sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Marcelo Ariel e a realidade rasgada

O poeta e dramaturgo Marcelo Ariel está na mesa do II Festival de Poesia promovida pelo departamento de Letras da USP, com o tema "poesia contemporânea". Tarde quente de sexta-feira, há uma breve paz entre cartazes da guerra ideológica, pregados nas paredes da honorável escola. Com um chapéu de palha de lavrador e camiseta de Miles Davis, ele fala.

Fala, não; ou não apenas fala. Coloca som de pássaros como sonoplastia, canta, declama. Diz que ele mesmo, Ariel, é o cavalo de Exu e seu objetivo é a destruição, para a substituição da realidade por um "mundo digno". Lê um poema inédito: o "vazio vai iluminar o Brasil". 

Acaba de lançar um livro pelo Círculo de Poemas (A água veio do sol, disse o breu), onde há poesia que poderia ser chamada de "negra", por tratar do tema e promover essa voz. Para ele o negro não é um tema político, é a vida.  "Como ser um negro II" é o poema em que ele escreve como sua própria mãe, até o dia em que nasce, um livro que pretende "não terminar nunca".

A poesia de Ariel, porém, vai além dos temas da diversidade: ela é  ponto de partida para o universal. Não defende um interesse, um gênero,  uma raça: sua poesia é filosófica, humanista, geral. Expulso da escola, ele diz ter se formado na rua, a "universidade desconhecida". Diz representar o "pensamento coral" e fazer parte de um "oceano de vozes contrárias".

Tem o privilégio de pertencer à corrente dos poetas contemporâneos ainda vivos, o que lhe permite estar em todos os lugares, ao mesmo tempo em que, como um poeta sem tribo, ou da tribo de um só, está em lugar nenhum. Ele me confirma algo que digo há muito tempo: o poeta é um ponto infinito.

Os vivos se ligam ao seu tempo, e isso deve ser a "poesia contemporânea". Ariel escreve sobre os "transe-entes" da vida, que não enxergam o que ele enxerga e, portanto, não sabem ou não entendem viver. Em busca da clarividência, evoca novos significados e combinações da palavra, suas conjugações, produzindo novos sentidos para o mesmo. Invoca os mistérios inexplicáveis. "O corpo é o nosso pajé", diz ele. É um feiticeiro e também um Quixote, contra os moinhos da ignorância. 

A busca semiológica da poesia no mundo de hoje quer, diante de tanta informação, encontrar novos significados, ou que sejam de novo verdadeiros. Num mundo sem verdades,  ou de pós-verdades, a própria palavra perde seu sentido original: porém,  da sua recombinação, vêm novas edificações mentais e emocionais.

A diferença de Ariel para outros é que ele usa a beleza da expressão para rasgar a realidade. Há no seu desconcerto a intenção de destruir o mundo conhecido: um sentimento que não é do negro, mas da contemporaneidade. Intencionalmente ou não,  essa realidade rasgada como papel picado forma uma nova massa reciclável, transformada em energia, fonte do mundo de Ariel, ou pelo menos do mundo como gostaria que fosse. 

A poesia contemporânea não existe: existe só o poeta, o vivo e o morto. E a arte, a única realidade, objeto de seu trabalho. Na sua confecção,  Ariel não inventa palavras, como os neologistas do construtivismo, que desconstruíam e reconstruíam a palavra como tijolos semânticos de edifícios  inesperados. Mas a usa como arma, até contra ela mesma. "O problema é a linguagem" diz ele. "Precisamos fazer um curto circuito da linguagem."

Coloca o desafio de trazer o sonho para a realidade. "Essa é a grande viagem", diz. Nesse esforço geral para transformar o visto em não visto, Ariel ataca a ordem com fúria niilista. O Breu do título do livro "é nossa memória mais antiga", explica. É a escuridão, mas ele deixa entrever um pouco de fé: a regurgitação do velho pode produzir não apenas algo reciclado,  mas o novo, e o melhor. 

A transcendência da realidade pela poesia é a nova realidade. Exalta a "vida livre", e a "erotização da vida", tudo o que a faz valer a pena. Esse tudo virá de novo do Big Bang poético: tudo virá do nada. A esperança é esta: "o Breu renovará nossa vida".

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

A Conquista do Brasil: como tudo começou


Eu devia ter oito anos de idade, quando meu pai, Alípio, comprou um caderno quadriculado, me deu uma caneta e me levou ao Pátio do Colégio, marco zero da cidade de São Paulo, dizendo que íamos trabalhar.

Lá, dentro de uma parede de vidro, está o muro de taipa do antigo colégio, embrião da maior metrópole da América Latina, que cresceu ao redor de uma escola. Ele me mandou desenhar o muro, medir sua distância, a altura, descrever o que eu via.

Lembro que não entendi por que fizemos aquilo: parecia algo para ocupar o tempo, num final de semana. Meu pai adorava fotografar e fez um registro daquele momento.

Eu já nem me lembrava disso, mas há coisas que devem ficar no subconsciente e fazem de nós aquilo que somos. Quarenta anos e alguns livros depois, escrevi A Conquista do Brasil (1500-1600), que sai agora em segunda edição, depois de cinco reimpressões e mais de 100 mil exemplares vendidos.

Lá se narra a fundação de São Paulo, episódio fundamental na  violenta história da ocupação da costa brasileira, dentro de um esforço para entender a relação daquele muro derruído com tudo o que somos hoje, com nossos defeitos e virtudes - o nosso DNA.

No segundo livro, A Criação do Brasil (1600-1700), também agora relançado, tive de ir mais longe no passado, até a própria formação de Portugal e Espanha. E mostro como os jesuítas utilizaram aquela escola como ponto de partida para a ocupação europeia, não somente do Brasil como de todo o chamado Novo Mundo.

Outro dia, fui à casa de meu pai, contar que estava saindo a segunda edição dos livros, e mencionei ainda que havia escrito sobre minha primeira experiência como jornalista, que tinha sido com ele. Meu pai, porém, não lembrou do episódio ao qual eu me referia - umas férias em que eu tinha 14 anos, e fiz um breve estágio em uma revista que ele dirigia. 

Lembrou-me daquela primeira experiência de criança: o menino que ele colocou, com um caderno na mão, diante de um muro.

- Mas aquilo era para ser uma reportagem? - perguntei a ele.

- Não sei para você, mas para mim, foi.

Dou-me conta de que desde então tenho sido aquele menino, com o caderno na mão, diante do muro. Não sabemos onde nasce a motivação, exatamente, para sermos o que somos. Porém, creio que passei a vida tentando entender aquele enigma: o monolito que simboliza a origem, onde está a chave dos mistérios da vida. 

A minha trilogia colonial, cujo terceiro livro sai em janeiro, é isto: eu diante do muro, tentando entender quem sou, quem somos todos, o que estamos fazendo e faremos aqui.

Ainda uso caderno e caneta, e somos os mesmos, eu e meu pai. Estamos mais velhos e sabemos, como Platão, que sabemos cada vez menos. Não sei dizer por exemplo o quanto do que faço se deve a ele, ou a mim mesmo. Porém, de certa forma, talvez tenha sido ele a escrever meus livros, desde o dia em que me deu um propósito.

A meu pai, um obrigado para o qual não há palavras. Agradeço também a todos os que fizeram destes livros um sucesso e assim permitem que eu continue este trabalho, creio que em benefício geral. Há bastante gente que ainda não leu os dois livros e, como muitos daqueles que leram, poderão encontrar neles uma história do Brasil diferente da que se aprende nas escolas, reveladora e, espero, capaz de nos ajudar a melhorar.

Vale a pena também ir ao Pátio do Colégio, para ver, sentir in loco como tudo começou. Para esta imensa cidade e este fenomenal país. E para estes livros, ou: para mim.


Fotos: Alípio do Amaral Ferreira

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O repórter, a humildade, e a confiança

Eu tinha 14 ou 15 anos, e o seu Alípio, meu pai, então diretor de redação de uma revista chamada Construção Hoje, me botou para trabalhar como repórter, para que eu não ficasse muito à toa, naquelas férias. Foi a primeira coisa que eu fiz a trabalho, e como jornalista, ainda sem sê-lo. Claro, me dei mal.

Eu era muito novo e ainda achava que precisava empinar o peito para ser  respeitado. Não sabia que é possível ter humildade e confiança ao mesmo tempo. Aliás, não sabia que essa é a melhor combinação, e não apenas na vida de um repórter.

Primeiro, fui encarregado pelo Delmar Ferreira, chefe de redação, um jornalista com físico delgado, mas intelectualmente um gladiador, de fazer uma entrevista sobre uma feira da construção pesada, no Pavilhão do Anhembi - hoje "Distrito Anhembi". Me deram o telefone do organizador da feira. Liguei várias vezes, não consegui ser atendido.

Fiquei frustrado por não resolver aquele problema sozinho. Delmar então me deu um dinheiro para o táxi e me mandou tentar a sorte pessoalmente, no Pavilhão, onde a feira estava sendo armada.

Não passei da porta.

Voltei desconsolado, mas somente então Delmar me explicou que o problema, na realidade, não era eu. A revista não tinha comprado espaço na feira, portanto seu organizador estava de má vontade e por isto não estava recebendo a reportagem. Era uma chantagem. E aquele assunto seria resolvido entre as empresas.

Tempos depois, a entrevista foi marcada. Peguei o endereço e fui à sede da empresa de eventos, no Ibirapuera, perto do parque. Era um sobradinho. O dono da companhia me recebeu. Respondeu a duas ou três perguntas, que Delmar havia escrito num papel e eu apenas li, antes de ir embora. O texto, naquela situação sensível, Delmar que escreveu.

Era um mau começo, mas viria coisa pior. Marcaram para mim uma entrevista com Romeu Chap Chap, dono de uma construtora com seu nome, e presidente do Secovi, o sindicato das empresas de comércio e serviços imobiliários. Queriam que eu escrevesse, a partir da entrevista, um retrato de como se encontrava aquele mercado.

Fui à sede do sindicato. Chap Chap, um senhor elegante e educado, com um bigode fino de filme antigo, trabalhava em um escritório impecável, dentro de um prédio envidraçado. Era falante, solícito, bem articulado. Começou a me explicar tudo didaticamente, sem que eu precisasse perguntar nada. 

Aí entrou a empáfia do jovem inexperiente. Daquela vez, eu não tinha anotações - isto é, a pauta. Em vez de ficar quieto, comecei a fazer perguntas. As minhas perguntas.

Nas perguntas, tentei demonstrar que sabia alguma coisa sobre o mercado imobiliário. Depois, quando começou a dar errado, tentei demonstrar que sabia mais do que ele. E fui me enrolando cada vez mais.

A certa altura, ao ver que eu era apenas um rapazinho idiota, ele parou de falar. Me ouviu e, quando terminei de lhe dar uma aula, encerrou a entrevista e me dispensou, sem comentários,  possivelmente em respeito à revista, que ele conhecia bem. 

Saí dali tão envergonhado que, anos mais tarde, quando já trabalhava em um jornal de negócios e via Chap Chap em algum lugar, desviava dele.  Certo dia, em que não pude fugir, rezei para que não me reconhecesse. Como fiquei quieto, acho que não me reconheceu, mesmo.

Foi minha primeira lição em jornalismo. Você vai falar sempre com alguém que sabe mais sobre aquele assunto. Essa pessoa está te fazendo um grande favor em passar a informação. Ela está em primeiro lugar. Chegue mais cedo, para que ela não perca tempo. Pergunte, seja sucinto, escute calado, aprenda, e depois de aprender, escreva.

Em jornalismo, faço assim até hoje.

Confesso que não lembro o que escrevi sobre o que disse Chap Chap, se é que escrevi alguma coisa. Logo apareceu minha terceira e última tarefa: acompanhar meu pai na feira do Anhembi, quando abriu.

Numa tarde, seguindo-o como uma sombra, pude vê-lo em ação, no trabalho. Eu conhecia o homem sério que habitava a minha casa: trabalhava num escritório onde sumia no meio da fumaça do cachimbo. Sabíamos que estava lá apenas pela matraca da máquina de escrever Olivetti verde que martelava com os dedos. 

Na feira, lembro de ficar surpreso em ver como meu pai parecia conhecer todo mundo.  Andava de um estande a outro, conversando desembaraçadamente,  com sua panache,  e um certo charme atraente para as mulheres - algo que, como filho também da minha mãe, me surpreendia e deixava um tanto embaraçado.

No estande da revista, que afinal alugara um espaço dentro da feira, havia um par de fotografias dele, gigantes, com um capacete de obra na cabeça, ilustrando uma parede. Nunca o tinha imaginado assim, de relações tão fáceis, e um astro do lugar onde trabalhava.

Eu era tímido e achei, por tudo aquilo, que jamais poderia ser um jornalista. Gostava da ideia de escrever, como meu pai, mas não tinha aquela desenvoltura com as pessoas - o elan do repórter. Tudo o que eu tinha feito nesse sentido acabara em desastre.

Tinha tomado, porém, a maior lição da reportagem. Descobriria mais tarde que, para aqueles que sabem ouvir, e partem do princípio de que não sabem nada, valorizando o outro, as pessoas contam tudo.

É a humildade. E, para se ter essa humildade, é preciso ter confiança. Ninguém é menor por não saber algo. Ao contrário, ao mostrar que não sabemos, inspiramos no interlocutor a certeza de que não precisamos nem vamos querer demonstrar uma sabedoria que não temos - e, assim, não escreveremos bobagem. Esse é o segredo do sucesso em jornalismo.

Ao contrário dos opiniáticos que não ouvem ninguém, já sabem tudo e locupletam as redes sociais, jornalistas sempre sabem menos que as pessoas que vão entrevistar, ponto. Ao sentar para escrever, porém, depois de ouvir várias pessoas, sabemos mais do que cada uma delas, individualmente, de fato. Pelo menos por um momento fotográfico,  o instante em que colocamos o ponto final, sabemos mais que todo mundo. Somos máquinas de aprender - e reproduzir o que aprendemos. Porém, em seguida já queremos mudar de assunto, porque num só ficamos entediados. E entramos num novo tema, com outras pessoas, para saciar toda a nossa ignorância, começando tudo de novo.

Leva-se muito tempo para aceitar que não precisamos demonstrar quem somos, para sermos alguma coisa. E esta, creio, não é apenas a grande lição em jornalismo. Para mim, é uma lição de vida - e, mesmo agora, depois de ouvir tanta gente, saber tanta coisa, e duvidar de tudo, eu a sigo como um mantra.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Eu, o polêmico, e a Assírio & Alvim


O café fumega em cima da mesa na livraria Martins Fontes da Paulista, onde um amigo vai tirando o chapéu e já senta querendo dizer o que andam falando de mim. 

- Você anda muito polêmico - diz ele. - Tão falando aí que você é machista e misógino. E também que você mora em Higienópolis, é muito rico e anda de Mercedes.

Dou risada, é claro. Moro em Higienópolis, de fato, mas no resto vejo em funcionamento as perversidades desse mundo de hoje, em que as pessoas já expressam seu preconceito sobre o que não conhecem, sem sequer dar um google e consultar a wikipedia.

Isto vem desse mundo novo onde eu caí meio de paraquedas, desde que me tornei editor no Brasil do selo Assírio & Alvim, principal publicador de poesia de qualidade em Portugal, que tem aqui muitos, qualificados e opiniáticos leitores.

- Que mais?

- Falam também que você anda se aproveitando da editora portuguesa para publicar seus livros.

Não é a primeira vez que sou um estranho no ninho e causo algum alvoroço. Ao contrário, estou até acostumado a navegar em mar encapelado. Já ouvi de tudo, pelas coisas que escrevo ("escrever é fazer inimigos", diz o professor Fernando Morais) e sei perfeitamente que o brasileiro gosta de falar mal de tudo, especialmente quando não tem conhecimento de causa. 

Por coincidência, está saindo agora a segunda edição de meus dois primeiros livros de história (A Conquista do Brasil e A Criação do Brasil), que reforçaram a minha impressão de que a vocação para a cizânia brasileira vem de longe. Mais precisamente, de quando havia neste território uma míriade de povos que falavam mais de mil línguas diferentes e viviam se matando entre si, tão divididos a ponto de perderem a guerra para uns portugueses gatos-pingados.

Hoje há nessa seara de debates virtualmente impulsionados  muitas tribos bem modernas. O pessoal que é aficcionado de poesia se reúne muito, em saraus, mesas e congêneres, e tudo isso é regulado por grupos de interesse que acreditam poder ditar o que é bom ou ruim, o que inclui nos dizer como devemos escrever ou o que devemos fazer no nosso trabalho.

Esses grupos de hoje em dia, e não digo só da poesia, como de tudo, servem para cancelar, maldizer, avisar e domesticar pessoas novas, estranhas ou rebeldes, de modo a servir a seus interesses. Eu acho todos os interesses legítimos, mas espalhar mentiras e maledicências não é a melhor forma de protegê-los. 

Há algumas coisas verificáveis a meu respeito que quem não me conhece, se tiver real interesse, poderá facilmente saber. A primeira delas é que eu respeito e mais, aprecio o diferente sob todas as formas - sexos, cores, idades, categorias e classes -, que eu defino apenas como gente.

Eu me orgulho de pertencer a uma geração que transmutou a antiga ditadura militar no Brasil numa democracia, geradora dessa liberdade de que hoje desfrutamos, em que cada um pode falar o que quiser, ainda que seja para o mal, e defender seus direitos e interesses. Essa é inclusive a história que eu conto num de meus poemas em livro, Asas sobre nós, publicado pela Assírio & Alvim, misturada a uma novela de amor e que reflete, creio, esse espírito da minha geração.

Colaborei como jornalista e editor, numa redação de revista em que virávamos madrugadas acreditando estar mudando o Brasil e o mundo - e mudamos, mesmo. Como autor e editor, ainda sou jornalista, o que me permite defender e fazer muitas coisas diferentes entre si, algo que hoje parece ser desqualificado propositalmente por quem quer impor uma ideia única. Em que pese haver o mau jornalismo, o próprio jornalismo e os fatos (isto é , a realidade) passaram a ser atacados na sua essência pelos monopolistas da moral e da opinião.

Eu posso ser um machista misógino, mas na Assírio & Alvim publiquei o livro Sal, da Mar Becker, sobre o universo feminino e a família tal qual ela a conheceu em Passo Fundo, e que está aí nas paradas de sucesso, assim como o Pangeia, da Mariana Basílio, outra  poeta extraordinária, vencedora do Prêmio Biblioteca Digital. Como romancista, escrevi "Anita", sobre Anita Garibaldi, um ícone da luta feminina que poucas mulheres conhecem ainda hoje.

Falam por aí muita coisa contraditória,  o que faz tudo ser verdade, ou tudo mentira, ou pelo contrário. Dizem que sou de direita, porque escrevi um perfil em livro do João Doria, que esteve no centro da crise toda da pandemia, no seu tempo de governador. Mas escrevi também sobre o bispo Edir Macedo, e nem por isso tenho afinidade com a Igreja Universal. Tem gente também que diz que sou comunista, porque escrevi Xal, a história da Adriana Graças Pereira, menina de rua que virou líder de rebelião em presídio feminino. E por aí vai.

Sobre publicar meus próprios livros, a verdade é que eu tenho livro publicado por diversas casas editoriais. Meu último romance saiu pela Record. Os livros de história (dois estão sendo relançados, depois de várias reimpressões da primeira edição, e o terceiro deve sair em janeiro), estão na Planeta. Já publiquei pela Editora Globo, pela Objetiva, num selo que está hoje com a Companhia das Letras, com a editora Matrix (um livro que fala sobre a Era da Intolerância, por sinal), a Moderna... A lista é grande.

E por que a Assírio & Alvim? Primeiro, é bom que se diga, eu não estou me aproveitando de ninguém para lançar livros meus, até porque a editora é minha, e não de portugueses. Talvez valha a pena contar essa história. É interessante.

Há três anos, na minha primeira visita a Portugal após a pandemia, começava a pensar em publicar poesia, algo que no passado escrevia apenas para mim mesmo, achando, como muita gente, que não dava dinheiro - e, como eu vivo de vender livro, isto ficava em terceiro ou quarto plano.

Meu primeiro editor, Pedro Paulo Sena Madureira, hoje professor de literatura e arte, foi quem me incentivou a publicá-la, depois que lhe mostrei duas versões de um mesmo livro - uma em prosa, outra em poesia, com o título de Além da Memória. Trabalhou no poema, leu inteiro para mim em voz alta, fez comigo o mesmo trabalho que com Adélia Prado, que lançou na antiga Nova Fronteira. Essa história está relatada aqui e aqui.

Em Portugal, fui atraído na feira de Lisboa pelo estande da Assírio & Alvim, dentro do pavilhão da Porto Editora. Que livros maravilhosos! Mas foi algo passageiro. Como negócio, eu pensava mais em uma parceria para lançar o selo da Porto no Brasil e falei com seus editores. 

Sabiam que eu tinha sido diretor editorial da Saraiva, onde fiz um selo e um prêmio literário (Benvirá), um negócio que cresceu muito, inclusive com o lançamento de novos autores. Consultaram pessoas do mercado a meu respeito e me deram um voto de confiança. Em vez do selo Porto, porém, espontaneamente, me ofereceram... Assírio & Alvim.

Lembrei do estande maravilhoso com aqueles títulos todos e pensei: assim como na Saraiva, quando fiz para os autores o trabalho que fazia para meus próprios livros, gostaria que os autores brasileiros fossem valorizados assim, como na Assírio de Portugal, onde eles são tratados como um patrimônio nacional. 

Os portugueses celebram sua cultura, nesse sentido, de uma forma admirável. Sobretudo para gente como nós, brasileiros, que nos habituamos a viver divididos, atirando em nós mesmos, de maneira que nossos artistas e a civilização brasileira permanecem sempre sob ataque, o que vem só em nosso prejuízo, tanto dentro como fora do país. Para maldizer também o Brasil, como brasileiro, creio que essa é uma das causas da nossa pequeneza, apesar do tamanho das nossas riquezas.

Fiz com a Porto Editora um acordo de licenciamento da marca, operada por uma editora (Autores e Ideias) que é minha, com algumas vantagens operacionais para obter conteúdo. Em vez de lançar livros de interesse geral, minha primeira ideia, preferi manter a linha editorial da Assírio em Portugal, brilhantemente dirigida pelos seus editores, de quem me tornei real amigo e admirador.

Comecei a lançar os livros, com esta parceria, mas recursos próprios. E, como todo lugar novo onde a gente aparece, e em que ninguém tem a obrigação de te conhecer, passei aos poucos a entender a necessidade de lidar com o enviroment e explicar a minha intenção.

Não é o capricho de um milionário. Sou autor, filho de jornalista e professora, ganho a vida escrevendo desde os 19 anos de idade, e acho que tenho também uma missão informativa e educacional. Seria ótimo ter bastante dinheiro, não para comprar um Mercedes, mas para fazer mais livros. A minha pequena pretensão de colaborar com a cultura, dessa forma, prossegue na medida do possível.

Agora mesmo estou lançando Dobra, de Adília Lopes, um livro de mais de 1000 páginas que, importado de Portugal, custa 600 reais. Aqui, estou lançando por 159 reais. 

Consegui apoio do governo português para lançar algumas obras, o que me permite transferir esse benefício ao leitor, reduzindo o preço.

Para mim, essa é a função do subsídio estatal: dar acesso ao produto, e não encher a burra do empresário.

Há muitos autores que são editores e vice-versa, inclusive dos próprios livros. Eu poderia fazer meus livros de poesia, assim como os outros, num selo diferente. Aliás não é má ideia e tenho pensado em reeditar meus livros mais antigos como faz o José Roberto Torero, que está relançado seu backlist num simpático selo chamado Padaria de Livros.

Acho que não faz sentido eu ter uma editora de poesia e publicar os livros num concorrente, até porque me tornei, nesse segmento, também concorrente. 

Fui a Portugal pensando em fazer um livro de poesia e voltei com a editora inteira, uma dessas coisas estranhas que frequentemente acontecem comigo. Porém, procuro abrir esse caminho que criei para mim também a outros. Estão todos convidados, portanto, a embarcar nesta viagem, sempre em mar encapelado, mas que me anima a procurar um bom porto, para nós e este país.

 



quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Gloriosos fracassos

 


Gosto mais dos meu fracassos que dos meus sucessos.
não que tenha muitos ou mais que ninguém.
mas dos que tenho, eu gosto.

Gosto dos meus fracassos e digo que fracassei com um sorriso satisfeito
porque gosto deles.

Gosto dos meus fracasssos porque eu acreditava neles.
porque eu pensava grande. e foi melhor fracassar querendo tudo que defendendo o pouco.

Porque viver é arriscar.
e o resultado importa menos que viver.

Gosto dos meus fracassos porque doeram. E não escondi a dor.
experimentei, vivi a dor, para superar a dor.
com a dor aprendi a me curar, a me entender e saber melhor onde vou.

Gosto dos meus fracassos porque eu caí – e caio – de pé.

Gosto dos meus fracassos porque por trás deles há sonho e boas intenções.

Gosto dos meus fracassos porque eles me deixam mais próximo de quem nos faz boa companhia.

Gosto dos meus fracassos porque os esforços nunca foram por vantagens ou dinheiro, e sim por causas que eu achava boas.

Eu gosto dos meus fracassos porque pessoas me ajudaram e o seu esforço me deixa grato, me enternece, me faz querer retribuir com algo melhor.

Eu gosto dos meus fracassos porque me parecem melhores que o sucesso de muita gente.

Eu gosto dos meus fracassos porque ninguém pode dizer que desisti.

Gosto tanto dos meus fracassos que faria tudo de novo, mesmo sabendo que estão fadados ao fracasso.

Gosto dos meus fracassos porque eles falam mais sobre quem eu sou que os meus sucessos.

Gosto de meus fracassos porque ele nunca deixam que eu me acomode.

Gosto dos meus fracassos porque neles ostento meu orgulho, assim como prefiro a humildade comedida nos sucessos.

Eu gosto dos meus fracassos porque são a oportunidade de tentar de novo e melhor.

Eu gosto dos meus fracassos porque a gente na verdade nunca perde.
a gente ganha.
ou aprende.

sábado, 17 de agosto de 2024

Uma tarde de bom futebol

Chute perigoso a gol.


 - O time até que está bem!

- Não se iluda - diz com um sorriso, a meu lado, um torcedor mais experiente.

Assistir um jogo do Juventus em seu velho estádio, na Mooca, é bem diferente. Todo mundo respeita o hino nacional.  Quando o jogo começa,  é um silêncio sepulcral. Um torcedor solitário grita:

- Time vagabundo!

Ninguém sabe a qual deles se dirige.

O jogo transcorre junto com um bom papo. A cada boa jogada do Juventus, a torcida reage com surpresa.

- Óooh - exclamam, impressionados.

O melhor da partida são os comentários.

- Acho que a torcida do adversário não compareceu - diz um torcedor de camisa grená, olhando para o outro lado.

O estádio da rua Javari lembra o futebol dos velhos tempos. Quatro fileiras no segundo andar são a zona nobre e a única de sombra garantida. O resto da torcida escapa do sol das 15h  junto ao muro da arquibancada na linha de fundo, atrás do goleiro. O verdadeiro futebol raiz.

O jogo é bom, tem belas jogadas, com um bumbo batendo solitário o tempo todo. Dá pra ouvir tudo o que dizem os jogadores. E eles conhecem muita gente na torcida, formada em boa parte por amigos e familiares.

Tem o pessoal que come o tradicional canoli do estádio: é a maior fila e acaba rápido no intervalo. Na frente da barraca,  enquanto esperam o canoli, as crianças se ajoelham, admirando a estátua de Pelé,  que aqui certo dia marcou um gol antológico. 

Começa o segundo tempo.

 - Time vagabundo! - grita o torcedor.

Trinta segundos depois, o Juventus faz 1 a zero. Funcionou.

"Esse moleque travesso...", toca o hino, quando o juiz dá o apito final. 

A fila para comprar camisa na lojinha é uma prova de simpatia e boa vontade, já que há mais testemunhas que torcedores de verdade. É uma boa lembrança de um dia de futebol tranquilo, sem a neurastenia coletiva dos grandes estádios.

O resultado é o que menos importa, apesar de o Juventus estar disputando um lugar na Copa do Brasil. Passear no bairro depois é uma delícia. Há bons bares nas proximidades. 

Fazia tempo que eu não via um jogo de futebol como antigamente. Aqui a gente se sente criança. Porque o futebol é como antes. E como a gente achava que é o futebol brasileiro.




 

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

O jornalismo e o vendedor de bombons


Dia dos pais, e estou num almoço com meu filho, 17 anos, meio incerto da profissão a escolher no vestibular deste final de ano, e meu pai, de 89, um bem sucedido aposentado.

- Sabe como eu escolhi minha profissão? - diz o avô ao neto. - Graças ao dono da bomboniere.

Conta a história meu pai, Alípio. Quando ele tinha pouco mais que a idade do meu filho, foi trabalhar no cinema do tio Amaral, que era padre e vigário da Igreja de Nossa Senhora das Dores, na Casa Verde. 

O cinema de bairro servia para trazer um dinheirinho a mais ao caixa da paróquia. Nas famílias tradicionais de origem mineira, geralmente o filho mais inepto para os negócios virava padre. No caso dos Amaral, família de minha avó, por algum erro vocacional, o tio padre era um grande negociante, que tinha vários empreendimentos, incluindo emprestar dinheiro a juros usurários. E o cinema.

Como alguém de confiança da família, papai virou o gerente. Cuidava do caixa e fazia a bilhetagem, conferida pelo fiscal da prefeitura, disfarçando algumas malandragens - por exemplo, deixava entrar de graça para ver os filmes uma moça na qual estava interessado, chamada Marlene, que depois seria sua mulher e a minha mãe. Quando passavam os filmes, ficava longo tempo ali, sem fazer nada. Batia papo com o vendedor de bombons, que alugava o balcão na sala de espera do cinema.

O homem da bomboniere tinha um segundo emprego: vendia anúncios para A Hora, um jornal sensacionalista, que dava sobretudo notícias policiais. Meu pai, que fazia Odontologia na Faculdade de Medicina da USP, para satisfazer minha avó, que queria um emprego seguro e tranquilo para o filho, achava maçante passar o resto da vida vendo pessoas de boca aberta numa cadeira odontológica.

- Será que você não arranja um emprego lá para mim? - perguntou papai.

- E o que você sabe de jornalismo?

- Eu sei ler - disse meu pai, lembrando que corria antes de todo mundo, quando menino, para pegar o jornal que o entregador deixava na casa do pai dele, meu avô.

O vendedor de bombons pensou, e disse:

- É o bastante.

Assim, meu pai conseguiu seu primeiro emprego, como repórter de A Hora. Diz que não gostava de cobrir a área criminal, assunto pesado, penoso, mas adorou o jornalismo. Praticou-o por setenta anos - e deu a meu filho seu único conselho para encontrar uma profissão:

- Experimente!