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terça-feira, 4 de maio de 2010

Uma mulher em sua ilha

Falo por e-mail com a escritora e poetisa Wendy Guerra, em Havana. Guerra diz que vive “longe de tudo e de todos”. Que pouco fala com editores. Lê mal em inglês, criada como foi no regime comunista, que ensinava russo às suas crianças. Vive em uma cobertura em Miramar, “rodeada de mar e luz”, onde come “entre cristais”.

Em seu mais recente romance, Nunca Fui Primeira Dama, que acaba de ser lançado pelo selo Benvirá, sua personagem habita um casarão “cheio de sal” no Malecón, a célebre fachada da cidade diante do mar, semi-abandonada. Sempre me perguntei se havia gente morando ali, naquela galeria fantasma. Na obra de Wendy, há. Um pouco dela está lá. Como acredito que a ficção diz mais sobre o escritor do que a vida real, vejo Wendy em seu palácio abandonado, como se ali vivesse de verdade.

Decidiu usar sua presença em Cuba como manifesto. Seu romance, belo e pungente, conta a história de uma mãe foragida do país por escrever um livro sobre a falecida secretária de Fidel, Celia Sánchez. Por isso, a mãe teria abandonado a filha em Cuba, aos dez anos de idade. Ao contar a história da mãe, a narradora de Wendy conta também a de Celia. Resgata a figura da mãe, em todos os sentidos. E completa o trabalho materno, publicando a história proibida da mulher que mais perto esteve de Fidel. Como autora, coloca-se no papel de sua própria personagem.

Wendy fica em Cuba, como estandarte de uma cruzada pessoal. Não quer sair, como tantos que saíram, esgotados com o regime. Ao fim dos termos, sua história pessoal é também de defesa da liberdade, da literatura e da expressão, em uma Cuba que não precisa abandonar suas utopias para voltar a ter tudo isso, e mais o progresso. Como ela diz, pertence a uma geração que não é nem da de seus avós revolucionários, nem mesmo a de seus pais, os operários a quem se atribuiu a tarefa de construir na vida real os velhos sonhos.

Ela é uma geração que quer igualdade social, mas também quer liberdade. Que faz da vida comum e das necessidades mais simples, como a de reconstruir a família destroçada pelas antigas gerações, a sua verdadeira bandeira política e o seu manifesto.

Em seu castelo feito de memórias, Wendy não está sozinha. Com ela, estão os injustiçados do passado, os banidos, os inconformados. Os que vão embora, mas sobretudo os que não vão. Os inconformados que ficam, marcam posição. Os que tentam reconstruir algo sobre um passado incompleto e desolador.

Hoje já não existem ilhas completamente isoladas. Como sua personagem, Wendy rasgou as capas que cobriam os livros proibidos da biblioteca de sua casa, também como um gesto simbólico. Cuba aos poucos muda. Ela não tem seus romances publicados em Cuba (por lá saíram apenas os de poesia), mas também não precisa fugir de sua ilha para escrever.

Cuba nunca foi uma ilha e hoje menos que nunca. Ernest Hemingway viveu lá. Precisava apenas da brisa do mar, da linha de pesca, do sol cubano, do mar cerúleo, do rum para os daiquiris na Floridita. Era um homem ilhado e ao mesmo tempo estava mais presente no mundo que muita gente plantada em Paris e Nova York. Wendy também é assim.

Wendy Guerra está em Cuba. Escritores são ilhas, vivendo dentro de si mesmos, cercados de suas obsessões por todos os lados. Não importa se vivem numa cabana nas montanhas, numa praia deserta ou num apartamento da megalópole. Ao mesmo tempo, se correspondem com todos. Onde quer que estejam.

Wendy Guerra vive entre velhos cristais, mas ao mesmo tempo está em todo mundo, onde se pode compartilhar dos sentimentos que ela generosa e corajosamente abre como a flor do coração.

Sim, o Malecón à noite é semiabandonado, escuro, feio e sombrio. Dá medo. Mas lá há vida que se espalha sobre o mar.