segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Estrela permanente

Meu amor, quando eu for tão somente
Um suspiro do que fui, minha alegria
Subirá à primeira estrela do poente
Só para lembrar nesse mesmo dia

Que desde a noite em que a gente
Sem entender ainda o que queria
Num encontro assim tão de repente
Plantou uma semente e não sabia

Sob uma aparente e falsa calmaria
Germinou o amor na alma descontente
Que esperava e também amadurecia

E sei hoje na saudade mais pungente
Que você é minha estrela permanente
É você que desde sempre eu já queria

("Estrela permanente", poema inédito de um livro que eu ainda hei de fazer)


quarta-feira, 23 de setembro de 2015

A sabedoria diante do inevitável

Procuro um amigo, proponho tomarmos uma cerveja.

- Podemos nos ver, mas não bebo mais.

Estranhei.

- Mas foi recomendação médica ou decisão própria?

- Decisão própria.

Tenho outros amigos que resolveram levar vida espartana, todos no intuito de viver mais. Uns cortaram o fumo (o mais comum). Outros praticam esportes como loucos. Acreditam que cada vez que fazem algo em 1 segundo a menos estão ficando mais jovens. Desconfio que, depois de certa idade, forçar demais o corpo é que prejudica a saúde. Mas eles contribuem para as hordas que enchem as academias.

Eu não vou a academia. Por temperamento, detesto movimentos repetitivos. E não acho saudável. Fazer ginástica em esteira ou aparelhos de musculação, para mim, é como mascar chiclete - você mastiga e mastiga, mas não está se alimentando. Academia não pode ser vida saudável.

O que eu faço? Quem escreve leva uma vida muito sedentária; por isso, tento o mais possível manter a atividade física (caminhar, cuidar do sítio, fazer trabalhos manuais). Pratico algum esporte (bicicleta, piscina, futebol com o filho), mas como diversão. Acima de tudo, porém, acho que a sabedoria da saúde está em aceitar o envelhecimento.

O avanço da medicina colabora para que vivamos mais. Porém, o homem contemporâneo também rejeita cada vez mais a ideia do envelhecimento e da aproximação da morte. Com medo de morrer, vai se privando das coisas boas da vida. E vai morrendo antes da morte.

O homem difere dos animais porque bebe, fuma, se comunica por símbolos e mantém outros comportamentos que definem a civilização. Só não deixa de ser um animal que morre. Quem tem religião pode aceitar esse fato com mais tranquilidade. Mas não há Deus nas academias. De alguma forma, todos temos de aceitar e lidar com o inevitável, não lutar contra ele. É o caminho da verdadeira sabedoria. E da saúde.

Tenho um amigo, médico, que está acostumado a lidar com doenças graves e a perspectiva da morte, com que lida diariamente no trabalho. Ele tem planejado o resto de sua vida útil, onde cabe desfrutar seus prazeres prediletos. Diz, por exemplo que depois dos 70 anos voltará a fumar. Por que, daí em diante, esse tipo de restrição não faz mais diferença.

Como médico, ele não pode recomendar a pacientes e familiares certas coisas que decidiu para si mesmo. Afirma que, quando ficar seriamente doente, prefere ficar em algum lugar aprazível, onde não exista atendimento médico, ou onde o atendimento seja tão remoto que não haja tempo de hospitalização. Acredita que o pior pesadelo de uma pessoa é justamente não morrer - ficar num estado crítico, sustentada por caros recursos da medicina, que prolongam a vida, mas em condições inumanas ou desumanas. Assim como eu, entende que precisamos, um dia, acabar. Esse limite é até onde temos qualidade de vida.

Eu lembro de minha mãe no leito do hospital, às vésperas da morte, quando como último desejo pediu um sorvete, e com o organismo destroçado pela doença não conseguiu sequer lambê-lo. Ela me disse, meu filho, não se prive de nada na vida, não vale a pena. E me lembrou de Borges, que escreveu da velhice: se pudesse voltar no tempo, tomaria mais sorvete. E cometeria mais erros.

O caminho da sabedoria não é fácil. Estou certo, porém, que ele está muito mais dentro da nossa cabeça que no próprio corpo que agitamos nas esteiras eletrônicas. A paz de espírito é um fator fundamental para o equilíbrio do organismo. Às vezes, a angústia e a ansiedade modernas se manifestam nesssa luta insana pela fonte da eterna juventude. Isso é doença. É preciso envelhecer com tranquilidade e dignidade. Os que aceitam sua idade, estou certo, vivem mais.

Boas más notícias

André, 8 anos, saindo da escola.
- Pai, tenho uma boa e uma má notícia. Qual você quer primeiro?
- A má notícia.
Ele pensa um pouco e diz.
- Não, tem de ser a boa notícia primeiro. Se não, a má notícia não fica tão boa.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Meninos, homens e heróis

Quando menino, todo homem sonha ser alguém, ou ter as coisas que viu alguém ter. No meu caso, esse modelo um tanto utópico foi um personagem de ficção, Peter Miller, protagonista de O Dossiê Odessa, um clássico da literatura de suspense, escrito por Frederick Forsyth.

É difícil explicar a admiração de um garoto por um modelo masculino, mas sempre há pistas. Miller só fazia o que gostava (era repórter freelance), ganhava dinheiro, vivia em aventuras (especialmente depois de decidir investigar um dossiê nazista). Tinha uma linda namorada, go-go girl de uma boate em Hamburgo que, por trás da exuberância exibida em sua profissão, escondia uma personalidade tímida e a vocação de mãe de família. Queria casar-se com ele incondicionalmente e ter um monte de crianças rosadas.

 Eu achava aquilo o máximo.

É difícil saber quanto do menino fica no homem. O fato, porém, é que todo homem desde cedo constrói uma imagem idealizada de si mesmo, que se pode identificar por meio desses ícones masculinos. Desde crianças, queremos ser fortes como o Super-Homem, ágeis como o Homem-Aranha, implacáveis como Batman, indomáveis e destemidos como Tarzan.

Quando ficamos mais velhos e começamos a entender melhor as coisas, queremos tomar martinis, usar summer jackets e levar as mulheres para a cama com a elegância fatal de James Bond, tendo ao mesmo tempo a fortuna de Goldfinger. Em geral, o modelo de homem perfeito, o verdadeiro cavalheiro, mistura coragem, estilo, elegância. E um pouco de picardia.


O filme, com Jon Voight
O importante no ícone masculino não é o carro, a roupa, a casa, as mulheres maravilhosas e tantas outras coisas desejáveis, mas a atitude. Ela mostra o que somos. Essa atitude, de quem sabe como agir nas horas certas, e conhece as coisas com que lida, faz o homem ter classe, transformar-se em alguém superior. Todo homem que se preza tem de se sentir o herói de sua própria biografia.

Claro, se pudéssemos juntar todos nossos heróis preferidos num personagem num só, teríamos então o homem corajoso, elegante, charmoso, forte, independente, capaz, culto, sagaz, sábio, talvez um tanto cínico e, não obstante, bem-sucedido. Claro, o homem perfeito não existe, mas é a tarefa da vida fazer de nós mesmos o melhor possível. Não apenas para os outros – as mulheres, os profissionais que encontramos no trabalho, o vizinho. Sobretudo, fazemos isso por nós mesmos.

Um homem com atitude se manifesta também nos pequenos detalhes. Eles fazem muita diferença. O homem com atitude sabe como preparar um dry martini, vestir um summer jacket e até conquistar uma mulher com elegância.

Porém, isso não se faz artificialmente nem como cópia dos antigos modelos masculinos. A elegância vem de dentro para fora, e não de fora para dentro. Essa é maneira mais rápida de nos aproximarmos do homem ideal - talvez ainda um tanto imperfeito, mas ao menos muito próximo do que sonhamos ser.

Faço aqui uma lista de heróis que sempre achei admiráveis desde a infância. E a razão. Talvez você se identifique com algum. Em que você se espelhou quando criança? Tem algo disso hoje na sua vida? Não se pode perder os modelos e velhos sonhos.

Batman, o dos quadrinhos, solitário e implacável, na versão
em que é também mais detetive. Nada feito no cinema se compara

O detetive Deckard, interpretado por Harrison Ford,
em Blade Runner: herói existencialista onde o figurino
implacável não esconde o coração

O corajoso e sardônico James T. Kirk, interpretado por William
Shatner, em Jornada nas Estrelas: quem queria ser Spock?

Christopher George como Ben Richards, em O Imortal,
série esquecida de 1970: um herói solitário e sempre em fuga

Fess Parker como Daniel Boone: um homem de caráter
com uma espingarda. Eu sempre quis ter um 
chapéu desses, com rabo. E uma espingarda 
Guy Williams, o melhor Zorro, na série da Disney:
bravo e ao mesmo tempo elegante, galante e espirituoso

Homem aranha, nos quadrinhos, e no desenho mais clássico,
de Steve Ditko: herói  problemático, sem perder o bom espírito

O Homem de Ferro de Robert Downey Jr é melhor que
o dos quadrinhos: playboy, milionário, gênio e herói,
sem deixar de rir de si mesmo

O personagem principal de O Homem de Virgínia era o de James Drury (à esq.),
mas eu gostava mais de Doug Mclure (ao centro), tão valente quanto, e mais simpático 
Napoleon Solo (à dir.) e Ilya Koliac, agentes da UNCLE:
Koliac era mais frio, porém Solo tinha mais charme

Nenhum outro sujeito será 007 como Sean Connery. Um ícone do homem
diante das mulheres,  do champanhe e dos bandidos

Mannix era um grande detetive, inteligente e de ação. Alguém lembra?

National Kid é meu herói mais antigo, do tempo em que as crianças
achavam que um adulto devia salvá-las. Pobres adultos
de hoje, que não salvam nem a si mesmos.

Columbo era feio, tímido, esquisito e andava com essa capa de
chuva surrada, mesmo quando não chovia. Ninguém dava 
nada por ele - e era aí que pegava o criminoso. Genial.

Tarzan - o dos livros - sempre foi meu herói favorito. Difícil transpô-lo
para a tela como é na literatura, ao mesmo tempo nobre e selvagem.
Escolhi Ron Ellis, que fez uma série nos anos 70, um
Tarzan menos musculoso, que passava gel no cabelo, mas era inteligente

William Smith como Joe Riley, em Laredo: simpático,
durão e galã, a montanha de músculos era detalhe


David Carradine, como Kung Fu: eu adorava quando,
na maior calma,  ele dava uma boa lição naqueles americanos 
presunçosos e violentos. Mas só ao rever a série, já adulto, entendi o
quanto ela era boa - e cheia de ensinamentos

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Levy contra a Hidra de Lerna

A presidente Dilma Roussef saiu da sala de reuniões com o pacote anti-crise negociado com seu ministro econômico. Funcionário de carreira do Bradesco, o ministro Levy não apenas representa o sistema financeiro: ele é o sistema financeiro. É como se o Bradesco estivesse intervindo na economia. Os banqueiros não podem deixar que alguém acabe com o país onde ganham o seu dinheiro.

A missão de Levy no governo é desconstruir o que o PT fez nos últimos anos, para recolocar a economia nos trilhos. Começa com a tarefa gigantesca de eliminar o déficit de mais de 30 bilhões de reais. Para isso, ficou resolvido um grande corte nos gastos sociais, justamente o trunfo eleitoral do PT nos últimos anos. A isso soma-se o congelamento dos aumentos no funcionalismo público por sete meses. O corte de uma dezena de ministérios. E uma tentativa de arrumar o resto do dinheiro com a reintrodução de impostos como a CPMF, o que depende de aprovação do Legislativo.
Levy com Dilma: esforço para andar para trás

Na tentativa de salvar seu governo, Dilma fez a única coisa que podia fazer: cedendo ao ministro e quem ele representa, começou a remar contra a corrente do PT. Contraria seu próprio partido, mas faz a escolha de estar ao lado da maioria, para poder governar. Antes refém do PT, ela agora é refém do sistema financeiro e do PMDB, que manobra a maioria no Congresso. Dilma precisa disso para aprovar o pacote. E precisa do pacote para sair da inação e recuperar alguma governabilidade.

A presidente ficou entre a cruz e a caldeirinha. Com o programa do PT, que está levando à recessão brutal, ao desemprego e à inflação, tinha contra ela as grandes manifestações de massa e um princípio de debandada nas fileiras ministeriais e na base aliada no Congresso. Agora terá a resistência de seu próprio partido e as promessas de guerra do funcionalismo público federal, que ameaça uma onda de greves. Transformada em uma máquina petista, a criatura agora se voltará contra o criador.

Num cenário de recessão, é difícil imaginar quem receberá aumento de salário nos próximos sete meses. Todos na iniciativa privada sabem que já será feliz quem mantiver o seu emprego. A máquina pantagruélica que o PT alimentou, porém, é cega e surda. Infelizmente para Dilma, não é também muda.

A demagógica máquina burocrática do PT no governo cresceu com ramificações em estatais corrompidas, se espalhou pelos estamentos da administração pública até ONGs, autodenominadas "movimentos sociais", que são apenas organizações subsidiadas com dinheiro público para formar um pelotão pró-governo. Com isso, tornou-se uma verdadeira hidra de lerna. O ministro Levy terá de ser um Hércules para matar as seis cabeças e enterrar a última - que, segundo o mito grego, é imortal.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Um governo sem solução num país sem sabedoria

Brindes de champanhe, risos e alvoroço na quarta-feira passada, num almoço promovido por uma importadora num restaurante chique de São Paulo. Um breve interlúdio com a alegria, um parênteses na preocupação geral, um lembrete de como a vida poderia ser se não cometéssemos, nós brasileiros, tantos e enormes erros.

Os sinais de mais uma das pequenas mortes que este país já sofreu em sua curta existência: o governo anuncia o aumento da taxação do vinho para o fim do ano, mais uma das medidas inócuas para resolver a crise que se alarga, com demissões em massa e o desânimo que se espalha cancerigenamente dentro do próprio governo. Os ministros já se juntam à população desanimada com a perspectiva de uma gestão sem soluções, para si mesma e o país. A começar pelo homem que deveria propor saídas, o Levy, da economia, que nem queria o cargo, e dá todos os sinais de estar louco para ir embora.

Dilma: isolamento e falta de perspectivas
Aumentar impostos é uma medida inócua, porque no ambiente de crise aumentar os preços significa diminuir ainda mais as vendas e, por conseguinte, a arrecadação. O governo, que gastou descontroladamente nos últimos anos, e desperdiçou fortunas numa espiral de corrupção, não sabe como  tirar o país da queda livre. A presidente Dilma vai ficando isolada, não apenas do país, como na própria esplanada dos ministérios.

O governo Dilma vai ficando cada vez mais parecido com o de José Sarney, que já não mandava nada no fim de mandato, e teve seus últimos meses no cargo como uma via crucis, para ele e todo o país, à espera da troca de governo e de alguma mágica que restabelecesse a autoridade presidencial, colocasse a economia nos eixos e pusesse o Brasil novamente em direção a um futuro mais promissor. Sarney em fim de feira assinava decretos e decretos ordenando as mesmas coisas sem ser levado em consideração.

Na crise total, em que a inflação beirou 80% ao mês, Sarney deixou o cargo a um messias de direita egresso das urnas, chamado Fernando Collor de Mello, que também não soube o que fazer com o poder. Impôs um plano econômico draconiano, enquanto sua gestão mergulhava nos meandros de uma corrupção que parecia gigante naquela época, mas ainda era bolinho comparada ao Mensalão, Petrolão, Lava Jato e Pixuleco, os desmandos todos que estão transparecendo hoje aí à luz do dia.

Collor renunciou, mas não aprendeu a lição, e reentroduzido como senador figura aí novamente nos inquéritos como participante desses desmandos que prosseguem na vida pública brasileira como uma verdadeira maldição. Pior do que a crise conjuntural, a conclusão é de que o Brasil é um país sem sabedoria, à mercê de planos econômicos salvacionistas e artificiais, que sempre nos colocam nessa gangorra: um ciclo de crescimento fantasioso, baseado numa falsa distribuição de renda, a lambança na suposta riqueza, e depois o mergulho no abismo, que nos tira todos os avanços que pareciam ter sido alcançados, nos devolvendo à triste realidade.

Collor: renunciou, voltou e não aprendeu a lição
Aumentar impostos sobre o vinho, ou trazer de volta a CPMF, o imposto sobre transações financeiras, que nasceu para ser aplicado na área de saúde mas só serviu para cobrir o rombo das contas públicas, é apenas mais uma tentativa atrabiliária de remendar o que não tem remendo. O Brasil não terá seus problemas resolvidos sem sacrifício, mas é ilusão achar que sobretaxar os que são mais ricos é o caminho. Oprimir a iniciativa privada, aumentar o custo de vida da classe média consumidora, tirar mais emprego, aumentar a insatisfação geral são as únicas consequências da sobretaxação.

O que o Brasil precisa é de sabedoria. De um plano de quinze anos, que nos coloque num caminho seguro de crescimento sustentável, independentemente de quem esteja no poder. Hoje, esse plano significa primeiro limpar toda a máquina artificial criada pelo PT, seja pelo desaparelhamento do governo federal, inchado pelo perfil estatizante do petismo, seja pelo esvaziamento dos programas sociais que oneram toda a sociedade sem criar, de fato, riqueza - e, agora, são responsáveis diretos pelo rombo das contas públicas, o desemprego e a inflação.

Com esse ajuste, que sem dúvida tem de ser brutal, para nos recolocar pelo menos 12 anos atrás no tempo, o governo abriria novamente espaço à iniciativa privada para cuidar do que realmente pode promover o bem comum do brasileiro: um sistema de saúde eficiente e igualitário, que permita melhor atendimento tanto do mais pobre quanto da classe média, assim como um sistema educacional decente, que valorize o professor, e dê perspectiva da promoção dos trabalhadores a uma renda maior não pelo favor ou atestados de pobreza, e sim pela maior qualificação.

Nós precisamos nos livrar de uma vez por todas da demagogia e de seus arautos, com soluções reais, e não mentiras ilusórias que no final só levam de volta à crise, depois de uma festa a fantasia. Enquanto o governo distraiu o povo com suas moedas, acumulou-se o déficit onde ele precisaria ter agido.

Dilma parece ser a única a não ter percebido o próprio isolamento ou a gravidade da situação. Ou sabe, mas chora quietinha, no escuro, refém de um partido apodrecido, sem capacidade de ação. De uma forma ou outra, ela é mais uma passageira dessa nau no momento sem rumo que chamamos de Brasil. Se ela quiser se salvar, deveria começar a fazer ela mesma essa limpeza. Ter a coragem de ser, no governo, o anti-PT. Teria uma chance, talvez, de voltar a governar.

Precisamos invocar novamente as nossas forças, acreditar que estamos num país viável, capaz de resolver seus problemas com suas próprias virtudes. E, pela via democrática, que está na nossa raiz, criar coletivamente um novo projeto para o Brasil. Um plano honesto e competente, validado pelas urnas, sem demagogia, capaz de dar realmente algo melhor do que temos hoje às gerações futuras.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Tales Alvarenga e o círculo secreto

Ontem, conversando com uma amiga, relembramos Tales Alvarenga, editor de Veja, falecido em 2006. Reproduzo o que escrevi na época, não apenas para relembrá-lo, como para preservar este arquivo, que já andava meio no limbo dos meus alfarrábios virtuais. E também para recordar alguns princípios do jornalismo, que é sempre bom ter presentes.


Nova York, 08 de Fevereiro de 2006


Às vezes eu tenho a sensação de pertencer a um círculo secreto de samurais, que um dia serviram a um certo senhor feudal, mas depois se espalharam pelo mundo - sendo que alguns deles, como eu, se tornaram um tanto renegados. Apesar do tempo e da distância, ainda dividimos os mesmos códigos, usamos as mesmas armas, falamos a mesma linguagem. Uns empregam seus poderes para o bem, como acredito que eu ainda o faça, outros foram atraídos para o mal. Não importa de que lado se esteja, quando um desses ronins tomba a gente fica sabendo e, mesmo longe, como eu aqui em Nova York, ouve aquela voz tonitruante, que vem dos céus e em inglês: "There will be only one..."

Esse foi o brado que me estremeceu ao saber que morreu na sexta-feira passada Tales Alvarenga, diretor de Veja e Exame, um jornalista com quem convivi muitos anos. Tales era um dos guardadores desse código de fraternidade, que de alguma forma implicava um certo espírito de renúncia, para a dedicação integral a um bem indefinível. Ou apenas definível para quem experimentou virar madrugadas trabalhando na revista Veja, sobretudo em épocas passadas, quando esse esforço chegava ao limite físico, o que nos dava um sentido ainda maior de missão.

Esse código de gente abnegada, que trabalhava à custa da saúde e da vida familiar, proibida de buscar os holofotes, incluía jamais aceitar favores, compactuar com governos, dar as costas para a verdade, em nome da defesa do povo brasileiro. E, por mais pretensioso que pareça, acreditávamos ter esse poder (mesmo separados, ainda acreditamos).

Tales pertenceu a esse grupo de justos, que eu vi no seu esplendor, reunido na década de 1980 dentro de Veja, na redação talvez mais brilhante que a revista já teve em todos os tempos, quando o Brasil ainda lutava pela abertura política e econômica, essencial para o progresso. Era uma outra Veja, alinhada com os interesses do leitor, uma publicação em franco crescimento. O diretor de redação era José Roberto Guzzo; o diretor adjunto, Elio Gaspari; a redatora-chefe, Dorrit Arazim; os editores executivos eram Henrique Caban e Tales Alvarenga, então responsável pela Vejinha, que se tornava o segundo maior sucesso comercial da Abril, logo depois da revista-mãe.

Dos editores, todos assumiriam mais tarde postos de comando dentro da revista, na Editora Abril ou fora dela: Antonio Machado de Barros (economia), Paulo Moreira Leite (Brasil), Fernando Pacheco Jordão (internacional), Eurípedes Alcântara (geral), Mario Sergio Conti (variedades), Paulo Nogueira (Vejinha). Dias Lopes faria história na imprensa ao abrir a revista Gula. E havia grandes repórteres em todo o país, que não cabem neste parágrafo.

Eu começava a carreira e aprendi muito com eles todos, satisfeito de ter a oportunidade, após muito "rolar na lama", como se dizia no jargão de Veja, de entrar para a irmandade. E foi pelas mãos desse grupo que me tornei editor de Brasil, a seção mais importante da revista e uma das mais importantes do jornalismo brasileiro, com apenas 24 anos de idade.

De todo aquele grupo, Tales não era o mais brilhante, mas com certeza tinha qualidades incomparáveis - e a tenacidade lhe daria seu momento. Muitos acusaram-no de ter se tornado arrogante depois de assumir o comando de Veja, em 1997, mas só pode dizer isso quem não o conheceu. Ele não era arrogante, exatamente. Apesar de ter estudado filosofia, Tales se caracterizava por um certo desprezo pelos intelectuais, em quem não via nada construtivo, e pelos que se achavam poderosos em geral. Era um partidário do cidadão comum. Essa era sua maior qualidade: um tipo ostensivo, assumido e um tanto desafiador de humildade.

Graças a essa mentalidade, Tales em geral sabia melhor o que interessava o maior número possível de pessoas. O leitor de Veja podia não conhecê-lo, mas Tales conhecia bem o leitor: era gente como ele. Dava-lhe o que queria ler. Estava em posição de defender seus interesses.

Quando a economia e a política se tornaram mais estáveis, deixando de produzir as notícias sensacionais que levantam as vendas nas bancas, e a revista teve que buscar outros caminhos, esse foi o grande trunfo de Tales para uma nova fase de sucesso em Veja, que perdurou muitos anos. Na época, eu recomeçava a trabalhar na revista como repórter especial, respondendo diretamente ao Tales. Discutimos muitas vezes o que fazer. Eu sustentava que naquele tempo o interesse individual se tornara mais importante que as grandes causas coletivas, visto o sucesso dos livros de auto-ajuda. Era nisso que a revista podia investir.

Tales sabia escutar. E, como autor do plano, mandou-me executá-lo. "Está bem, então você vai fazer", ele disse. Criou uma seção sem nome, uma espécie de segunda Geral, chefiada por mim. Aumentou o número de sucursais para doze, de modo a mostrar mais o Brasil para o brasileiro, e colocou-as todas sob o meu comando. Toque típico de Tales, mandou diminuir os textos, cujo tamanho na opinião dele causava cansaço no leitor comum (ironizava sua própria instrução dizendo que a reportagem ideal era o "pirulito", a notícia de uma coluna).

Assim surgiu uma Veja que colocava em sua capa reportagens sobre problemas conjugais, o poder do cérebro e viagens à Disney, mais enxuta, dinâmica e com mais assuntos. Ao mesmo tempo, não deixava de ser a Veja de sempre, que ainda se destacava pela reportagem de denúncia e investigação.

No início de sua gestão como diretor de redação, foi Tales quem ordenou uma capa sobre quem era o deputado Sérgio Naya, símbolo de um Brasil que literalmente matava a classe média sob os escombros dos prédios que construía: a reportagem foi redigida e fechada por mim, com relatórios da reportagem em Brasília e do Rio de Janeiro. Pouco depois, Veja deu uma entrevista exclusiva com o "maníaco do parque", trabalho brilhante e ousado da equipe da editora executiva Laura Capriglione, que infiltrou uma repórter na cadeia e ouviu a confissão do criminoso. Foi também a equipe de Laura que esperou meses a fio para dar no momento exato, como um grande furo de reportagem, uma descoberta da medicina que revolucionaria a vida de muita gente: o Viagra. Tudo isso consolidou um novo patamar de vendas para Veja e a posição de Tales à frente da revista.

Foi a fase culminante de uma carreira longe das luzes, mas hiperativa. Tales participou ativamente da história do Brasil, desde os tempos da ditadura militar, quando se caracterizou como um especialista em política. Porém, mais que um repórter, era um "fechador": aquele sujeito que põe a notícia trazida pelos repórteres no papel e faz a revista sair.

Em geral, o "fechador" tem menos gosto pelo trabalho da rua, mas é mais pensador. Essa era a arte de Tales, no silêncio de sua sala de vidro, escrevendo como um conspirador. Podia parecer arrogante, com seu jeito de levantar o queixo: mesmo sendo baixinho, produzia a sensação de que olhava para você de cima para baixo. Nesse gesto talvez inconsciente, havia também uma atitude perante o mundo.

Descrente da política e nos homens, desconfiava de tudo, especialmente da índole dos governantes, que se achavam em cima, mas para os quais ele também olhava de cima para baixo. Levava seu ceticismo cortante do jornalismo para as coisas comezinhas da vida e as grandes também. A frase que melhor o definia, como agnóstico e um exasperado com os males que se multiplicavam, era essa: "se Deus existe, ele não interfere".

Como Deus se omitia, pensava Tales, cabia aos jornalistas fazer o melhor possível: lutar pela democracia, vencer a pobreza, destruir os larápios e a corrupção. Era uma missão superior, instituição em Veja. Algo que no círculo dos cavaleiros suplantava até mesmo a importância do patrão, como homem de negócios às vezes mais sujeito a contemporizações. Como todos em Veja, Tales fazia essa distinção: o papel do patrão era um, o do jornalista era outro. E ambos sabiam disso.

Em minhas duas passagens por Veja, nas quais acumulei alguns anos de convivência direta com Tales, como subordinado e depois amigo, ele sempre teve comigo um certo ar paternal, talvez por termos o mesmo nome, com a diferença de um H (provocador, Guzzo nos dizia que eu só tinha essa letra a mais que o Tales - e era uma letra muda). Mesmo assim, não me poupava do pior trabalho nem de certas crueldades que reservava aos seus colaboradores quando eles achavam que sua vida andava fácil - ou pretendia destruir a oposição.

Para mim, mesmo sem motivo, dizia: "mude de nome ou de comportamento". Na reunião de pauta de Veja, na minha hora de expor as ideias para a capa da semana, ironizava os conselhos que ele próprio me pedira ao ser promovido à direção, tornando público algo que dividíramos em território particular: "Vamos agora ouvir o Guaracy, que veio me dizer o que fazer no meu emprego". Passava descomposturas sempre depois de convidar uma testemunha, algo que não o ajudou a se tornar mais popular.

Porém, nada disso o desmerece. A vida em Veja era de muita pressão, o que ajuda a explicar certos exageros de comportamento. Tales não se aborreceria por me ver contando essas coisas. Era a favor sempre de mostrar o "outro lado", parte do código samurai, segundo o qual mesmo dos bons não se pode deixar de mostrar o lado ruim, um princípio da credibilidade defendido a qualquer custo. 

Tales era a favor de não esconder nada, nada mesmo, ainda que às vezes isso parecesse cruel. Certa vez, ele me mandou incluir no texto de uma reportagem o fato de um entrevistado ter me recebido em sua casa pelado, para mostrar o corpo coberto de feridas, resultado de obesidade mórbida, de modo a obter a complacência da revista. Foi o que fiz. Além, é claro, de desfiar os negócios escusos que realizava.

Depois que saí de Veja, de modo a ganhar o tempo necessário para escrever meus romances - um projeto pessoal -, encontrei Tales em várias ocasiões. A última delas, em Campos do Jordão, foi num seminário de intelectuais que se propunham dar soluções para o Brasil. Ele circulava por ali anonimamente, assistindo a tudo, atento. Jantamos juntos: comemos, bebemos, rimos, contamos histórias e ele me explicou que estava ali em busca de elementos na sua incansável campanha para desancar os discursos vazios. 

Tinha espaço privilegiado para fazê-lo, na coluna que mantinha nas duas revistas cuja direção acumulava, as mais influentes do país: a própria Veja e Exame. Por trás do eterno ceticismo, acho que alimentava também ainda a esperança de um mundo um pouco melhor, além dos antigos ideais.

Problemas ainda não muito esclarecidos, decorrentes de dificuldades respiratórias, tiraram a vida de Tales Alvarenga, 61 anos, na sexta-feira, dia 3 de fevereiro de 2006. Talvez ele dissesse, sobre a própria morte, que Deus não interferiu - mais uma vez. Deveria tê-lo feito, para benefício dos amigos a quem subtraiu o seu convívio, e do Brasil, que perdeu um sincero, competente e honesto defensor.