A mulher, morena, cabelos soltos, camiseta regata, shortinho
e chinelos de dedo, segura a carta entre as mãos – isso mesmo, uma anacrônica carta, papel
com uma mensagem riscada de Bic, que sai de seus dedos guardando ainda a memória da dobradura no
envelope. “Não vou mais fumar, porque desse jeito não terei saúde pra matar
mais gente”, ela lê, em voz alta, para duas outras mulheres que a rodeiam na
calçada. “Vocês viram aqui o que ele escreveu? Não terei saúde pra matar mais
gente.”
É meio da tarde, tempo abafado, e passo meio com pressa, meio
com vontade de parar e perguntar. Quem é o presidiário: será um filho, um irmão, um
marido, ou namorado? O que terá feito para estar preso, ou melhor, quantos
crimes cometeu, e quantos mais terá cometido depois, na prisão? As palavras
saem doces na voz feminina, mas eu as escuto dentro da cela fétida, de paredes
descascadas, perto da latrina barrenta. “Matar mais gente. Matar mais gente”,
reverberam as palavras. E o pensamento: até um assassino tem para quem escrever, até um assassino encontra compreensão, um assassino tem amor.
Faz alguns meses que estou na Barra Funda, como uma espécie
de rito de passagem entre o passado e o futuro, o desconhecido já visto e o desconhecido a ver. Caminho pelas calçadas onde
se espalham mesas de bar; numa esquina a caminho de casa, um grupo de
desocupados todos os dias joga baralho; dali controlam a calçada, o jogo e até
o trânsito: gritam com quem vem na contramão, dão informação, e me lembram os
personagens daquele filme espanhol com Barden, Segunda-feira ao Sol, sobre a
vida dos desempregados.
Barra Funda: galpões antigos, com portas de metal, onde ficam
restaurantes por quilo, oficinas mecânicas, pequenos negócios. À noite algumas
dessas portas se abrem, são casas noturnas que funcionam tarde da noite, onde vão
alguns clubbers e muitos bêbados da madrugada. As ruas mesmo durante o dia têm algo de abandono: as lojas de tatuagem, os entregadores
delivery de água, as mulheres suburbanas, opulentas e suadas,
na porta dos cabeleireiros.
Aqui já houve mais indústria, os migrantes do passado, que
deixaram os galpões fantasmagóricos e o costume de sentar fora. Nas ruas
ficaram os estudantes da Faculdade Oswaldo Cruz, a dona do bar
de comida mexicana com um cardápio de neon, os tatuadores e as tribos da
contracultura, que gostam do clima do lugar, o que de mais perto São Paulo poderia ter do Soho novaiorquino, que nunca terá. E, sobretudo, os homens de baixo clero, os barbados que perambulam
sem rumo, roupas puídas, catando lixo; o negro que ao me ver muda súbito de rumo, vem na minha direção, penso que vai pedir dinheiro, ou é um assalto, e não: "Na rua de cima você vai achar o templo", ele diz, "vá lá, Jesus salva, o Senhor te ajudará."
As ruas estão sempre cobertas de lixo; na redondeza da escola
pública, traficantes circulam sem serem incomodados. É um gueto, quase um campo
de concentração: o trem espreme a Barra Funda entre a linha férrea e o Minhocão.
Bate em meus ouvidos, repetitivo e rude; os guinchos durante a noite, rilhando na alma, os apitos
inopinados, longos e escandalosos silvos e o cheiro de metal
queimado, que impregna a roupa, as narinas, mas não parece vir de fora, e sim de dentro, do coração.
A quadra de futebol onde levo meu filho; o apartamento
pequeno, onde se amontoam móveis embrulhados em papel bolha, à espera do dia da
mudança: purgatório que não devia ter acontecido, abismo entre o passado e o futuro, parênteses no tempo, parado mais do
que deveria.
Na rua, todas as noites a moça ruiva leva o cachorro para
passear; tem cabelo curto de rapaz, que ressalta o queixo quadrado, o rosto bem feito, o corpo torneado sob a roupa preta de ginástica; leva sempre o cachorrinho peludo na coleira; ela me cumprimenta, quando me vê passar. Sigo em frente, sem pensar; sou um estranho, ou sempre fui; estou aqui de passagem, como sempre tenho estado; isso, como tudo, vai ficar para trás, mais uma possibilidade que não aconteceu: a minha será
uma Barra Funda sem lembranças, apagadas junto com tudo aquilo que não posso mais.
Aqui todos são solteiros ou têm crianças pequenas, fazem
esteira no salão de ginástica, esperam também o fim do intervalo, ou o
momento de pegar o trem e ir para longe dali. Imagino que muitos ficarão à espera por toda
a vida, olhando tudo passar: deserto dos tártaros urbano, que me faz olhar o
relógio, contar as horas, minutos, os cabelos enbranquecendo no espelho, como se a vida se esgotasse a cada instante.
Subo pela rua, e a ideia de ir embora me faz sorrir
levemente. O sol bate forte na cara; enfim faz verão sem chuva, e eu me
encho de energia; na Barra Funda fiquei seis quilos mais leve, e caminho na calçada na
ponta dos pés. Quando baixo os olhos do céu, vejo uma menina, que deve ter dez,
onze anos, não mais; encontro, no ar, seus olhos de mel. Tem cabelos longos, pele
mourisca, senta numa mesa na calçada em frente de casa com a mãe e os irmãos; experimenta aquele alumbramento de
quem viu um homem em estado de graça; os olhos dela me acompanham quando eu
passo, e eu sei que ela se lembrará de mim para sempre, o moço da rua, que ela
viu sorrir sozinho, distante e distraído, e isso, um instante, mexeu alguma coisa dentro dela.
Eu ainda posso
fazer isso, penso: posso causar isso em alguém e posso fazer muitas outras coisas. Sobretudo, posso novamente
ser eu, o mágico que reconstrói a vida, que inventa tudo de novo, que faz palpitar o coração; eu sigo sendo eu, a recomeçar.