quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Anita e Garibaldi: a maior história de amor de todos os tempos


Eu sempre senti o desejo de escrever sobre Giuseppe e Anita Garibaldi, mas hoje já não sei bem se era mesmo um desejo ou um pressentimento. Achava sua história fascinante, e escrevê-la uma tarefa ambiciosa, já que muitos julgam conhecer bem seus personagens. O que eu tinha de novo a dizer sobre eles?

Como uma mensagem divina, às vezes temos uma visão. A minha foram aqueles mastros batendo através das janelas retangulares, na casa da infância de Garibaldi, em Nice. Ali, achei que o tinha compreendido, afinal. E mais: achei ter entendido o papel em sua vida - e vice-versa - da mulher que ele realmente amou.

A casa onde nasceu Garibaldi, na antiga Nizza dos tempos em que esse pedaço da França ainda era Itália, fica em frente ao porto. Ali Garibaldi cresceu, olhando aqueles mesmos mastros se entrechocando do lado de fora. Dormia, respirava, vivia o mar.

Foi criança de pé no chão, pelas vielas estreitas da cidade velha, no alto do morro debruçado sobre o Mediterrâneo: ele viu aquelas ruas, como eu via; ele viu o mar azul cerúleo, trazendo as pedras roliças, na orla onde hoje se perfilam lojas, restaurantes e um cassino; viu o horizonte onde céu e mar se fundem desde tempos imemoriais.

Eu creio que entendi a gênese de Garibaldi, o herói. O que ele sonhava. O que queria. E, como uma extensão dele mesmo, entendi a mulher que amou. E sua importância. Para ele, maior que a dele mesmo.

Para escrever direito um romance, como este que sai agora em abril pela Editora Record, é preciso entrar nos personagens, estar no seu tempo, viver sua vida, buscar seu sentido original e verdadeiro. Como acontece com os atores que interpretam personagens reais na TV ou no cinema, um autor precisa encarnar cada uma das pessoas a quem ele dá novamente a vida. Enquanto escrevemos, aprendemos com eles, sentimos o que sentem, agimos coerentemente com isso, e assim a história ganha cor, dimensão, realidade.

Por algum tempo, para escrever Anita, eu tive de ser Anita, e sobretudo Garibaldi, que conta, do seu ponto de vista, a história da mulher que ele conheceu como ninguém.

Hoje todo mundo estranha quando me vê de barba comprida, que deixei crescer ao longo dos últimos meses. Insconscientemente, não bastou eu tentar me sentir como Garibaldi; eu quis parecer Garibaldi, viver Garibaldi, para conhecer Anita e interpretar o que hoje, a meu ver, me parece ser a maior história de amor de todos os tempos.

Uma barba, para mim, não é apenas uma barba: tem algo de primitivo, de guerreiro, de certo espírito indomável. Durante o tempo em que escrevi o romance, eu fui Garibaldi. Passei com Anita as mais lindas - e também as mais duras horas. Não foi fácil, inclusive para quem está em volta.

Durante a semana em que escrevi a passagem mais dramática do livro, minha mulher reclamou que eu andava intragável. Disperso, no jantar só olhava para o prato, esquecido de comer. Isso é ela mesma quem conta: nem lembro. Mas sei que ela tem razão. Eu transpirava bile, dor, revolta, raiva. Fiz ela sofrer comigo. (Meu amor, perdão). Mas ela entende. E ajuda.

Enquanto eu vivia nesse mundo paralelo, criado no trânsito entre a mente e o teclado do computador, algo foi mudando em mim. Uma maior compreensão da coragem, do heroísmo, da mulher, da mãe, do casamento, do sentido da vida. Um livro não funciona, não causa seu efeito, se no processo da escrita o autor não vive tudo o que está ali.

Só assim um romance sai verdadeiro, fruto da experiência humana. O leitor só recebe o impacto de um romance se o autor passar primeiro por ele. Anita foi, para mim, como o choque contra um caminhão.

Saí de Anita diferente. Não tirei a barba. Algo do livro ficou em mim. Não sei quanto tempo vou conservá-la. Felizmente, minha mulher compreende a barba, suas implicações. Gosta, incentiva. Vive comigo as mais estranhas travessias. Sofre junto, se alegra, me conforta nas horas mais certas. Algumas vezes ela diz que eu posso ser lido como um livro. Ela sabe, sem eu dizer nada.

Garibaldi teve muita sorte. Eu também.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Podemos escolher o que sentimos

Certa vez, ouvi de um sábio chinês que o sentimento não tem tempo. Você pode sentir a mesma coisa que sentiu na infância, com a mesma intensidade e o realismo de quem está sentindo aquilo pela primeira vez.

Sempre pensei nisso pelo lado negativo da balança. A ideia do sábio chinês é de que você tem de resolver os conflitos do passado. Não perdoar, apenas, pró-forma, como se fosse uma concessão ao perdoado. Ao contrário do que muitos pensam, o perdão não é para quem é perdoado. É sobretudo para quem perdoa.

Ao perdoar, mudamos o significado do sentimento, para que a raiva, a tristeza,  o rancor e o ressentimento deixem de nos machucar - o que os psicólogos chamam de "re-significação".

Se você não resolve sentimentos conflituosos do passado, esse passivo de sentimentos venenosos vai  se acumulando. A pessoa fica rancorosa, amargurada, e até doente.

Perdoar significa perder essa carga ruim que vamos acumulando quando não resolvemos sentimentos negativos que vão surgindo ao longo da vida. Perdoar deixa quem perdoa mais leve. Você esquece, deixa de sentir. E isso traz saúde.

Há também o outro lado. Se o sentimento não morre, assim também é o amor. Você pode amar uma pessoa com quem viveu há muito tempo atrás. O sentimento vem, volta, parece que renasce. Mas é que ele nunca saiu de lá.

Uma história de amor não vai embora. A menos que você a apague. Mas, nesse caso, talvez fosse melhor não apagar. Todo amor é algo para se lembrar.

O coração é grande. Quem teve mais de um filho sabe como é possível amar muito a mais que uma pessoa e da mesma forma. Cabe muita gente num só coração. Porque com o amor romântico seria diferente?

Não se apaga um antigo amor. Mas podemos lidar com ele também de forma diferente. Para poder seguir adiante. para mudar de vida. Basta re-significá-lo.

Todas as pessoas da sua vida ficam com o seu lugar. Na tapeçaria dos sentimentos, ajudam a formar a trama de quem somos. Há belos tapetes de um só fio. Há tramas com fios e cores diferentes e que rendem desenhos complexos. Todos podem ser belos.

Um homem é quem ele nasce, o que ele aprende, mais a soma de suas experiências. Podemos escolher também o que sentimos. Para nos aproximar dos sábios chineses, de sabedoria tão grande quanto seus bigodes proverbiais.


A Conquista do Brasil nos lembra de conquistar o mundo

Lançado pela editora Planeta de Portugal em outubro passado, A Conquista do Brasil segue com velas enfunadas em águas portuguesas. É um prazer estar na mesma editora portuguesa que tem em seu catálogo autores brasileiros como Lya Luft, Edney Silvestre e Fernando Morais. Grande editora também em Portugal, possui um vasto portfólio, que vai de ficcionistas tão diferentes quanto Jo Nesbo, Carlos Ruiz Zafón e Rick Riodan a personalidades sagradas ou consagradas como Nelson Mandela e o Papa Francisco.
A capa da edição portuguesa

Quando estive em Lisboa, na volta de uma feira do livro em Frankfurt, me dei conta de como era despropositado Portugal ter sido o último país da Europa que conheci. Distante no extremo da península, é uma Europa isolada e única, onde, estranhamente, se falava português.

Eu me sentia curiosamente em casa. A arquitetura lembrava o Brasil colônia: aquelas janelas retangulares, que em Portugal são de pedra branca e no Brasil, onde não havia pedra igual, se utilizou a madeira brasileira,  moldou o jeito de morar e ser do colonizador e nos deu uma herança cultural única no mundo.

Sobretudo, vi em Lisboa algo da educação que recebi de família. Os portugueses são tão cuidadosos que o ônibus anuncia a parada a cada minuto. "Dois minutos para a estação tal... Um minuto para a estação tal... Estação tal".

Os portugueses são europeus no sentido clássico da palavra, educados, cultos e discretos. E seu vinho e sua cozinha são tão familiares quanto deliciosos. Assim como na Itália, eu podia entrar em qualquer restaurante e escolher o prato correndo o dedo no cardápio de olhos fechados.

A Conquista do Brasil me mostrou como esse antigo elo ainda é profundo. Ele não está no passado. Está no dia a dia, no sangue, nos hábitos. Em alguns vícios, também. É uma conexão que nos interessa. Pode nos ajudar a compreender a nós mesmos, e poderia nos ajudar a crescer, a nos lançar também ao mundo, com as caravelas contemporâneas.

O Brasil vive muito preso em si mesmo, tentando resolver sempre as mesmas questões, sem olhar para fora. Temos de ser mais ousados, mais conquistadores, como os antepassados que aportaram nas praias brasileiras, afrontando tantos perigos. O Brasil precisa ser maior. Só assim será melhor também aqui dentro. Para isso, é preciso antes de mais nada querer conquistar o mundo. E atravessar o mar.



A tragédia brasileira


A palavra "tragédia" vem do seu original grego, trag-oidos, que quer dizer "o canto do bode". Isto porque, na Grécia antiga, o teatro saiu das antigas festas, onde os participantes cantavam e dançavam fantasiados de sátiros, homens com pernas peludas, patas e chifres de bode, símbolo masculino da depravação. Até que Téspis teve a idéia de colocar um "ator" para dialogar com o coro. Assim surgiu o teatro, que os grandes dramaturgos gregos como Ésquilo carregaram com as máscaras e conteúdo dramáticos. Daí a tragédia ganhou a conotação de catástrofe humana, no sentido mais amplo, como a entendemos agora.

Tudo isso para dizer que 2016 foi o ano de glória da tragédia brasileira. Como a tragédia grega, começou como festa: a lambança patrocinada pelo PT, seja com a distribuição descontrolada de benefícios à população carente, gerando uma bolha econômica de estouro previsível, seja com o saque puro e simples do erário para encher a burra do partido, de seus associados e um grupo seleto de empresários que, assim, acabaram todos atirando no próprio pé.

O conjunto da obra resultou na bancarrota do Estado brasileiro e na geração da crise que contabilizou já este ano cerca de 13 milhões de desempregados, para ficar no número até agora quantificável. Enquanto o povo estava satisfeito com com sua parte do butim, o governo corrupto continuou popular. Agora, na crise absoluta, os brasileiros vibram cada vez que vai um para a cadeia. Mas não há o que comemorar, nem como vingança.

A conta gerada pelos inconsequentes vai levar tempo para pagar. O governo do PT caiu, mas a tragédia não se encerrou aí, porque caiu o PT, mas ficaram os seus sócios. Num governo que em um breve tempo já teve um bom pedaço de seu ministério defenestrado também por corrupção, o novo presidente Michel Temer carrega as denúncias que pesam contra ele e seu partido, o ônus do desastre financeiro deixado pela antecessora e a falta de credibilidade de quem chegou ao poder no mesmo navio cujo naufrágio ajudou a patrocinar.

Parece outro governo, mas é apenas o monstro cuspido de dentro do antigo monstro. A tragédia brasileira promete ser duradoura. As reformas levadas adiante por Temer são muito questionáveis em todos os sentidos. Quer se reformar a previdência, jogando a conta para contribuinte, mas se escamoteia o fato de que o dinheiro da conta social é usado para tapar outros buracos. O teto nos gastos, a chamada PEC, não parece ser a solução para impor a disciplina fiscal.

Por fim, é verdade que a Justiça afinal começou a fazer seu trabalho e passou a colocar corruptos e corruptores na cadeia, mas até agora não existe nenhuma iniciativa para normatizar os financiamentos de campanha e reconstruir as instituições onde já se provaram espúrias.

A tendência é a paralisação do país em todos os sentidos, algo grave num país já abalroado seriamente pela crise.

Nem mesmo eleições diretas, que poderiam ser convocadas em caso de impedimento do atual presidente, parecem uma solução útil neste momento conturbado. Não existe no cenário uma liderança capaz de colocar o Brasil nos trilhos. Os caciques do PSDB, o partido de oposição, também estão em xeque, acusados de financimento escuso de campanha. Sobretudo, não existe um programa sólido para a reconstrução. Que aponte não apenas o corte e limitação de gastos, como redefina o papel do Estado brasileiro e volte a dar oxigênio para o nosso destrambelhado capitalismo.

A redefinição do Estado que se pede é orientadora do futuro: um governo que seja social de fato, investindo em educação, saúde e segurança nos seus três níveis, federal, estadual e municipal. Uma democracia de mãos mais limpas, com transparência na origem e finalidade do dinheiro, e que inviabilize a prática de financiar candidatos com o próprio dinheiro público que eles repassam a seus financiadores privados. O círculo vicioso que perpetua no poder a parcela mais retrógrada da elite brasileira.

E isso tem de ser feito num clima de reconstrução. É preciso um grande líder para realizar uma tarefa que, agora, quando se começa tarde demais, se tornou hercúlea.

Tragédias por definição sempre terminam mal e sempre podem ir mais fundo. Elas existem desde a Grécia antiga porque o espírito trágico está no próprio espírito humano. Os autores da festança estão indo para a cadeia, mas as consequências trágicas dos seus ruinosos interesses são para todos nós. Nossa é, portanto, a tarefa da reconstrução. Que venha 2017.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Dos editores, o maior


Dou uma rara paradinha no livro que estou escrevendo agora para comentar a biografia de #RobertoCivita, do jornalista #CarlosMaranhão, que acaba de ser publicada pela #CompanhiadasLetras - um livro muito importante pela figura que retrata, essencial na história da imprensa brasileira e da História do país numa época chave, que vai do final da ditadura à estabilização democrática. Vou lendo um trecho aqui e ali, fora de ordem, por diversão.

E, claro, comecei pelo pedacinho que me coube, e diz respeito ao que Maranhão chama de "a mais difícil" transição de comando na revista #Veja- um pedaço muito interessante não apenas da história da revista como marco de uma mudança na imprensa, da qual pude participar. E ele usa para isso uma pequena anedota que circulou na empresa naquela ocasião, segundo a qual Roberto Civita escolheu para dirigir a revista "dos Tales o menor" - uma referência a mim, que tenho 1,74, e meu caro amigo Tales Alvarenga, dez centímetros mais baixo.

Maranhão teve diante de si uma tarefa por um lado ingrata. É muito difícil escrever um livro recheado de gente viva, entre as quais estão muitos amigos, incluindo eu. É complicado ser incisivo quando se pode ferir suscetibilidades. Como diz meu querido amigo Fernando Morais, um mestre da reportagem em livro, "escrever é fazer inimigos". Maranhão tem uma qualidade na qual é insuperável: é um verdadeiro lorde, perfeccionista e diplomata, que consegue ir contornando esses perigos sem fugir ao assunto.

É preciso retroceder um pouco no tempo, para entender tudo. Em 1999, eu voltei a trabalhar em Veja, onde já tivera uma passagem de quatro anos, entre 1986 e 1991. Nessa primeira encarnação, eu passei de um eficiente repórter de economia, treinado nas fileiras da então venerável Gazeta Mercantil, a repórter, depois subeditor de economia e por fim editor de Assuntos Nacionais (Brasil) da revista. Comecei em Veja na redação mais brilhante da revista e dal qual já participei, com José Roberto Guzzo, Elio Gaspari, Dorrit Arazim e editores que teriam papel importante, como Mario Sergio Conti, editor de variedades, e Euripedes Alcantara, então editor de geral. Foi para mim uma universidade.

Lá desenvolvi a habilidade de ir mais fundo nas histórias, aperfeiçoar o texto e, conforme a grande máxima do Roberto, "transformar o importante em interessante". Ganhamos muitos prêmios e tive o prazer e o privilégio de, no cargo de editor da seção de política mais influente do país na época, participar da cobertura da primeira eleição democrática para presidente em 30 anos: o fim da ditadura militar.

Nesse período, entre outras coisas, descobri que Roberto pouco ou nada interferia. Em todo o tempo em que fiquei no cargo, ele me chamou uma única vez. Com tantos assuntos importantes, ele pediu para acompanhá-lo numa visita à Câmara dos deputados em São Paulo, solicitada pelos parlamentares, que queriam mais cobertura da revista em assuntos paulistas. Uma embaixada que tiramos de letra. Ele mesmo não fez nada. Apenas pediu que eu (eu!) explicasse a eles como Veja funcionava. Por sorte eu fizera há pouco uma reportagem sobre a política paulista, mesmo sendo Veja nacional. Saiu todo mundo satisfeito - e eu, que sabia como eram perigosos aqueles testes do Roberto, aliviado.

Em 1991, esgotado pelo trabalho, resolvi tirar um ano de férias. Aos 25 anos, eu era muito jovem para tamanha responsabilidade e aquilo pesava. Via meus amigos se divertindo enquanto eu virava madrugadas escrevendo, na crença de que estava mudando o país (bem, estávamos mudando o país). Foi um período missionário, muito duro fisicamente. Eu dormia de madrugada e depois de quatro horas de sono estava tomando um avião para seguir um candidato do outro lado do país. Voltava para fechar minha seção, madrugadas adentro. "Brasil" jamais voltaria a ter tantas páginas em Veja. Eu gostava daquilo, mas era realmente desgastante. E eu já flertava com a ideia de ficar apenas escrevendo livros.

Pedi demissão. O editor executivo Paulo Moreira Leite, com quem eu trabalhava diretamente, chegou a me oferecer a correspondência da revista em Paris, para que eu ficasse. Agradeci, mas disse não. Gostaria de ir a Paris, mas não conseguia mais trabalhar.

Da segunda vez, foi diferente. Depois de voltar do meu período sabático, e descobrir que escrever livro não era tão fácil assim, fui editor senior no Estado de S. Paulo e, a convite de Antonio Machado, editei durante seis anos a revista VIP, então um suplemento de Exame. Era um emprego divertido, em que eu precisava viajar para lugares maravilhosos, comer e beber do melhor. A revista ia muito bem, tanto que foi separada de Exame para se tornar independente. Mas eu passei a me subordinar a outras pessoas e estava um pouco cansado de publicações de estilo de vida. Queria fazer hard news novamente.

Fui pedir emprego a Veja. Podia ter falado com Mario Sergio Conti, que era o diretor de redação, com quem ja havia trabalhado diretamente. Mas preferi procurar Tales. Além do nome, tínhamos outras coisas em comum. Eu trabalhara com ele num período difícil. Guzzo, que cuidava pessoalmente da seção de economia, tinha saído para reformular Exame. Não havia editor de economia, pois Antonio Machado também tinha ido para a revista irmã. Eu, como subeditor, por algum tempo fechei a seção sozinho, com 24 anos de idade. E Tales ficou encarregado por Mario Sergio de supervisionar aquela área.

Na convivência, nos demos muito bem. Uma parte, é verdade, foi por causa do nome - não havia como ele me ignorar. "Se não mudar de nome, muda de comportamento", brincava ele. Guzzo dizia que éramos homônimos homófonos, e que eu tinha um "H" a mais que ele. "Mas é uma letra muda", acrescentava. Tales ria. Era autoconfiante demais para ser ciumento.

Eu o ajudei, com o que sabia de economia, que não era a sua praia, enquanto ele tomava aulas às sextas-feiras com Delfim Netto. E nós nos dávamos bem. Eu gostava dele por algumas boas razões. Não tinha problema algum de dizer que não sabia algo. Era duro, mas justo. Reconhecia o trabalho alheio. E fazia bem o que eu admirava: antes de mais nada, era um fechador.

No jargão do jornalismo, o fechador é aquele sujeito que transforma todo o conteúdo desorganizadamente recebido de repórteres e fotógrafos e o transforma em algo publicável. Tales era, mias que fechador, um grande editor. Quando fui promovido para Brasil, abandonada numa madrugada estafante por Mario Rosa, que eu fechei no lugar dele em regime de emergência, eu o ajudei a formar quadros para me substituir, indicando dois jornalistas que ele passou a tratar com carinho especial, Antenor Nascimento, que veio da Istoé, e Ricardo Galuppo, cujo texto eu apreciava, quando me enviava relatórios da sucursal de Belo Horizonte.

Tales foi conversar com Mario Sergio. Tinha o projeto de escrever reportagens de fundo sobre personagens da economia, e como eu disse que queria ser apenas repórter, sem o ônus da edição, que havia me deixado alquebrado anos antes, achava que eu me encaixaria naquilo. Ou criou aquela função apenas para me ter de volta - não sei. Mario Sergio concordou, mas exigiu que eu, que tinha cargo de editor executivo na empresa, ficasse três meses recebendo como frila, para burlar algo ilegal pela lei trabalhista - ser contratado como repórter, um cargo menor, com um salário menor. Concordei.

Durante um curto período, fui repórter especial de Veja. Porém, certo dia, ao entrar na sala de Mario Sergio, encontrei-o com Tales, ambos de semblante carregado. Ali, Mario me comunicou que estava de saída. E que Roberto cogitava colocar no seu lugar o jornalista Paulo Nogueira, que conhecíamos da própria Veja.

Havia uma resistência muito grande ao nome de Nogueira dentro da redação. No livro, Maranhão diz que outros nomes foram consultados, como Roberto Pompeu de Toledo, mas para Tales, que havia trabalhado com Nogueira na Vejinha São Paulo, onde tinha sido seu chefe, aquela era a grande preocupação.

A reação da redação ao nome de Nogueira foi das piores que se pode imaginar. Paulo Moreira, então redator-chefe, juntou-se ao coro dos descontentes. Os editores execiutivos da revista se opunham. Não posso dizer como foi a conversa com Civita, mas estou certo de que o nome de Nogueira, indicado por Guzzo, não vingou porque toda a cúpula da redação de Veja se declarou praticamente demissionária.

Esse é um dos pontos sobre essa delicada passagem na biografia de Roberto em que Maranhão andou sobre brasas. Ele afirma no livro que a preocupação de Roberto era com a chegada de Época, a revista semanal anunciada pela editora Globo para ser sua principal concorrente. Porém, acredito que Roberto queria também retomar o controle da redação. Mario Sergio, um homem brilhante, era também temperamental. Com ele, talvez Roberto tivesse mais dificuldade de impor suas ideias na revista. E mudá-la, para enfrentar a possível concorrência. Ele precisava de um diretor de redação politicamente mais fraco, intelectualmente menos complicado e capaz de manter a sintonia com a vontade do leitor, mais do que com suas próprias ideias.

Não sei como foi a conversa de Tales e Roberto, mas estou certo de que o bloqueio da redação foi decisivo. Como Tales me confidenciou mais tarde, Roberto concordou em colocá-lo no lugar de Mario Sérgio. Porém, lhe deu um período fixo - três anos - para mostrar resultados. Talvez porque ele mesmo se achava na falta de ideias. Se a "redação" acreditava que podia resolver a coisa sozinha, teria sua oportunidade.

Entrei na sala do Tales para a nossa conversa diária e o encontrei mais preocupado do que nunca.

- Mas você não conseguiu o cargo que queria?

- Sim - disse ele -, mas o problema começa agora: o que fazer?

- Mas qual é dificuldade?

- A dificuldade é que a gente não pode falar mal do Fernando Henrique. E sabemos que revista só cresce fazendo denúncia.

Entendi por aí que aquilo tinha sido parte da conversa de Tales com Roberto: uma condição. Naquela fase, o Brasil entrava num período florescente. O controle da inflação, depois de anos a fio de pesadelo puro, era visto como a salvação nacional. Fernando Henrique tinha sido eleito por conta do plano de estabilização, o Real, e era popular. Todo mundo, inclusive Roberto, o considerava intocável. Ninguém queria desetabilizar o governo num momento em que o país rumava afinal para a tranquilidade.

Foi aí que eu disse a frase que está no livro. Tendo voltado para revista fazia pouco tempo, numa publicação sem política e de muito sucesso, eu tinha uma outra visão sobre o público leitor, que apenas começava a viajar com cartão de crédito internacional e a comprar carros importados. Afirmei a Tales que a política já não era importante. Que tudo ali estava meio resolvido e as pessoas estavam mais interessadas em si mesmas, como se via pelo sucesso dos livros de autoajuda, naquele tempo vendidos aos milhões de exemplares. E sugeri que o crescimento da revista poderia ser por esse caminho.

Passaram-se dois dias. Daquela vez, foi Tales que mandou me chamar, pela secretária.

- Ok, autoajuda - disse ele. - Você deu a ideia, você que vai fazer.

Assim eu, que tinha voltado a Veja apenas para escrever minhas reportagens, acabei assumindo uma editoria que não tinha nome, uma espécie de Geral II, criada por Tales para executar ideias de crescimento da revista. Uma dessas ideias, que era dele mesmo, além de fazer textos mais curtos para aumentar o índice de leitura, era fazer uma cobertura mais ampla do Brasil. Subiu o número de susursais de nove para 13. Não sei se chegou a discutir com Roberto a ideia de fechar a sucursal de Brasília, como está no livro. Para mim, como aconteceu de fato, dizia que queria aumentar.

Abrimos sucursais em cidades como Belém e Fortaleza. Ao mesmo tempo, passei a escrever reportagens sobre qualquer tipo de assunto que achava ser do interesse pessoal do leitor na época. Fizemos uma capa sobre o novo parque africano na Disney. Outra sobre "O caos aéreo", uma confusão nos aeroportos brasileiros. Com minha equipe, escrevi uma reportagem de ciências sobre o cérebro ("O poder da mente") que entrou para a lista das 30 mais vendidas da história da revista - à frente dela estavam apenas reportagens com denúncias de corrupção e desastres aéreos.

Naquela época, quem dirigia a seção de geral em Veja era Laura Capriglione, brilhante jornalista, que fazia um grande trabalho. Foi sob sua batuta que a repórter de Veja, cujo nome Maranhão não menciona no livro, entrou no presídio disfarçada e obteve do chamado Maníaco do Parque a célebre frase: "Fui eu".

É verdade, como diz Maranhão, que demorou a sair a primeira capa sobre Fernando Henrique. Porém, essa não foi bem a primeira capa sobre política na gestão de Tales, como ele afirma. Foi dele mesmo, na habitual reunião de pauta das segundas-feiras, depois de consultar todos os editores, quem mandou fazer uma reportagem sobre Sérgio Naya, deputado federal, dono da construtora cujo prédio acabara de desabar.

Não era assunto da minha área, mas Tales mandou me chamar na sexta-feira e me fez reunir todos os relatórios e escrever a matéria. Na minhas mãos, o que seria apenas a notícia de um acidente virou também uma reportagem política, ou mais: falava sobre o descaso da elite brasileira, representada por um empresário que também era deputado, símbolo de qual era o maior problema nacional. Não tínhamos falado mal de Fernando Henrique, mas achávamos um jeito de alavancar as vendas com escândalos políticos. E defender a classe média consumidora, nosso público leitor.

Aos poucos, meu relacionamento com Tales se desgastou. Eu tinha aceitado um salário menor por menos trabalho e acabava trucidado por uma montanha de tarefas. Reclamei - e ele se aborreceu. Para se livrar de mim, ou me colocar de castigo, fez com que eu ficasse subordinado ao editor-executivo Laurentino Gomes, deixando de responder a ele diretamente. Foi um bom período de convivência com Laurentino, de quem me tornei amigo e admirador. Mas eu não estava satisfeito. Aos poucos, Tales foi tirando as coisas que me dera: as sucursais, que passaram a ser geridas pela jornalista Flavia Varella, e mesmo as seções da revista. E não falou mais de salário.

Talvez até fosse o que eu queria, mas ele me provocava. Numa das reuniões de pauta, diante de todos os editores, Tales, que era conhecido por gostar de causar embaraços aos subordinados na frente dos outros, declarou, na minha vez de dar sugestões de pauta: "Agora vamos ouvir o Guaracy, que veio me dizer o que fazer no meu emprego". Como se ele mesmo não tivesse me perguntado, nme se beneficiado daquilo. Aborrecido, saí para um emprego onde iria ganhar o dobro. Entrei na sala dele e comuniquei minha demissão.

Levou algum tempo para falarmos novamente. Com o tempo o aborrecimento passou e voltamos a conversar. Eu o encontrei num hotel em Campos do Jordão, num seminário de intelectuais para discutir o futuro do Brasil. Jantamos, rimos, contamos velhas histórias. Ele já deixara a direção de Veja, mas mantinha uma coluna na revista, assim como em Exame. Estava mais leve, assim como eu. No ambiente de pressão em que se vivia em Veja, ninguém era normal. Eu entendia isso e o perdoei. E foi muito oportuno, porque eu ficaria muito mal sem tê-lo feito, já que Tales faleceu precocemente logo depois

Com todas as medidas que eu ajudei a implementar, como toda a redação de Veja, Tales conseguiu obter o resultado esperado por Roberto. A revista Época veio, mas não incomodou - Veja cresceu, em vez de perder leitores. Maranhão não conta no livro quem fez a frase de que o escolhido por Roberto para digirir Veja era "dos Tales, o menor". (Eu desconfio). Mas uma coisa eu sei: pelo que Roberto fez, e também pelo que deixou de fazer e permitiu fazer, era, dos editores, o maior.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Antimemória

Raízes primeiras extremas
De onde nem há memória
O passado dos filósofos orientais
A alquimia genética
O encontro de raças
A combinação de histórias
A formação determinista do que somos
Antes mesmo de ser
Resultante do que trazemos sem saber
Escrito na terra
Na mão lavrada dos ancestrais
Nos amores perdidos
Nos sonhos perdidos
Nas vontades primevas
No acaso certeiro
Daqueles que vieram primeiro
Prepararam terreno
Jogaram a semente
Até que de repente
Brotou o que achamos ser
Nosso livre arbítrio
Fihos do vento
Filhos do tempo
Filhos da coincidência
Filhos de gente
Filhos do amor
Tanto o de mentirinha
Quanto do amor verdadeiro
Do amor enganado e desenganado
Do amor roubado
Do amor proibido
Do amor ganho e perdido
Qualquer amor que gerou amor que gerou amor
E moldou o que somos e seremos
E fez me de mim desbravador
Herdeiro de antigas e violentas paixões
De conquistadores da terra
Homens ardentes
Barqueiros ao leme rumo à Guiné
De velhos guerreiros
De homens sem fé
De mães sagradas
E mulheres profanas
De obscuras ciganas
E valquírias aladas
Filho do amor que veio do amor
Um amor que ainda não entendo qual é (...)

(Minha homenagem neste dia às crianças que ainda temos dentro de nós)


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Como se corrompe um país

Muita gente, que escreve na imprensa ou nas redes sociais, afirma que o desastre econômico a que nos levou o PT é o fim da esquerda no Brasil. Não é. A esquerda, no Brasil, ainda nem começou.

No governo, o PT não foi esquerda, entendida como uma corrente política preocupada com menos pobreza e a justiça social. O PT fez um discurso de esquerda para tomar o poder e o tocou com a direita: fez um governo populista, entendido como o modelo demagógico e eleitoreiro de agradar o povo a qualquer preço para se perpetuar no poder e obter vantagens pessoais. O que sempre termina mal.

Nem mesmo o chamado marxismo populista o PT praticou, ou algo que se aproxima do chavismo, o modelo que seus intelectuais tanto admiram. O PT esteve mais para o velho coronelismo clientelista, que dá o vale no lugar do salário, para manter o trabalhador em regime de escravidão.

Toda política assistencialista cria uma rede de privilégios que onera o Estado e não faz promoção social. Pior: cria uma ilusão. Que, como toda ilusão, um dia desilude os iludidos.

Se você tem uma boa rede pública de ensino básico, como há na Europa e alguns lugares dos Estados Unidos, dá oportunidade igual a todos - lá estudam o rico, o pobre, o classe média. Mesma coisa com a saúde. Uma saúde de qualidade desonera a classe média dos caros planos de saúde, que estão todos aí falindo junto com ela hoje no Brasil. Atende o pobre e mesmo ao rico. Isso é dar oportunidade igual, dar ganho de renda e fazer promoção social.

O PT não fez isso. Preferiu distribuir dinheiro, em vez de melhorar o serviço público e promover o ganho real. Criou uma massa de dependentes do governo, de um lado, e de outro uma massa raivosa de quem s´pagou a conta e não viu contrapartida. Gastou nisso a rodo, a ponto de quebrar o caixa federal e levar junto os governos estaduais, que ameaçam declarar calamidade pública - consequência da calamidade financeira.

Quando você dá dinheiro a alguém porque é pescador, ou preto, ou qualquer coisa assim, cria apenas um privilégio. Fica difícil depois retirar esse privilégio. É a ilusão. O ganho de renda que se obtém com o estímulo ao consumo dessa gente é temporário, porque não houve crescimento da riqueza.

Quando vem a crise, na forma de falência do Estado promotor do crescimento, do desemprego e da inflação, todos perdem. Perdem tanto quanto ganharam artificalmente no passado. E perdem todos: o empresário, a classe média, e sobretudo o mais pobre.

Estamos nesse ponto. O fim da ilusão. E do desespero daqueles que não querem ver estourar sua bolha de sabão, junto com a raiva de quem pagou a conta do sonho de verão.

Toda a lógica da promoção social do PT está equivocada e seguir nisso, ou voltar a isso, é prosseguir no caminho de um desastre que já se mostra de enormes proporções, independentemente de ter sido acompanhado de enorme roubalheira. Não importa neste momento quem vai fazer esse trabalho, se o Temer ou o próprio demônio. Mas tem que ser feito, urgente, ainda que contra toda a turbulência dos apaniguados que o PT fidelizou com o dinheiro, da mesma forma que fez com o Congresso no mensalão. Assim o partido corrompeu mais que o Legislativo. Corrompeu o país.

domingo, 11 de setembro de 2016

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

Em 2003, depois de um período de trabalho que faria de qualquer um a pior pessoa do mundo, eu estava sentado diante da mesa do urologista Eric Wroclavski, que anunciou assim a descoberta casual de um tumor na minha bexiga, com um sorriso no rosto:

- Você teve sorte.

Sorte? Eu, com 36 anos, tinha um tumor. Sorte?

- Teve sorte, porque descbriu por acaso um tumor a tempo de poder se curar - disse ele.

Tumores são assintomáticos, daí que muita gente os descobre quando é tarde demais. Tempo é essencial. Eric marcou a operação para dali alguns dias, apesar de sua agenda estar cheia. "Não vou deixar ele com esse pólipozinho aí", disse a um assistente. Fui operado, fiz o tratamento, duro, e cinco anos de acompanhamento. Foi o mesmo Eric que me deu a notícia da cura. E recomendou que eu ficasse sempre de olho. Para não depender da sorte.

O que eu não sabia é que, na mesma época, Eric tinha descoberto que ele mesmo tinha um tumor. Na próstata. O mal que ele operava. Só que ele, Eric, o tinha descoberto tarde demais. Eric não contou a ninguém. Não contou à família: a mulher, também médica, e os filhos, médicos. Nem mesmo os médicos que trabalhavam em sua equipe sabiam. Conversava com colegas sobre seu caso nos Estados Unidos. E, sendo médico, se automedicava.

Tínhamos, em nossas consultas, longas conversas sobre a  doenaç e a vida. Ele dizia admirar o meu humor - um tanto ácido, é verdade - quando eu falava das fatalidades prosaicas da existência. Eu admirava sua vontade de trabalho. Eric era incansável. Perdi a conta de consultas das quais saí às duas horas da manhã, depois de esperar minha vez, sem reclamar, horas a fio.

Eu o respeitava, porque era um missionário. Atendia o maior número de pacientes que podia, incansavelmente. Horas depois, às seis da manhã, estava já no Einstein, fazendo cirurgia. Parecia numa jornada insana para salvar o maior número de pessoas que pudesse - dar a elas a chance que não tivera para si. Frequentemente tinha os olhos vermelhos: praticamente não dormia. E engordava a olhos vistos. Eu não sabia, mas era por conta dos remédios, com os quais procurava atrasar o progresso inevitável da doença.

Eric me fez viver, e estava morrendo. E só ele sabia disso. Quando um dia não aguentou mais as dores, e entrou no Einstein, dessa vez não como médico, mas para se internar, fiquei estarrecido. Todas as nossas conversas de repente mudaram de sentido. A começar pela frase: "Você teve sorte". Sim, entendi que tivera sorte, a sorte que lhe faltara.

Percebi que as muitas perguntas que ele me fazia não eram somente por minha causa, para saber como eu lidara com a doença. Eram perguntas do interesse dele mesmo, Eric.

Escrevi um romance em que coloquei a história do tratamento ficcionalmente. Em Campo de Estrelas, Eric aparece com o nome de Roger (na verdade, seu nome do meio). Fui visitá-lo no hospital e levei o livro. Eric estava na cama. De ótimo humor. Dali, ele despachava assuntos da associação dos urologistas, que presidia. Mesmo da cama, comandava tudo: seu tratamento, os enfermeiros, seu consultório.

Li para Eric, ao lado da cama, os trechos do romance em que ele aparecia. Primeiro ele fez uma queixa: "Por que você não colocou meu nome de verdade?". (Mais tarde, eu saberia que esse romance já foi muito lido para pacientes internados em hospitais). E eu também fiz uma queixa.

- Por quê você não me contou que estava doente?

Ele disse então que tinha descoberto a doença tarde demais e não queria viver sob o seu signo: os outros olhando para ele como doente. Queria ter uma vida normal, o mais que pudesse. Perguntei também por que ele, sabendo que tinha pouco tempo, trabalhava tanto, e não tinha usado seu dinheiro para viajar, ficar mais com a família ou fazer outra coisa qualquer. Ele me respondeu com uma pergunta.

- Se você soubesse que tem pouco tempo de vida, faria o quê?

Não precisei pensar muito.

- Acho que continuaria escrevendo. O mais que pudesse.

Ele falou, mas eu já sabia o que iria dizer.

- Então. Fiz o máximo o que sempre quis fazer.

Fui embora pesaroso. Foi a última vez em que o vi. Ao me despedir, eu o agradeci. E disse, apontando o livro, com um pouco de raiva:

- Vocês médicos não sabem nada. Eu sou o único que dá a vida eterna.

Eric morreu em 2009 e sua presença ainda não está só nos livros, mas em todas as pessoas que ajudou, seus familiares, amigos e em mim, que ainda estou por aqui. Com frequência penso nele e confiro se estou usando bem o tempo que me resta. É doloroso perder um grande homem e, posso dizer, um inesperado amigo. Acho que devo ainda escrever uma continuação de Campo de Estrelas e contar o resto da história. Afinal, é o que eu faço e farei, como ele, até não poder mais.

E você?  O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

O saldo da festa é a saudade do futuro

Como o palhaço de circo, o Brasil lava a cara depois do espetáculo

Medalhista olímpico, Stefan Henze, de 35 anos, técnico de canoagem na delegação alemã, morreu durante as Olimpíadas do Rio de Janeiro dentro de um táxi que bateu em um poste. O taxista fugiu e, uma semana depois, ainda continua desaparecido. Culpa do Rio de Janeiro? Mero acidente? Destino?

Não importa. A Olimpíada brasileira teve uma porção de notas desagradáveis: o superfaturamento das obras, a não concretização de várias metas olímpicas, em especial o saneamento da água, que breve voltará a ficar como antes, a finalização das obras de infra-estrutura, a mudança no quadro da segurança pública.

Para complicar, o país se encontra na mais grave crise econômica desde os idos da falida dittadura militar, o que transmitiu ao mundo a imagem de um país na miséria, gastando o dinheiro que não tem para receber os ricos na sua casa.

Porém, não importa. O espetáculo foi bonito: nas festas de abertura e encerramento, nos momentos esportivos que passaram para a história. O fulgurante fim de carreira de dois dos maiores, se não os maiores, astros do esporte olímpico, recordistas em desempenho e em premiações: Michael Phelps e Usain Bolt. O brilho de uma estrela da ginástica,com quatro medalhas de ouro: Simone Biles. O primeiro ouro olímpico do futebol brasileiro, levantado do descrédito da própria Nação. E o esforço individual de tanta gente com histórias cativantes e inspiradoras, na maior confraternização entre Nações da Terra.

O saldo da festa não é a saudade destas duas semanas, e sim a saudade do futuro: aquilo que poderíamos ser e realizar, se tivéssemos feito as coisas direito, mas não seremos ou fafemos. Não nas Olimpíadas, e sim neste país. Está provado que o brasileiro é capaz de grandes realizações, mas só apresenta sua melhor face quando exposto aos olhos do mundo, para agradar o estrangeiro, mostrar uma cara que não tem. Com a saída dos visitantes, voltamos a ser apenas nós mesmos, como o palhaço que lava a cara depois do espetáculo.

Dentro de casa, olhando no espelho, o Brasil é aquele outro, o do motorista que foge do acidente de trânsito, do dirigente que superfatura a obra, do torcedor que vaia o adversário na entrega de medalha, como aconteceu com o francês Lavillanie, prata no salto com vara.

Um país que não vai adiante, atolado na corrupção cotidiana, cujos tentáculos formam uma malha paralisante, que perpetua a roubalheira, a inércia e a desesperança, inutilizando o trabalho de todos aqueles que procuram fazer algo construtivo.

Sim, o Brasil é bom  de festa, com o samba, suas mulatas, a simpatia esquizofrênica de seu povo, que é tão fácil com o visitante, tão duro consigo mesmo, e tão leniente com nossos descalabros. O Brasil é bom de festa e ruim de vida, que começa dura novamente, nesta segunda-feira de cinzas.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

A olimpíada dos selvagens

Em A Conquista do Brasil, está contada uma história nada edificante sobre a origem dos brasileiros. Ali se mostra, por exemplo, como os tupinambás fundavam sua sociedade na rivalidade entre as tribos, faziam da guerra um sistema de vida e cultivavam a raiva vingativa até as raias do absurdo. Desde pequenos, os curumins eram ensinados a ter raiva do "inimigo" e a não perdoar ou poupar ninguém. Para demonstrar seus estado de espírito em relação a qualquer oponente, matavam a dentadas os piolhos que catavam na cabeça.

Com o passar dos séculos, e não foram tantos assim, ocultamos ou esquecemos essas origens, sem enxergar o que há dessa herança dentro de nós: a sociedade brasileira. Uma boa demonstração da nossa índole raivosa e selvagem está sendo dada na Olimpíada, um congraçamento entre os povos, que coloca acima de tudo a igualdade, a esportividade e o fair play. Mas nada disso influencia a torcida brasileira, que vem chocando os povos ditos civilizados.

Que o diga o francês Renaud Lavillenie, que tem a vilania até no nome, mas não podia ter sido apupado na disputa do salto com vara, como foi. Além das vaias durante a competição, foi vaiado no pódio, ao receber a medalha de prata. Num momento que deveria ser de glória, e de valorização e respeito a um adversário, o atleta chorou. De tristeza. O brasileiro Thiago Braz, medalha de ouro, tentou consertar, pedindo aplausos à plateia.

O comportamento da arquibancada, que invariavelmente se manifesta nos jogos como está acostumada em jogos de futebol, onde nunca prima o fair play e o respeito ao adversário, acabou tirando um pouco do brilho da extraordinária vitória de Braz. E demonstra qual é o principal problema brasileiro, fonte de todas as nossas crises, políticas, econômicas e sociais: a falta de educação.

Quem está nos estádios olímpicos não é a massa ignara dos grotões. É gente que pode pagar 900 reais por um ingresso para cada membro da família. É a elite brasileira, que em matéria de civilidade se compara ainda aos seus ancestrais de cocar e bodoque nos lábios.

Os brasileiros resolveram participar dos jogos como um cão feroz, presente em todas as disputas, mesmo as que não envolvem a camisa amarela. No atletismo, o astro Usain Bolt, preferido pelo público, manifestou sua estranheza quando a plateia apupou seu maior rival, o americano Justin Gatlin. "Nunca vi nada parecido", disse ele. Antes de correr, Bolt se acostumou a colocar um dedo nos lábios, mandando a torcida que o adotou calar a boca.

Só isso bastaria para passarmos vergonha, ainda mais vindo o gesto de um homem que não tem uma origem menos humilde que a do nosso próprio povo. A histeria brasileira, porém, é imune a lições de moral. Incomodou até mesmo os atletas da natação. Michael Phelps declarou que nunca ouviu tanto barulho na vida - mesmo numa disputa dentro da água.

Em qualquer esporte, o brasileiro põe para fora o velho índio que mora dentro dele. Não respeita o esforço dos competidores, quaisquer que sejam. Idolatra os vencedores, e condena os perdedores à execração, como se não tivessem valor e fossem zeros à esquerda.

O brasileiro só quer e respeita a vitória. Sua pressão, em vez de útil, se torna contraproducente; coloca uma carga absurda sobre a maioria dos atletas brasileiros. Além do desafio natural das provas, eles têm que lidar ainda com o humor de um país que não perdoa, tantos os inimigos quanto a derrota.

Estaria errado, mesmo que funcionasse. O agravante, porém, é que nem funciona. Se dependesse do furor da torcida, o Brasil é que teria goleado a Alemanha na Copa do Mundo, há dois anos, por 7 a 1.  Mas não foi o que aconteceu. Derrotado fragorosamente dentro e fora de campo, o brasileiro, na sua brutal ignorância coletiva, mostra nos Jogos Olímpicos que não entendeu nada. Nem mesmo do que se trata no evento que está patrocinando.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

O espetáculo da loucura e o esgotamento do capitalismo

Atiradores percorrem as ruas de Munique, matam gente dentro de um shopping, a cidade fecha, escondida atrás das portas. Um jovem de 17 anos invade um trem em Wurzburg e ataca os passageiros com um machado. Quatro pessoas ficam feridas e o atacante, que teria jurado lealdade ao grupo terrorista Estado Islâmico, é morto pela polícia.

Um homem aluga um caminhão para matar quase uma centena de pessoas na orla de Nice. No Brasil, dez pessoas foram presas depois de trocar mensagens digitais em favor do Estado Islâmico e sugerindo à Polícia estar preparando um atentado na Olimpíada. Este ano, atentados em Bruxelas e Istambul também deixaram mortos em nome do Terror.

O que está acontecendo? Pelo que se sabe, o Estado Islâmico não tem uma rede Internacional. Seus "agentes" seriam recrutados pela Internet. Isso não é recrutamento.

O que está acontecendo é um sintoma da crise da sociedade contemporânea. Num mundo em crise, sem oportunidades, especialmente os jovens perdem o sentido de viver. A espetacularização da midia digital lhes dá uma oportunidade. Dá sentido pelo menos à sua morte. O El representa hoje o protesto contra o sistema. Poderia ser qualquer outra coisa.

Gente que, sob qualquer pretexto, vai para rua para matar ou morrer está no limite da loucura. A ideia de pertencer a um grupo suicida lhes dá força. E saber que a ação lhes dará notoriedade, dá coragem.

Isso só acontece num mundo em que a vida não vale nada. Os valores que são sentido à existência - o amor, o trabalho, a conquista, a recompensa, o conforto familiar, os sonhos de felicidade - não existem ou não têm importância. Hoje qualquer um aparece na mídia mas entra apenas na bacia das almas que é o mundo digital. 

O homem é insignificante.

Pode parecer estranho, mas a maneira de combater o terror, além de abater na rua os loucos que saíram do armário, é atacar as raízes dessa crise. Um mundo com oportunidades de emprego, de crescimento, e relações interpessoais melhores, numa era de individualização extrema. O problema não é o El, o Islamismo, ou o Oriente. É um certo esgotamento do capitalismo, agora que entra na sua fase digital, pedindo um novo modelo para viabilizar novamente o futuro.