Um antigo companheiro da revista Veja, amigo de longa data, assiste à minha entrevista ao Jô Soares, e manda pelo Facebook uma pergunta com aquela pimentinha típica: "Só não entendi essa história de 'como o índio entrou no brasileiro'. "
E a resposta está na sua própria pergunta.
Realmente nós, brasileiros, temos uma enorme dificuldade de comprender como a sociedade brasileira incorporou o índio. Para nós, o povo massacrado pelos portugueses no Século XVI é uma coisa do passado, e hoje se resume àquela gente que sobrou, circunscrita aos recônditos da Amazônia ou ao Parque Nacional do Xingu, a célebre reserva indígena criada pelos irmãos Villas-Boas. Nada portanto a ver conosco.
O fato, porém, é que ó índio está no nosso DNA, como bem mostra A Conquista do Brasil, onde está claro o esforço não só para exterminar o índio como apagar os vestígios de sua influência. Apesar do empenho do colonizador imperialista e sanguinário em exterminar aquela gente insubmissa, o índio não contribuiu apenas com os nomes de lugares, ruas e cidades por todo o país. Sua cultura e seu comportamento estão arraigados na sociedade brasileira. De uma forma tão profunda que nem chegamos a perceber, porque já é quase impossível dissociá-la da nossa personalidade como Nação.
Como mostra a malícia da pergunta do amigo, o brasileiro gosta de fazer pouco das coisas, de desvalorizá-las, de falar mal dos outros. Isso chega a extremos. Quando morre alguém conhecido, ou há alguma crise, no instante seguinte o brasileiro está fazendo piada. Esse é um comportamento típico do índio brasileiro. Não respeitamos nem gente que morre em desastre aéreo.
Assim como o índio, o brasileiro não gosta de autoridade. Nas sociedades indígenas, incluindo aquelas que os portugueses encontraram no Brasil ao desembarcar, o chefe é um servidor da comunidade e na realidade tinha pouco poder. Para os índios, o chefe servia para lhes dar presentes. E nem por isso lhes deviam servidão ou sequer reconhecimento. Uma atitude muito típica do brasileiro, que quer que o governo proveja tudo, mas está sempre pouco disposto a colaborar.
Os índios eram uma sociedade de subsistência, que viviam na abundância e não viam sentido em acumular riqueza nem planejar o futuro. O brasileiro não planeja o futuro. Isso tem consequências em todos os planos. O brasileiro quer comprar uma geladeira e uma TV de última geração assim que recebe um dinheiro, mas não guarda recursos para a aposentadoria, como fazem outros povos, dos Estados Unidos ao Japão. De maneira geral, o brasileiro é consumista e imediatista. Junta para o dia. Há algo do índio aí.
O índio não tem responsabilidade com as coisas. Faz coisas graves como se não tivessem efeito. Pode matar um ser humano e em seguida sair dando risada, como testemunha muita gente, incluindo os próprios irmãos Villas-Boas, no seu livro A Marcha para o Oeste. Assim como o índio, o brasileiro é inconsequente. Estes dias em que nos deparamos com os bilhões roubados da Petrobras e de outros estamentos da administração federal, nos perguntamos como alguém pode ser inconsequente a ponto de achar que ninguém descobriria uma roubalheira desse tamanho, maior que o PIB de muitos países, capaz de levar estatais à bancarrota e à falência de toda a administração pública. É nossa mentalidade silvícola na gestão pública.
A corrupção não é um problema do governo, é da sociedade que a permite. Ela se instala de forma generalizada e custa a deixar o nosso dia a dia porque está enraizada. Contagia a todos, do alto escalão da administração federal ao fiscal de rua. No setor privado, desce do capitão de indústria, que concorda em pagar propina para obter preferência na obra pública, até o cidadão que ultrapassa o outro na fila, trafega pelo acostamento para evitar o engarrafamento ou tenta dar o célebre "jeitinho", sempre alguma forma de se livrar dos pequenos regulamentos que põe ordem ao dia a dia.
Isso é resultado da porção silvícola em nossas veias, em nosso comportamento, em nossa sociedade. Gostamos de ver o lado bom da nossa porção indígena, que ajudou o brasileiro a ser um povo alegre, que enfrenta as dificuldades com certa leveza, que não se preocupa tanto e consegue ser mais flexível e tolerante com regras e pessoas. Porém, não gostamos de olhar para o lado negativo desse mesmo comportamento, que nos leva a ser uma sociedade desorganizada, propensa à corrupção, à falta de planejamento e que gosta de criticar a si mesma sem se corrigir de fato.
A melhor maneira de melhorar é entendermos a nós mesmos, sem receio de olhar para nossas mazelas. Ao fazer um mergulho no passado, A Conquista do Brasil propicia também o exercício de psicanálise de uma Nação, trazendo do berço seus traumas e características. Somente essa terapia pode nos ajudar a entender cada um que cria o país adulto de hoje e trabalhar de forma coerente para melhorá-lo.