quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Escrever não é gramática, são as ideias


Quando entregava um livro aos editores, Monteiro Lobato costumava colocar, antes do texto, um recado aos revisores: avisava quais eram os sinais utilizados na língua portuguesa. E os mandava colocar no texto, aonde quisessem.

Escrever não é saber pontuação, nem mesmo saber português. Escrever é imprimir ideias. Elas se propagam de muitas maneiras, mas a mais elegante, eficaz e perene é escrevendo. Seja em papel ou no mundo virtual.

Eu uso isso como desculpa para todos os erros que cometo, num atentado não deliberado, mas não muito arrependido, ao bom português. Troco onde por aonde e vice-versa. Esqueço o "em" antes do "que". E por aí vai. Conheço as regras, mas no fluxo do pensamento muitas vezes elas vão ficando para trás.

Talvez alguns estranhem a comparação, ou a achem de mau gosto, mas escrever é como fazer amor. Se você ficar pensando na parte mecânica do ato, como um engenheiro, e não um amante, a coisa não sai.

Escrever, fazer amor e dançar têm isso em comum. Fred Astaire certamente nunca pronunciou as palavras "dois pra cá, dois pra lá".

Se a ortografia não é minha arte, prezo ainda menos pela datilografia. Escrever não é datilografar. Cato milho com dois dedos de cada mão há mais de trinta anos trabalhando em jornalismo. Por vezes o texto sai tão difícil de ler quanto o manuscrito, onde também como letras, ou sílabas inteiras, numa garatuja muitas vezes próxima da estenografia.

Sei que é irritante para os outros, deselegante, talvez, e uma complicação. O ideal é entregar o serviço perfeito, limpo, profissional. Porém, o cuidado com a língua é mais próprio do revisor, do professor ou do acadêmico. E uma coisa é certa: quando o dançarino é talentoso, o amante é bom e as ideias fazem efeitos, as regras ficam sempre em segundo lugar.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

"Não tenha pressa, mas não perca tempo"

O jornalista José Ruy Gandra, que certa vez entrevistou o escritor português José Saramago, foi quem ouviu primeiro a frase lapidar, seu conselho para jovens escritores: "Não tenha pressa, mas não perca tempo".

Fiquei com a frase, pérola de sabedoria que serve para tudo, porém é especialmente importante para a tarefa de escrever. Há dentro dela mais do que simples filosofia: há um mecanismo de trabalho que define o próprio ato de escrever.

Escrever é pensar no papel. É preciso, para que um texto saia perfeito, haver uma sincronia entre ambas as coisas; certamente Saramago sabia disso como ninguém. Por vezes, se estamos ansiosos com o que vamos escrever, ou pensamos rápido demais, mais rápido do que podemos escrever, pulamos algo importante. Se as ideias não fluem, o texto não sai. Escrever tem, como se diria em inglês, o seu pace - o seu tempo, uma espécie de cadência, em que pensamento e escrita fluem juntos.

Esse fluxo em que se escreve pensando e vice-versa só é adquirido com a prática da escrita. Por isso, não basta o talento. Somente a prática faz com que o texto saia na tela do computador com naturalidade, da mesma forma com que as palavras saem da boca quando falamos. O discurso oral parece ser produzido sem pensar; na realidade, pensamos enquanto falamos. O mesmo ocorre com a linguagem escrita, com a diferença de que falamos desde pequenos, todos os dias, durante anos. Escrever com a mesma naturalidade com que se fala requer treinamento igual.

A pressa faz as palavras seguirem à frente das ideias, o que é contraproducente; escrever devagar faz o processo igualmente parar. Escrever requer paciência e o cumprimento de todas as etapas, frase a frase, parágrafo por parágrafo.

Claro que a sentença de Saramago se refere a mais coisas, ou principalmente a outra coisa. É muito fácil nos distrairmos diante da tarefa de escrever.É um trabalho pessoal, que não pode ser terceirizado. E que sempre requer a volta a uma certa sintonia quando temos que recomeçar depois de uma parada. Tendemos a querer fazer outras coisas, a fugir do trabalho, por receio de não conseguir realizar a mágica novamente, nunca mais. Por isso é importante não ter pressa, para fazer o serviço direito, mas não perder tempo. O tempo é a única coisa que temos.

Depois de escrever um livro de não-ficção, que deve sair pela editora Planeta em fevereiro próximo, estou pelo meio de um ambicioso romance, desafio diário que me dá tanto prazer quanto medo. Os anos de trabalho não eliminaram de todo a incerteza; por vezes, receio que uma coisa ou outra não fique tão boa; por vezes, resisto a recomeçar. Tento aproveitar os momentos de envolvimento com a história, que fazem o trabalho render mais. E sento diariamente diante da máquina, logo ao acordar, para que nada sirva de distração.

Penso em Saramago e João Ubaldo, que recentemente perderam a coisa mais importante para o escritor - o tempo. Eles me ajudam a ir adiante, sem perder tempo, nem o compasso.

Paulo Coelho, Deus e a função do editor



Ao assumir em novembro de 2.009 a direção editorial da Saraiva, para lançar livros de ficção e não-ficção, eu tinha dois desafios. O primeiro, como fazer uma editora que tinha a maior cadeia de livrarias do país vender também em outras redes e livrarias independentes. Segundo, que contribuía com o primeiro: como trazer grandes autores, que em geral estavam bem colocados em empresas concorrentes.

Com apoio da empresa, o primeiro desafio foi resolvido com a criação de uma marca: Benvirá, que seria divulgada por meio de um prêmio literário, entre outras ações. Precisávamos dar prestígio ao selo, colocando autores na Flip, por exemplo, o que viria a acontecer depois. Quanto a conquistar autores vendedores... Bem, esse era o maior desafio. Comecei a pesquisar autores de alta qualidade, que estavam meio abandonados, e eu poderia recuperar; autores novos, ainda despercebidos; e autores de calibre grosso que, com projetos sólidos, e dinheiro, eu tentaria conquistar.

A primeira oportunidade que surgiu foi justamente com o maior best seller brasileiro: Paulo Coelho. Naquela época, ele acabava de deixar sua antiga editora; seu primeiro livro em uma nova casa estaria em leilão. Enviei um e-mail para sua agente em Barcelona, Monica Antunes; marcamos para a feira de Londres, em abril seguinte, uma reunião.

O destino complica a vida das pessoas, sobretudo as sem experiência no ramo, como era o meu caso; naquele mês de abril, aconteceu na forma de um vulcão. A montanha, localizada na Islândia, resolveu bem naquela hora explodir; lançou uma nuvem de cinza sobre a Europa, que fechou os aeroportos; muita gente, como eu, teve cancelado o avião. Um dia depois da feira, onde, segundo eu acreditava, não tinha acontecido nada, li no jornal uma nota sobre a compra de Aleph, o novo livro de Paulo, pela editora Sextante.

Eu, que tinha com Monica aquela reunião, na expectativa de poder pelo menos fazer um lance, não podia estar mais frustrado. Tinha perdido o negócio, mas não a disposição. Mandei para ela nova comunicação. Disse que iria a Barcelona visitar alguns agentes, que gostaria de ter conhecido já em Londres, e pedia para falar com ela pessoalmente.

No dia marcado, hora marcada, eu estava lá: um prédio envidraçado na avenida diante do porto, onde ficava a Saint-Jordí. Cabelos curtos, olhos puxados, que deixam seu sorriso com um pouco da alegria chinesa, Mônica me recebeu na sala de reunião. "É um prazer te receber, mas não sei o que você está fazendo aqui", ela disse. "Como você sabe, eu já vendi o livro."

De fato. Eu, que às vezes compenso minha ignorância com certa ousadia, o que em geral se confunde com insolência, primeiro reclamei que ela tinha vendido o livro sem falar nada comigo. "É verdade", ela respondeu. "Mas o olhei o site da Editora Saraiva. É tão ruim que não sei como vocês fazem livro."

Não pude discordar. Desde que entrara, eu dizia que precisávamos de um site melhor, mais voltado para o varejo, necessidade do novo negócio. Me pediram para esperar, tudo seria reformulado. E, como costuma acontecer com medidas importantes mas consideradas pequenas nas grandes organizações, fiquei a esperar e esperar.

Disse então que estava ali porque tinha uma ideia para lhe dar. Ela tomou um choque, quase ofendida, beirando a indignação. "O Paulo não faz livro de encomenda!", avisou. Realmente, se há alguém que não precisa fazer um livro de encomenda, a cavaleiro dos seus milhões de livros vendidos em mais de 150 países, é Paulo Coelho. Isso, porém, não me abalou. "Mas você ainda nem ouviu a minha ideia!" Monica, mais uma vez surpresa, depois de olhar para mim, por desencargo, concordou.

Expliquei então o que eu imaginara. "Para mim, o Paulo é o grande fabulista do nosso tempo", eu disse. "Minha ideia é fazer ele reescrever as fábulas do Esopo, como fez la Fontaine. Na linguagem dele, voltada para o público contemporâneo. Seria um livro para crianças, mas que pode ser lido por qualquer um."

Mônica parou um instante: num estalo, em vez de me mandar embora com um piparote, comprou a ideia de imediato.

"Vou falar com ele", disse. Levantou-se inopinadamente, foi até uma prateleira na parede, e voltou dali com três livros. "Já que vocês têm na Saraiva a área educacional, poderiam fazer também isso aqui", ela disse, e me entregou os exemplares, num formato quase de livro de bolso. Eram O Alquimista, O Demônio e a srta Pryn e Verônika Decide Morrer, com um suplemento didático, uma coleção para ser vendida em escolas. Explicou que aqueles três livros eram usados por professores em países como Espanha, Estados Unidos e Portugal. "Talvez pudéssemos fazer isso também no Brasil."

Saí de lá desconfiado: estava bom demais. Já tomara uma surpresa antes, tomar outra não custaria nada. Ao chegar em São Paulo, porém, ao abrir o computador, estava lá: um e-mail do próprio Paulo, com um texto em anexo, em que ele, ainda antes de assinar qualquer contrato, e já trabalhando, perguntava: "é isso que você tinha em mente?". Era. Nascia aí o "Fábulas" de Paulo Coelho, que seria uma das maiores vendas durante a minha gestão.

Em um mês, criei uma página na internet só para o selo Benvirá - cartão de visitas que não dependia mais da grande reformulação prometida pela corporação. Negociei o contrato de Fábulas, e disse que faríamos os livros paradidáticos, com duas condições. A primeira: pelos livros didáticos, eu não pagaria nada de adiantamento autoral. Todo o dinheiro seria investido no trabalho com o professor. (Mais tarde, ela diria que eu fui o "editor mais duro" com quem negociou. Espantado, perguntei a razão. "Nunca tinha vendido um livro por zero", ela afirmou).

A segunda condição, no entanto, era a mais importante. Paulo Coelho sofria, sempre sofreu, uma grande rejeição do mundo intelectual no Brasil, incluindo o professor. Era um best seller, um autor popular, mas lhe faltava o prestígio qualitativo que faz entrar na escola um autor. A meu ver, isso acontecia porque os livros de Paulo, em português, onde sempre foram lançados inicialmente, tinham muitos erros: de ortografia, de lógica, de informação. Esses erros não afetavam outros países, onde Paulo tinha vendas e prestígio também, porque desapareciam na tradução.

Para vencer a resistência do professor, e convencê-lo a adotar os livros de Paulo, precisávamos de um produto impecável. Isso significava fazer os livros passarem por um implacável trabalho de edição.

Eu havia escutado que Paulo se recusava a ter seus textos editados e até mesmo revisados, o que deixava passar erros muitas vezes primários. Corria no mercado a lenda de que ele dizia receber aquelas palavras diretamente de Deus - portanto, seu texto tinha de sair como Ele mandava. Contei isso a Mônica. Ela respondeu que era tudo bobagem. E que eu podia fazer o trabalho que tinha de fazer.

Durante dois meses, além de fazer o material paradidático, com a ajuda de um professor, editamos e revisamos os três principais livros de Paulo, que se tornaram significativamente melhores na versão paradidática da Saraiva, comparada com a versão de varejo. A Saraiva começou a vender os livros para as escolas, um esforço árduo de convencimento do professor. E, paralelamente, o Fábulas saiu.

Todas as mudanças feitas no texto dos romances foram submetidos ao Paulo. Ele as aceitou, sem pestanejar. Deus também não fez nenhuma objeção. Na convivência do trabalho, meu conceito sobre ele subiu. Passei a respeitar Mônica, que o escritor Fernando Morais, meu amigo, chamava de A Bruxa, pela sua capacidade de catapultar um escritor brasileiro á condição de best seller mundial. Acho que foi recíproco. Eu e Monica nos tornamos amigos e nos encontramos muitas vezes, não apenas para falar de negócios. Ela é firme, dura e árdua defensora do seu autor, como tem de ser. Mas descobri que também é uma pessoa doce, sensível e de bom humor. E que aceita argumentos, quando são em benefício do negócio, bons para a editora, e o escritor. É, ainda, de uma simplicidade e modéstia exemplares. Quando lhe perguntei como tinha vendido Paulo no mundo inteiro, ela me respondeu, simplesmente: "batendo de porta em porta". Como eu, por sinal, também estava fazendo.

Muitas vezes penso que, se tivesse feito esse trabalho no início, Paulo não teria sofrido a rejeição que teve aqui, no Brasil. Nunca entendi por que os editores se furtaram a fazer seu trabalho, como tentei fazer. Nem mesmo Paulo Coelho, recebendo ou não suas palavras de Deus, acerta tudo. Ele é um gênio, que descobriu um filão literário a partir de sua experiência de vida, de sua intuição, de sua sintonia com o mundo e com os interesses do leitor. Esse é um talento que poucos têm. Mas é preciso ser rigoroso com o texto. Não basta ser criativo, nem mesmo genial. Qualquer um, até mesmo Deus, precisa de um bom editor.

Lições para escrever, n. 1


Naquele tempo eu trabalhava como editor assistente de Economia da revista Veja; para chefiar a seção, pouco tempo antes viera, deslocado de Internacional, o jornalista Fernando Pacheco Jordão. Profissional experiente, talentoso e simpático, um desses raros homens com quem trabalhar se pode dizer que também é um prazer.

Em Veja, especialmente nas quintas e sextas-feiras, trabalhávamos até muito tarde; o dia era gasto na apuração das notícias, o que significava ir além do que informavam os jornais; nossa função era explicar melhor, revelar os bastidores, fazer o leitor entender de maneira mais ampla ou profunda o que acontecia na sua própria vida e no mundo ao redor. Escrever era uma atividade que nos aproximava dos bombeiros, guardas noturnos e outros profissionais da noite. E não podiámos errar: ter que reescrever uma matéria significava um desastre, porque frequentemente nos levava a sair do trabalho somente de madrugada ou mesmo no dia seguinte pela manhã.

Fernando tinha uma particularidade; quando não sabia direito por onde começar uma matéria, começava por qualquer lugar; em algum momento, chegava à conclusão sobre o que era mais importante; nesse instante, voltava para o começo de tudo, depois punha o texto em ordem. Na maior parte das vezes, porém, ele me deixava escrever a reportagem, depois de dar alguma orientação.

Talvez pela tranquilidade com que confiava nesse método, certa vez eu e ele nos demos mal – mais eu do que ele, é claro. O governo acabara de anunciar um aumento do salário mínimo. A seu pedido, escrevi uma longa peroração sobre os efeitos que isso teria na economia, onerando contas públicas e a previdência social. Isso, dizíamos, apesar do benefício inicial para a população, geraria uma reação em cadeia que causaria prejuízos na frente, com o aumento da já elevada inflação.

No final, para não dizer que tínhamos deixado de mencionar o assunto, escrevi um pequeno box, quase um rodapé, sobre o problema da classe média, que teria de se virar para pagar a empregada doméstica. E lá fomos levar a matéria para José Roberto Guzzo, diretor de redação, que fazia a leitura final das reportagens mais importantes da nossa seção.

Com sua aparente bonomia, seu ceticismo permanente, e sua ironia fatal, Guzzo leu nossa obra, coçando a cabeça. Ao final, decretou:

- Muito bom – disse. – Vocês fizeram mesmo uma bela matéria sobre economia. Agora façam ela virar o box. E o box virar a matéria. O leitor não está interessado nas contas do governo. O problema dele é a empregada doméstica.

Saímos de lá; olhando para Fernando, com aquela cara, comecei a escrever tudo de novo. Mas Guzzo tinha razão. O leitor de Veja, que é de classe média, olhava primeiro para o próprio umbigo, ou melhor, o bolso: antes das grandes decisões da política e economia, a revista tratava do interesse pessoal e direto do leitor. A economia tinha um efeito retardado, ou secundário; aquela medida primeiro afetava o público da revista já no salário do fim do mês. O resto, ainda que relevante, ficava em segundo lugar. Cometeramos ali um erro de avaliação, tomando como base nossa própria cabeça de jornalistas e o que achávamos importante, mas para nós.

Conto essa história como exemplo de como é essencial pensar sobre o que vamos escrever, antes de escrever, e avaliar essas questões, antes de tomar uma decisão. Lição número 1 do livro Escreva Bem, Pense Melhor, e do curso com o mesmo nome, que tenho ministrado: escrever é, antes de mais nada, pensar. É preciso primeiro definir o que é importante, para balizar tudo o mais.

Essa decisão é fundamental, e nela pesam dois fatores. Um é o que achamos importante, a notícia, ou o que faz a diferença. Nem sempre é fácil entender o que é o mais importante, novo, ou fazer a síntese do que precisamos dizer já de saída. O outro fator, não menos importante, é pensar em quem o texto se destina; para isso, é preciso conhecer o público leitor, seus interesses e prioridades.

O sucesso de Veja, no seu auge, sempre se baseou nesses dois pilares: os temas que achávamos importantes, e que marcavam a posição da revista, mesclados aos que interessavam diretamente o leitor. Essa combinação é que criou um público leitor fiel, que fez Veja se tornar a maior publicação do Brasil e a quarta revista semanal do mundo em circulação.

A imprensa foi para mim um exercício permanente da escrita; além de escrever todos os dias, exige pensar o tempo todo no que é mais importante. O texto jornalístico pede cotidianamente a organização das ideias, de modo que o texto comece pelo mais importante e vá se desenvolvendo de forma lógica, encadeada e interessante até o final. Mesmo quando comecei a escrever ficção, esse exercício ajudou; não importante o assunto, ou o gênero, o que nos faz escrever melhor é sempre o pensamento organizado. Com o tempo, não importa o assunto, passamos a escrever cada vez mais rápido e melhor.

Toda vez que nos deparamos com algum tema, há sempre formas diferentes de tratá-lo ao escrever. A decisão é nossa. O leitor, porém, é que vai julgar. Ninguém escreve somente para si mesmo; nenhum homem é uma ilha, especialmente quando se trata de comunicação.

domingo, 14 de setembro de 2014

A era da intolerância



Jornalistas americanos são decapitados por mascarados do "Estado Islâmico". Outros mascarados, em Cascavel, Paraná, decapitam colegas presos em rebelião carcerária.

Uma mulher é vista na TV chamando o goleiro Aranha, do Santos, de macaco. O goleiro registra queixa na delegacia. A mulher vai à delegacia e se obriga a dar desculpas públicas perante a imprensa. Por fim, sua casa é incendiada.

As torcidas são clássico exemplo de intolerância e violência. Todos vão a campo para xingar e extravasar sua frustração pessoal. Se queimarmos a casa de todos que já o fizeram, o Brasil seria terra arrasada. Por sorte nem todos foram ainda filmados num gesto "anti-social". Ainda. Breve certamente será possível monitorar o que pensa, diz e faz cada torcedor.

A imolação pública de seres humanos, da mesma forma que se queimavam ou garroteavam hereges sem julgamento pela inquisição medieval, passou a fazer parte do dia a dia. Casos aparentemente sem conexão, mas que deixam a sensação de que a Humanidade na era da tecnologia paradoxalmente retorna em comportamento para a Idade Média.

A intolerância se expressa no dia a dia. No patrulhamento pela internet. Na vigilância pelas câmeras espalhadas por todo lado. No comportamento no trânsito. Nas crianças, que não se suportam, sem conseguir dividir os espaços. Até na relação entre irmãos e no casamento de pais separados, onde o compromisso nunca parece acima dos interesses dos filhos de cada parceiro ou de seus interesses individuais.

O Século XXI vai se delineando como uma combinação de Orwell e Kafka.

Como deter o barbarismo, último estágio da intolerância, esse veneno que contamina a sociedade e toma as relações sociais e de poder na sua microfísica, até chegar à violência coletiva e extremada?

Primeiro é preciso entender as causas e que as respostas não são as tradicionais. É tarde demais, ou urgente demais, para se esperar uma transformação em larga escala pela educação.

A potencialização da intolerância está diretamente ligada à era digital. Na mesma medida em que a tecnologia se desenvolveu, expondo a privacidade e o indivíduo ao seu grau máximo, o reacionarismo e a discriminação cresceram, uma reação exacerbada que se manifesta na violência cotidiana e na multiplicação de movimentos religiosos e reacionários.

O resultado é um mundo que avançou incrivelmente na tecnologia e na capacidade de comunicação, mas involuiu socialmente, na mesma e oposta dimensão. O meio virtual expõe também o que há de pior na sociedade. E faz isso estar presente num confronto diário e presente na vida de todos.

A igualdade, a liberdade de viver e de expressão, que deveriam crescer com a tecnologia da informação, são também a maior ameaça à igualdade e à liberdade como direitos humanos essenciais.

Na Internet, todos são livres; mas na realidade não há liberdade alguma, muito pelo contrário.
As forças que se reúnem no ambiente virtual, e podem vir à tona na vida real, da sua forma mais negra, mostram o novo conflito social: como controlar os agentes da sociedade que partem do ambiente virtual para se associar e criar poderes paralelos e ao mesmo tempo preservar a liberdade.

A intolerância e a violência formam um círculo vicioso, que se auto-alimenta. Criamos o mal com a mesma competência com que criamos o bem. Na era virtual, já se criaram as inquisições e as trevas. É preciso criar também um novo iluminismo. E fazê-lo prevalecer.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Rolim (o livro) está de volta


Há algum tempo, fui ver o Museu Asas de um Sonho, onde estão os aviões antigos colecionados por Rolim e João Amaro, e comprei lá os três últimos exemplares que havia da biografia que escrevi de Rolim, O Sonho Brasileiro. Há muito tempo o livro já se encontrava esgotado e a única versão disponível era uma contrafação pirata da obra, que causava algumas situações bizarras. Recentemente, por exemplo, um piloto do Paraná me enviou um email com um pedido; estava envergonhado de ter baixado o livro pirata e dizia ter gostado tanto dele que fazia questão de me pagar. E queria saber como.

Para todos aqueles que procuram pelo livro e não acham, ou que leram mas gostariam de tê-lo também na sua biblioteca digital, O Sonho Brasileiro está sendo relançado em e-book, disponível em todas as redes importantes, a começar pela Amazon, ao preço de 9,90 reais.

Revendo a obra, mais de dez anos após seu lançamento, e da morte de Rolim, a impressão que tenho é de que sua história já não funciona mais como um case de negócios ou de marketing - a maioria das coisas que Rolim fazia já não cabe na realidade de hoje, mesmo para a TAM, a companhia que fundou. Tudo parece pitoresco, arriscado, ousado demais para os dias de hoje. No entanto, a obra conserva um grande interesse, por dois motivos.

Primeiro, pela história aventuresca de Rolim, um tanto romãntica, ou picaresca, desde os tempos em que se aventurava em voos como piloto privado no desbravamento da Amazônia, um tempo pioneiro como não haverá outro mais.

O segundo motivo pelo qual o livro continua importante é o retrato de uma época em que os empresários ainda lutavam pela liberdade de fazer, de empreender, de buscar o melhor para as empresas, os clientes e a economia. Um tempo fechado pela ditadura militar, que criava reservas de mercado e entraves que faziam a economia brasileira ser comparável em atraso à da soviética. Rolim estava na linha de frente desse combate, e entender sua história é também entender a trajetória recente da economia brasileira.

Pra quem quiser conferir, o link na Amazon:

http://www.amazon.com/Sonho-Brasileiro-Portuguese-Thales-Guaracy-ebook/dp/B00NBXKY36/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1410194168&sr=8-1&keywords=thales+guaracy+sonho+brasileiro

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Lucy e o sentido da inteligência



Assisti Lucy, o filme de Luc Besson com Scarlett Johansson e Morgan Freeman, que acaba de entrar em cartaz no cinemas, e deve também sair em breve, como hoje em dia costuma acontecer. Um filme estranho, sob muitos aspectos; aquela velha e boa sensação de estranheza de que algo ali merece ser explorado, como acontece com grandes filmes de ficção cientifícia, como 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Kubrick, ou Solaris, de Andrei Tarkovski.

A primeira estranheza, na verdade, vem da combinação que deu origem à produção: um cineasta francês, a quem se entregou a tecnologia dos grandes estúdios americanos. O resultado é um Frankeinstein cinematográfico: ao mesmo tempo em que procura fazer um filme de ideias, ao estilo francês, Besson cede aos efeitos especiais e a velhos chavões do consumo de massa: o vilão implacável e sua gangue, a perseguição de carros e o policial honesto que se mete na história por acaso. Por trás disso, porém, há uma ideia melhor, mais profunda e interessante.

Sob o impacto de uma overdose involuntária de drogas que carrega em um saco costurado no ventre, Lucy vai atingindo progressivamente 100% do uso do seu cérebro; resultado de uma reação em cadeia da inteligência, equivalente a de uma bomba nuclear. Com ela, podemos nos fazer muitas perguntas; sobretudo, nos aproximamos do conceito de que não existe a morte. E que o verdadeiro sentido da inteligência é o da busca pela imortalidade.

Nos acostumamos a pensar que somos o nosso corpo; o filme de Besson nos lembra que o corpo não importa. Vivemos querendo ser a árvore, regá-la, apará-la, conservá-la por mais tempo que pudermos, mas ela nunca deixará de ser perecível. Lucy entende que a única forma de sobreviver é não ser árvore, é entrar para a natureza, que nunca morre. A evolução do ser humano é abandonar o corpo perecível para ser somente uma forma de inteligência.

Estranho? Pode ser, mas aí está um intrigante caminho, e quem sabe uma visão do futuro, baseada nas possibilidades humanas. Muitas vezes a ficção científica mostra soluções; a própria física começa como uma investigação filosófica, para depois ser demonstrada em fórmulas matemáticas. O filme escorrega nos americanismos, e às vezes alguma cenas parecem patéticas, como o encontro de Lucy com sua versão antropóide, primeiro espécime da desenvolver a inteligência que consideramos humana, ou sua subida pelas paredes, que mais lembra carrie, a Estranha. Porém, não há pasteurização capaz de derrubar o fato de que, ali, há algo interessante no ar, e cada um pode tirar disso suas próprias conclusões.