns agentes, que gostaria de ter conhecido já em Londres, e pedia para falar com ela pessoalmente.

No dia marcado, hora marcada, eu estava lá: um prédio envidraçado na avenida diante do porto, onde ficava a Saint-Jordí. Cabelos curtos, olhos puxados, que deixam seu sorriso com um pouco da alegria chinesa, Mônica me recebeu na sala de reunião. "É um prazer te receber, mas não sei o que você está fazendo aqui", ela disse. "Como você sabe, eu já vendi o livro."

De fato. Eu, que às vezes compenso minha ignorância com certa ousadia, o que em geral se confunde com insolência, primeiro reclamei que ela tinha vendido o livro sem falar nada comigo. "É verdade", ela respondeu. "Mas o olhei o site da Editora Saraiva. É tão ruim que não sei como vocês fazem livro."

Não pude discordar. Desde que entrara, eu dizia que precisávamos de um site melhor, mais voltado para o varejo, necessidade do novo negócio. Me pediram para esperar, tudo seria reformulado. E, como costuma acontecer com medidas importantes mas consideradas pequenas nas grandes organizações, fiquei a esperar e esperar.

Disse então que estava ali porque tinha uma ideia para lhe dar. Ela tomou um choque, quase ofendida, beirando a indignação. "O Paulo não faz livro de encomenda!", avisou. Realmente, se há alguém que não precisa fazer um livro de encomenda, a cavaleiro dos seus milhões de livros vendidos em mais de 150 países, é Paulo Coelho. Isso, porém, não me abalou. "Mas você ainda nem ouviu a minha ideia!" Monica, mais uma vez surpresa, depois de olhar para mim, por desencargo, concordou.

Expliquei então o que eu imaginara. "Para mim, o Paulo é o grande fabulista do nosso tempo", eu disse. "Minha ideia é fazer ele reescrever as fábulas do Esopo, como fez la Fontaine. Na linguagem dele, voltada para o público contemporâneo. Seria um livro para crianças, mas que pode ser lido por qualquer um."

Mônica parou um instante: num estalo, em vez de me mandar embora com um piparote, comprou a ideia de imediato.

"Vou falar com ele", disse. Levantou-se inopinadamente, foi até uma prateleira na parede, e voltou dali com três livros. "Já que vocês têm na Saraiva a área educacional, poderiam fazer também isso aqui", ela disse, e me entregou os exemplares, num formato quase de livro de bolso. Eram O Alquimista, O Demônio e a srta Pryn e Verônika Decide Morrer, com um suplemento didático, uma coleção para ser vendida em escolas. Explicou que aqueles três livros eram usados por professores em países como Espanha, Estados Unidos e Portugal. "Talvez pudéssemos fazer isso também no Brasil."

Saí de lá desconfiado: estava bom demais. Já tomara uma surpresa antes, tomar outra não custaria nada. Ao chegar em São Paulo, porém, ao abrir o computador, estava lá: um e-mail do próprio Paulo, com um texto em anexo, em que ele, ainda antes de assinar qualquer contrato, e já trabalhando, perguntava: "é isso que você tinha em mente?". Era. Nascia aí o "Fábulas" de Paulo Coelho, que seria uma das maiores vendas durante a minha gestão.

Em um mês, criei uma página na internet só para o selo Benvirá - cartão de visitas que não dependia mais da grande reformulação prometida pela corporação. Negociei o contrato de Fábulas, e disse que faríamos os livros paradidáticos, com duas condições. A primeira: pelos livros didáticos, eu não pagaria nada de adiantamento autoral. Todo o dinheiro seria investido no trabalho com o professor. (Mais tarde, ela diria que eu fui o "editor mais duro" com quem negociou. Espantado, perguntei a razão. "Nunca tinha vendido um livro por zero", ela afirmou).

A segunda condição, no entanto, era a mais importante. Paulo Coelho sofria, sempre sofreu, uma grande rejeição do mundo intelectual no Brasil, incluindo o professor. Era um best seller, um autor popular, mas lhe faltava o prestígio qualitativo que faz entrar na escola um autor. A meu ver, isso acontecia porque os livros de Paulo, em português, onde sempre foram lançados inicialmente, tinham muitos erros: de ortografia, de lógica, de informação. Esses erros não afetavam outros países, onde Paulo tinha vendas e prestígio também, porque desapareciam na tradução.

Para vencer a resistência do professor, e convencê-lo a adotar os livros de Paulo, precisávamos de um produto impecável. Isso significava fazer os livros passarem por um implacável trabalho de edição.

Eu havia escutado que Paulo se recusava a ter seus textos editados e até mesmo revisados, o que deixava passar erros muitas vezes primários. Corria no mercado a lenda de que ele dizia receber aquelas palavras diretamente de Deus - portanto, seu texto tinha de sair como Ele mandava. Contei isso a Mônica. Ela respondeu que era tudo bobagem. E que eu podia fazer o trabalho que tinha de fazer.

Durante dois meses, além de fazer o material paradidático, com a ajuda de um professor, editamos e revisamos os três principais livros de Paulo, que se tornaram significativamente melhores na versão paradidática da Saraiva, comparada com a versão de varejo. A Saraiva começou a vender os livros para as escolas, um esforço árduo de convencimento do professor. E, paralelamente, o Fábulas saiu.

Todas as mudanças feitas no texto dos romances foram submetidos ao Paulo. Ele as aceitou, sem pestanejar. Deus também não fez nenhuma objeção. Na convivência do trabalho, meu conceito sobre ele subiu. Passei a respeitar Mônica, que o escritor Fernando Morais, meu amigo, chamava de A Bruxa, pela sua capacidade de catapultar um escritor brasileiro á condição de best seller mundial. Acho que foi recíproco. Eu e Monica nos tornamos amigos e nos encontramos muitas vezes, não apenas para falar de negócios. Ela é firme, dura e árdua defensora do seu autor, como tem de ser. Mas descobri que também é uma pessoa doce, sensível e de bom humor. E que aceita argumentos, quando são em benefício do negócio, bons para a editora, e o escritor. É, ainda, de uma simplicidade e modéstia exemplares. Quando lhe perguntei como tinha vendido Paulo no mundo inteiro, ela me respondeu, simplesmente: "batendo de porta em porta". Como eu, por sinal, também estava fazendo.

Muitas vezes penso que, se tivesse feito esse trabalho no início, Paulo não teria sofrido a rejeição que teve aqui, no Brasil. Nunca entendi por que os editores se furtaram a fazer seu trabalho, como tentei fazer. Nem mesmo Paulo Coelho, recebendo ou não suas palavras de Deus, acerta tudo. Ele é um gênio, que descobriu um filão literário a partir de sua experiência de vida, de sua intuição, de sua sintonia com o mundo e com os interesses do leitor. Esse é um talento que poucos têm. Mas é preciso ser rigoroso com o texto. Não basta ser criativo, nem mesmo genial. Qualquer um, até mesmo Deus, precisa de um bom editor.