quarta-feira, 5 de setembro de 2012
Prêmio Benvirá: como se tornar um escritor de verdade
Raphael Montes é um moleque de sorte.
Há dois anos, quando abrimos o primeiro Prêmio Benvirá de Literatura, e recebemos 1932 inscrições, achamos um texto que chamava a atenção por duas razões. A primeira: era um livro policial denso, consistente, que mergulhava no universo da juventude carioca, do tipo que entretém e faz pensar, uma combinação excelente para uma obra de ficção. Selecionado entre os dez finalistas, recebeu elogios de todos os jurados, especialmente do crítico e jornalista Nelson de Oliveira. "Normalmente não gosto muito de policial, ainda mais para prêmio", disse ele, na época. "Mas gostei muito deste - eu o consideraria."
A segunda coisa que chamou a atenção foi a quilometragem do autor: Raphael, que mentia a idade, tinha apenas 19 anos. Começara a escrever Suicidas três anos antes, com somente 16.
Suicidas não ganhou, e Raphael achou que estava fora do baralho. Entregou os originais para uma pequena editora. Tinha já um contrato assinado. Quando recebeu um telefonema meu, interessado em publicar o livro pela Saraiva, selo Benvirá, mudou de ideia na hora. Conversou com o editor, desfez o contrato. "Ele entendeu", me contou, depois.
Por alguns meses, enquanto preparávamos os originais de Suicidas, eu costumava brincar na Editora que ele se tornara o autor não publicado mais famoso do Brasil. Estudante de Direito, a um semestre de completar o curso, no Facebook e aonde ia, Raphael se autointitulava "escritor". E se enfiava em cursos, seminários, até na imprensa. Foi entrevistado como "autor" pelo jornal O Globo, durante a Bienal do Rio. Foi convidado para dividir mesa de debates literários com autores de renome, já publicados por grandes editoras. Um prodígio da vontade.
Raphael deu sorte, mas também porque estava em todo lugar. Há dois anos, apareceu na minha frente em Paraty, durante a Flip, e se apresentou. Rapaz simpático, falante, acabou entrando para o grupo que estava lá reunido - os autores da Benvirá, Luis Felipe Pondé, o mexicano Enrique Krauze, a romancista argentina Pola Oloixarac, a "musa' do evento. Conviveu com os autores na intimidade, nos jantares que promovemos na casa de Benoir Gautier, um amigo querido, e conheceu por dentro o clima dos grandes eventos literários. Me pediu um conselho. E eu dei: "Forme-se e não largue seu emprego - por enquanto".
Lógico que a primeira coisa que Raphael fez, ao se ver um autor prestes a ser publicado, foi contrariar meu primeiro e único conselho: largou o emprego (na verdade, um estágio de Direito), com o pretexto de ir de novo à Flip, este ano. Talentoso, ousado, a ponto de ser meio abusado, lá estava ele de novo, no meio da massa de Paraty, com suas bermudas balançando ao redor dos cambitos de garoto. Teimoso, o "escritor".
No Rio de Janeiro, quando lancei um livro do hoje ministro da Defesa, Celso Amorim (Conversas com jovens diplomatas"), quem estava lá, na sessão de autógrafos? Raphael Montes. Queria ver o lançamento de perto, sentir, cheirar, estar com as pessoas que faziam tudo acontecer. E a conversa boa atravessou um jantar e foi parar alta madrugada na casa de seus pais, em Copacabana, onde ele nos apresentou a coleção completa das obras de Conan Doyle que é o orgulho da biblioteca em seu quarto. Depois foi abrir a adega de cachaças do pai - um colecionador do destilado, que felizmente dormia.
Raphael Montes não deixou de ser garoto. Enquanto Suicidas entrava na gráfica, ele estava na Disneylândia, fazendo poses ao lado do Mickey e do castelo da Cinderela, postados no Facebook. Ontem, em uma Saraiva do Rio de Janeiro, foi sua vez de estar sentado à mesa autografando seu romance. Estavam lá amigos, professores desde o jardim da infância, membros do Clube da Cachaça, colegas do karaokê, mestres de Direito e uma porção de gente que comprou o livro e, para sua surpresa, ele nem conhecia.
Ontem, afinal, Raphael Montes se tornou um escritor de verdade. Disse ele no Facebook que foi a melhor noite de sua vida. Espero que tenha muito disso pela frente. E que não largue seu novo emprego. Ainda.
quarta-feira, 29 de agosto de 2012
Prêmio Benvirá: por que existe, por que participar
Quando assumi a direção da área de Ficção e Não Ficção da Editora Saraiva, há cerca de 3 anos, lancei na companhia a ideia de desenvolver um prêmio literário, que recebeu apoio entusiasmado de toda a equipe editorial, de vendas e marketing, além do presidente da companhia, José Luiz Próspero. E eram muitas as razões para isto, além de conquistar novos autores para o novo selo Benvirá, criado com a finalidade de lançar livros da Editora Saraiva em todo o mercado.
Claro que o Prêmio, em primeiro lugar, teve a finalidade de divulgar o selo Benvirá, mas havia, e ainda há, muito mais. Um dos seus objetivos é criar um canal para o novo e profissionalizar cada vez mais o mercado brasileiro de livros, como acontece em outros países, como a Espanha, em que várias editoras possuem seus próprios prêmios de incentivo ao surgimento de novos autores, como a Alfaguara e a Bruguera.
Em prêmios como o Benvirá, não é somente o vencedor que sai ganhando (em nosso caso, 30 mil reais, mais toda a promoção do livro, por conta da divulgação do resultado). Na primeira edição, contamos com outros quatro autores que chamaram a atenção e já tiveram suas obras publicadas. Um quinto ainda tem seu livro por ser lançado.
É um prazer encontrar novidades por aí - e o prêmio nos permitiu fazer boas descobertas. Primeiro, que o modelo de enviar originais em papel está superado. Creio que esse é o principal fator para fazer com que nosso prêmio tenha sido recordista em inscrições (1.932 originais, em sua primeira edição), enquanto outros prêmios, como o da Leya, não ultrapassaram 800 concorrentes. Foi gente de todo o Brasil, graças ao acesso democratizado e simples que a tecnologia permite.
A segunda e mais importante descoberta é que existe uma geração de novos bons autores, criados no ambiente cibernético. Entre os inscritos no primeiro prêmio, estavam diversos autores já publicados, e por editoras importantes. Porém, os jovens ganharam a preferência, não apenas entre os dez finalistas, como entre as obras que procuramos para publicação, posteriormente ao anúncio do vencedor. Não por uma política editorial que apontasse nesse sentido, e sim, simplesmente, porque os originais eram de melhor qualidade.
Acredito que esse fenômeno tem sido estimulado pela internet, um ambiente que tornou a escrita mais importante e presente no dia a dia, do e-mail aos blogs e sites literários. A proliferação de fanbooks, clubes de autopublicação e comunidades que seguem concursos literários ou comentam livros, como o Skoob, são um grande avanço para a consolidação de um amplo e livre espaço para a criação literária.
Os prêmios literários têm sucesso ainda antes de divulgado o seu resultado. Para concorrer ao prêmio, muita gente começa a escrever, ou aprimora seus originais, mergulhando no campo da criação e das ideias. O Prêmio Benvirá, dessa forma, funciona como um estimulador da criação e da cultura brasileira.
Com isso, creio que a Editora Saraiva, que possui 2.700 autores brasileiros, de onde vem 95% de seu catálogo, dá mais uma grande contribuição à produção cultural nacional. E é um prazer poder colaborar, pois ninguém está no negócio do livro apenas por compromissos de trabalho - nunca se perde de vista o principal, que é o ideal de fazer um Brasil melhor por meio da Educação.
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
Prêmio Benvirá: gêneros, tamanho do texto e outras questões
Mais questões têm surgido a respeito do Prêmio, aí vão as respostas que atendem à maioria delas.
Gênero
O prêmio Benvirá de Literatura aceita qualquer forma de texto ficcional, isto é, romance, conto ou poesia. Isso inclui romance histórico, que também é ficção.
Tamanho
Não existe um tamanho minimo ou máximo. Para ter chance real de ganhar o prêmio, porém, é preciso enviar material suficiente para dar um livro. Não adianta apenas 1 conto ou um poema. Na primeira edição, em 2010, dos 1.932 originais inscritos, somente uma dezena eram textos pequenos ou insuficientes para um livro, sinal de que a imensa maioria dos concorrentes entendeu bem a proposta, que visa a publicação em livro da obra do autor premiado.
Quem já concorreu pode concorrer de novo?
Claro. Quem já concorreu na edição anterior pode ter melhorado a obra, ou escrito uma nova. Demos o prazo de dois anos entre uma premiação e outra justamente para permitir esse tempo de produção. Conforme o regulamento, só não podem concorrer funcionários da Saraiva Livreiros Editores SA e autores já publicados pela própria Editora. O que inclui aqueles que já tiveram seus livros publicados por meio da primeira edição do Prêmio Benvirá.
Quem tiver seu livro publicado poderá continuar publicando outras obras pelo selo Benvirá?
A proposta do selo Benvirá é desenvolver a carreira dos autores, lhes dando uma oportunidade de entrar no mercado profissional do livro. Para isso, é importante que o autor siga escrevendo. Os autores já publicados foram convidados a fazer uma segunda obra para dar continuidade à carreira. Lívia Brazil, cujo primeiro romance (Queria Tanto) foi muito bem nas livrarias, já entregou os originais de um segundo romance, que deve ser publicado ano que vem. Os outros, estamos aguardando. Escrever um bom livro em geral demora.
Como é o contrato de publicação do livro?
É um contrato de direitos autorais como qualquer outro contrato de autores publicados pela Editora Saraiva. Depois de anunciado oficialmente o vencedor, os autores dos outros originais que interessaram aos editores serão procurados, por meio dos dados obtidos no cadastro.
A editora influi na decisão dos jurados?
Não. Eles são livres para escolher a que acharem ter mais qualidade, sem necessariamente se preocupar com questões de mercado (o que vende mais, de acordo com o interesse do público no momento). A decisão é tomada numa reunião de portas fechadas da qual nós, editores, não participamos. Porém, temos a liberdade de também editar outras obras, especialmente entre os finalistas, que são selecionados por nós, que acreditamos ter potencial de vendas ou alta qualidade. Estes não recebem prêmio, mas entram para o nosso catálogo de autores - o que já é muito bom.
Não deixem de ler o regulamento, no site do selo Benvirá, da Editora Saraiva: www.benvira.com.br.
quarta-feira, 22 de agosto de 2012
Prêmio Benvirá: o que é importante saber
Como editor de Ficção e Não Ficção da Editora Saraiva, e responsável pelo selo Benvirá, tenho recebido as dúvidas de interessados em participar do segundo Prêmio Benvirá de Literatura, que dará 30 mil reais ao vencedor. Vou manter aqui um canal aberto para aqueles que quiserem mais esclarecimentos, de modo a responder às perguntas mais frequentes.
Preciso escrever a sinopse?
As inscrições só podem ser realizadas pelo site www.benvira.com.br, mediante um breve cadastramento. Nesse cadastramento, é pedida uma sinopse do livro, sem a qual o original não é enviado. Sei que às vezes descrever em meia dúzia de linhas o que nos tomou tanto suor e sacrifício pode ser difícil ou incômodo, mas essa é uma etapa importante do processo de análise. Na primeira edição do Prêmio, recebemos 1.932 originais, o que torna impossível ler tudo até o final. Cada original é examinado, porém a sinopse é importante para que se tenha uma ideia geral do propósito da obra e influi na decisão.
O que é melhor? Mandar o texto agora ou no final?
Na primeira edição, dos 1932 originais enviados, cerca de 600 chegaram no último dia. Boa parte, na última hora, quase à meia noite. É compreensível que os autores queiram burilar o texto até a exaustão, mas enviar os originais antes tem suas vantagens. Como a carga de originais é menor no começo, as pessoas envolvidas no processo de seleção têm mais tempo para análise.
Como é o processo de seleção?
Os originais enviados para o Prêmio Benvirá passam por um exame da equipe de editores do selo Benvirá, os mesmos profissionais que editam os livros de Ficção e Não Ficção da Saraiva. Na primeira edição, dos 1932 textos enviados, 130 foram escolhidos na primeira análise. Houve uma segunda peneirada, ainda mais criteriosa, que deixou na disputa somente 30 originais. Três editores fizeram então sua lista de preferências e, a partir das coincidências nas listas, foram selecionados os 10 finalistas. Estes foram passados à comissão julgadora, que leu os dez originais na íntegra para chegar à decisão final, que tem de ser consensual.
Como o livro será publicado?
No anúncio do vencedor, é feito também um contrato para a edição do livro, nos termos normais de um contrato de publicação. A Editora Saraiva paga ao autor 10% dos direitos autorais sobre o preço de capa de cada exemplar vendido. O dinheiro do prêmio não é descontado dos direitos autorais.
Incide imposto de renda sobre o valor do prêmio?
Sim.
Além do vencedor, outros originais podem ser publicados?
Sim. Na primeira edição do Prêmio, entre os originais enviados, além do vencedor (Nihonjin, de Oscar Nakasato), foram publicados A Casa Iluminada (de Alessandro Thomé, cujos direitos também já foram vendidos ao cinema), Suicidas (de Raphael Montes, um estudante de 20 anos, recém publicado), Queria Tanto (Livia Brazil, que já terá seu segundo romance publicado no ano que vem) e Diante do Abismo (de Benedito Costa Neto).
Quem faz parte da comissão julgadora?
Ela será anunciada em breve, no site da Benvirá, e por meio da imprensa. Oportunamente falarei dela aqui.
Fiquem à vontade para enviar perguntas por aqui ou no canal de dúvidas na Benvirá, em www.benvira.com.br. E boa sorte.
Preciso escrever a sinopse?
As inscrições só podem ser realizadas pelo site www.benvira.com.br, mediante um breve cadastramento. Nesse cadastramento, é pedida uma sinopse do livro, sem a qual o original não é enviado. Sei que às vezes descrever em meia dúzia de linhas o que nos tomou tanto suor e sacrifício pode ser difícil ou incômodo, mas essa é uma etapa importante do processo de análise. Na primeira edição do Prêmio, recebemos 1.932 originais, o que torna impossível ler tudo até o final. Cada original é examinado, porém a sinopse é importante para que se tenha uma ideia geral do propósito da obra e influi na decisão.
O que é melhor? Mandar o texto agora ou no final?
Na primeira edição, dos 1932 originais enviados, cerca de 600 chegaram no último dia. Boa parte, na última hora, quase à meia noite. É compreensível que os autores queiram burilar o texto até a exaustão, mas enviar os originais antes tem suas vantagens. Como a carga de originais é menor no começo, as pessoas envolvidas no processo de seleção têm mais tempo para análise.
Como é o processo de seleção?
Os originais enviados para o Prêmio Benvirá passam por um exame da equipe de editores do selo Benvirá, os mesmos profissionais que editam os livros de Ficção e Não Ficção da Saraiva. Na primeira edição, dos 1932 textos enviados, 130 foram escolhidos na primeira análise. Houve uma segunda peneirada, ainda mais criteriosa, que deixou na disputa somente 30 originais. Três editores fizeram então sua lista de preferências e, a partir das coincidências nas listas, foram selecionados os 10 finalistas. Estes foram passados à comissão julgadora, que leu os dez originais na íntegra para chegar à decisão final, que tem de ser consensual.
Como o livro será publicado?
No anúncio do vencedor, é feito também um contrato para a edição do livro, nos termos normais de um contrato de publicação. A Editora Saraiva paga ao autor 10% dos direitos autorais sobre o preço de capa de cada exemplar vendido. O dinheiro do prêmio não é descontado dos direitos autorais.
Incide imposto de renda sobre o valor do prêmio?
Sim.
Além do vencedor, outros originais podem ser publicados?
Sim. Na primeira edição do Prêmio, entre os originais enviados, além do vencedor (Nihonjin, de Oscar Nakasato), foram publicados A Casa Iluminada (de Alessandro Thomé, cujos direitos também já foram vendidos ao cinema), Suicidas (de Raphael Montes, um estudante de 20 anos, recém publicado), Queria Tanto (Livia Brazil, que já terá seu segundo romance publicado no ano que vem) e Diante do Abismo (de Benedito Costa Neto).
Quem faz parte da comissão julgadora?
Ela será anunciada em breve, no site da Benvirá, e por meio da imprensa. Oportunamente falarei dela aqui.
Fiquem à vontade para enviar perguntas por aqui ou no canal de dúvidas na Benvirá, em www.benvira.com.br. E boa sorte.
sábado, 18 de agosto de 2012
Dos Passos sobrevive a tudo
John Roderigo dos Passos (1896-1970), um dos expoentes da chamada Geração Perdida da literatura americana, é um dos poucos seres humanos que foram enterrados duas vezes em vida.
Considerado por muitos críticos de hoje o maior escritor americano de sua geração, e uma geração que tinha Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, Dos Passos teve seus dias de estrela nos primeiros tempos de sua prolífica vida como autor.
Comunista que vivia insolentemente no maior país capitalista do planeta, conseguia reunir em seus livros a crítica social e análise do seu tempo com uma linguagem renovadora do romance, que incluía recortes de jornais e outros elementos da vida real para compor obras de ficção que, em última análise, refletiam a realidade.
Capa da revista Time, expoente do Partido, que o utilizava como garoto propaganda da inteligência comunista, Dos Passos caiu em desgraça duas vezes pela mesma postura política.
A primeira vez, quando brigou com o stalinismo, rompimento que se deu durante a Guerra Civil Espanhola, que ele cobriu como repórter. Lá, percebeu que o comunismo real estava longe da cartilha dos idealistas, o que incluira fazer desaparecer, entre as atrocidades da guerra, o professor espanhol Jose Robles, seu amigo pessoal. Afastado do comunismo, que em seu lugar imediatamente entronizou Ernest Hemingway como seu novo ícone, Dos Passos teve as portas fechadas na cara pelos mesmos que antes o aclamavam. Comunista sem lugar no comunismo, foi também sepultado na sequência pelo macartismo, a onda anticomunista, conservadora e liberticida que contaminou os Estados Unidos durante décadas e jogou sua obra e história mais fundo ainda no ostracismo.
Rejeitado por gregos e troianos, como acontece com a grande literatura, ainda mais repleta de significado e importância para seu tempo, Dos Passos e sua obra não desapareceram. Ao contrário, seus livros se tornaram um marco para a literatura moderna. Com auxílio da forma, uma colagem de ficção com a história real, Dos Passos quebra estruturas narrativas convencionais e utiliza a linguagem coloquial para fazer da obra um caos mutante, vibrante e cheio de vida para refletir o caráter do tempo que retrata. Com isso, traz viva a a história americana e do próprio capitalismo.
Numa era em que caem as velhas barreiras, especialmente as do preconceito, seja de direita como de esquerda, a obra de Dos Passos continua importante e atual. As mesmas razões que o levaram a ser jogado para baixo do tapete pelos varredores dos bons ideais agora lhe dão mais brilho no panteão dos grandes autores. A história da imigração na América, o estudo do capitalismo americano por meio de seus personagens anônimos, que ganham vida no romance, constroem algumas das mais extraordinárias páginas da literatura de todos os tempos. Dos Passos, afinal,escapa às definições políticas.
Eu sempre fui um admirador de Dos Passos, pelo seu trabalho como jornalista e escritor, em que uma atividade complementa a outra. Sobretudo, admirei sua postura. Diferente de Hemingway, que com seu peculiar cinismo lhe sugerira que se calasse diante da morte de Robles, Dos Passos sustentou o essencial: preferiu não ceder aos apelos que lhe contrariavam os princípios para manter a fama e conquistar facilidades. Não deixou de ser fiel aos seus propósitos.
Dos Passos ficou de pé, com suas ideias e seus ideais, assim como sua obra. É um prazer agora, como editor, ter a possibilidade de publicar seus livros no Brasil. Os primeiros são Paralelo 42, 1919 e O Grande Capital, títulos esgotados no país há trinta anos. Eles formam a Trilogia USA, considerada uma das obras mais importantes já escritas sobre o fenômeno americano.
Breve deve chegar, também com o selo Benvirá, da Editora Saraiva, Manhattan Transfer, talvez a obra mais famosa de Dos Passos, inédita no Brasil, graças ao esforço de tradução de Ana Luisa Martins, em quase dois anos de trabalho.
A primeira vez, quando brigou com o stalinismo, rompimento que se deu durante a Guerra Civil Espanhola, que ele cobriu como repórter. Lá, percebeu que o comunismo real estava longe da cartilha dos idealistas, o que incluira fazer desaparecer, entre as atrocidades da guerra, o professor espanhol Jose Robles, seu amigo pessoal. Afastado do comunismo, que em seu lugar imediatamente entronizou Ernest Hemingway como seu novo ícone, Dos Passos teve as portas fechadas na cara pelos mesmos que antes o aclamavam. Comunista sem lugar no comunismo, foi também sepultado na sequência pelo macartismo, a onda anticomunista, conservadora e liberticida que contaminou os Estados Unidos durante décadas e jogou sua obra e história mais fundo ainda no ostracismo.
Rejeitado por gregos e troianos, como acontece com a grande literatura, ainda mais repleta de significado e importância para seu tempo, Dos Passos e sua obra não desapareceram. Ao contrário, seus livros se tornaram um marco para a literatura moderna. Com auxílio da forma, uma colagem de ficção com a história real, Dos Passos quebra estruturas narrativas convencionais e utiliza a linguagem coloquial para fazer da obra um caos mutante, vibrante e cheio de vida para refletir o caráter do tempo que retrata. Com isso, traz viva a a história americana e do próprio capitalismo.
Numa era em que caem as velhas barreiras, especialmente as do preconceito, seja de direita como de esquerda, a obra de Dos Passos continua importante e atual. As mesmas razões que o levaram a ser jogado para baixo do tapete pelos varredores dos bons ideais agora lhe dão mais brilho no panteão dos grandes autores. A história da imigração na América, o estudo do capitalismo americano por meio de seus personagens anônimos, que ganham vida no romance, constroem algumas das mais extraordinárias páginas da literatura de todos os tempos. Dos Passos, afinal,escapa às definições políticas.
Eu sempre fui um admirador de Dos Passos, pelo seu trabalho como jornalista e escritor, em que uma atividade complementa a outra. Sobretudo, admirei sua postura. Diferente de Hemingway, que com seu peculiar cinismo lhe sugerira que se calasse diante da morte de Robles, Dos Passos sustentou o essencial: preferiu não ceder aos apelos que lhe contrariavam os princípios para manter a fama e conquistar facilidades. Não deixou de ser fiel aos seus propósitos.
Dos Passos ficou de pé, com suas ideias e seus ideais, assim como sua obra. É um prazer agora, como editor, ter a possibilidade de publicar seus livros no Brasil. Os primeiros são Paralelo 42, 1919 e O Grande Capital, títulos esgotados no país há trinta anos. Eles formam a Trilogia USA, considerada uma das obras mais importantes já escritas sobre o fenômeno americano.
Breve deve chegar, também com o selo Benvirá, da Editora Saraiva, Manhattan Transfer, talvez a obra mais famosa de Dos Passos, inédita no Brasil, graças ao esforço de tradução de Ana Luisa Martins, em quase dois anos de trabalho.
Para vertê-lo ao português, Ana Luisa teve sobretudo que recriar os diálogos dos personagens que reproduzem, em inglês, o sotaque dos migrantes em Nova York, elemento significativo para o propósito da obra, retrato de um país e um mundo híbrido, ou em mutação.
E mais, vamos relançar ano que vem O Brasil em Movimento, reportagem escrita por Dos Passos após uma viagem ao país, em 1963. Nesse caso, uma revisão completa do texto, seguida de anotações de historiadores para complementar os esclarecer informações colhidas no calor do momento fazem desta uma edição também histórica.
Dos passos sobreviveu não apenas ao isolamento político, como sobreviveu á própria morte. Nenhum grande escritor se acaba. Cada vez que um livro é publicado, e encontra um leitor, o autor volta a conversar com alguém, influi e participa no mundo dos vivos, sua marca para sempre.
E mais, vamos relançar ano que vem O Brasil em Movimento, reportagem escrita por Dos Passos após uma viagem ao país, em 1963. Nesse caso, uma revisão completa do texto, seguida de anotações de historiadores para complementar os esclarecer informações colhidas no calor do momento fazem desta uma edição também histórica.
Dos passos sobreviveu não apenas ao isolamento político, como sobreviveu á própria morte. Nenhum grande escritor se acaba. Cada vez que um livro é publicado, e encontra um leitor, o autor volta a conversar com alguém, influi e participa no mundo dos vivos, sua marca para sempre.
Ter Dos Passos no Brasil é uma satisfação ainda maior por isso: manter à luz um grande romancista que nunca se vendeu em nome dos bons princípios e que conta a História para mostrar como se faz dela algo melhor.
terça-feira, 7 de agosto de 2012
Oito jovens e uma arma
Raphael Montes tem vinte anos, está no último semestre de Direito, mora em um apartamento confortável em Copacabana, que divide com os pais, no Rio de Janeiro, e a prateleira de livros em seu quarto, com a coleção completa das obras de Conan Doyle, revela qual é seu maior interesse. Desde os 17 anos, com diligência rara para alguém tão precoce, ele escreveu um romance que surpreende pelo número de páginas, pela qualidade, e por coisas que provavelmente nem mesmo ele ainda sabe.
Suicidas, que está sendo lançado agora pelo selo Benvirá, já nasceu com uma história surpreendente. Concorrente entre mais de 1.900 originais da primeira edição do Prêmio Benvirá de literatura, em 2010, já seria extraordinário chamar a atenção entre tantos originais. A idade do autor surprende ainda mais – e revela uma curiosa faceta dos tempos virtuais, em que os jovens escrevem bastante, cada vez mais cedo, e melhor. E, por fim, o livro tem uma admirável densidade. A pretexto de uma história de mistério, Raphael acaba revelando muito mais: como pensam, agem e vivem os adolescentes e jovens da geração do próprio autor.
O ponto de partida de Suicidas é palpitante: um grupo de jovens se reúne no porão de uma casa para se matar. Um ano depois, uma investigadora policial convoca as mães para colaborar com o esclarecimento da caso, a partir de um novo achado: o diário de um dos suicidas, com pretensão a escritor. A partir desse texto, as mães passam a discutir e compreender melhor não apenas a morte brutal de seus filhos, que vem à tona da forma mais crua e chocante, como descobrem o quão pouco os conheciam e os motivos que teriam levado suas “crianças” a uma roleta russa.
Trata-se de uma versão extrema do dilema comum à maioria dos pais, que buscam entender um pouco mais os filhos nessa fase da vida em que eles se desligam da família e se tornam mais independentes – para o bem e para o mal. Os pais não sabem tudo o que acontece com os filhos lá fora e em geral descobrem os problemas muito tarde – especialmente envolvimento com drogas e outras encrencas. Numa geração que parece sem objetivos, movida de um lado pelas facilidades proporcionadas pelos pais, de outro pela aflição diante de um mundo sem perspectivas além das virtuais, a proposta do suicídio coletivo repentinamente se torna verossímil – e alarmante.
Ao escrever Suicidas, Raphael Montes procurava construir um romance policial, que intriga pelo ponto de partida e pela surpresa final. Crime ou suicídio? Porém, ao desfiar a vida dos integrantes do pacto suicida, ele acaba por forjar um profundo e interessante retrato da alma de pais e filhos nestes tempos em que os adolescentes e jovens vivem sob identidades secretas na internet.
Raphael vai apresentando seus personagens e suas complexidades sem pressa. O fio condutor da trama, a revelação paulatina do diário do jovem Alê, faz com que a sociologia da juventude ganhe fôlego e interesse reais de um thriller. Cada um pode tirar do livro o que achar mais interessante: a diversão pura ou o maior entendimento de quem é essa geração à qual o autor pertence.
Abusado e ambicioso, Raphael mostra que sua presunção tem algum fundamento. Não tem vergonha de querer aparecer e já se autointitulava “escritor” no facebook antes mesmo de ter seu livro publicado. Agora, Raphael Montes é finalmente um autor profissional, com um livro publicado - e mais. É desses escritores que não se sabe se é mais autor, ou personagem dele mesmo.
sexta-feira, 3 de agosto de 2012
Luz sobre as sombras
Maior sucesso comercial americano de hoje, a trilogia Fifty Shades of Grey (Cinquenta Tons de Cinza, por conta de um trocadilho intraduzível no título, recém lançada no Brasil), já recebeu enorme atenção da imprensa como fenômeno literário. E é campeã de especulações sobre as causas de seu sucesso - mais de 10 milhões de exemplares vendidos em seis meses, sobretudo nos Estados Unidos. Sucessos sempre são mistificados. Nesse caso, devido ao seu conteúdo sexual, ainda mais.
Uma das teorias para o sucesso da trilogia, conforme a expressão cunhada pela imprensa inglesa (“pornô para mamães”), é de que ela oferece uma história libertadora para a mulher moderna, para quem a submissão sexual seria uma espécie de novo sonho de consumo, depois que ela ganhou poder, independência financeira e novas responsabilidades no mundo pós-feminista. Outra explicação para o alcance de Fifth Shades é a de que a pimenta fetichista daria um gostinho novo, mais liberado e de fantasia aos ingredientes que sempre agradaram o público feminino – a garota romântica apaixonada pelo rapaz lindo, rico e um tanto misterioso.
Um pouco de luz sobre as múltiplas sombras elimina rapidamente as mistificações. O primeiro mito sobre Fifty Shades é de que se trata de uma trilogia. Na verdade, os três livros são um só – ler qualquer deles de forma independente é insuficiente e não faz sentido. A divisão da obra numa suposta trilogia é uma solução esperta, criada no lançamento do e-book. Como o preço do livro virtual nos Estados Unidos é baixo, os editores o cortaram em três pedaços, para forçar o leitor a pagar por ele em três vezes. Cada livro sai no kindle a 9 dólares. Assim, o leitor gasta 27 dólares com Fifty Shades, preço de um livro impresso convencional.
Críticos já apontaram no livro “inverossimilhanças”, como a ideia de que a personagem principal ser virgem, aos 21 anos, não seria algo do Século XXI. Na verdade, a Anastassia de Fifty Shades segue uma antiga tradição do romance erótico, consagrada pelo Marquês de Sade, que teve seu próprio nome associado a certo tipo de perversão, em função de sua obra literária e de seu comportamento. Nas obras de Sade, que levavam o nome de suas heroínas, a personagem principal é sempre uma jovem inocente (e virgem) levada para uma iniciação no mundo de preferências sexuais de seu amor/algoz – e do autor, o que no caso de Sade eram a sodomia e a flagelação.
Ao final dos livros de Sade, personagens como Justine e Pauline deixam para trás a antiga inocência para conhecer um tipo de prazer que lhe faz descortinar dolorosamente aonde pode chegar o ser humano. São livros pulsantes de um misto de crueldade e lubricidade que chocam pelo que revelam dos subterrâneos mais inexplicáveis do ser humano. Perseguido e preso pelo teor de sua obra e seu comportamento, Sade foi um escritor polêmico em seu tempo e se tornou um clássico maldito. E.L. James não deixará nada para a história da literatura, exceto um exemplo de sucesso comercial que a tem feito ganhar um bom dinheiro enquanto cai no vazio o discurso moralista.
Não é o fetiche sadomasoquista a verdadeira fantasia de Fifty Shades. Para quem ler com cuidado a dedicatória do livro, fica claro que o sadomasoquismo é parte da vida da autora, que sugere possuir um relacionamento dessa ordem com o marido. Para ela, o ambiente desse tipo de fantasia é bastante real. A fantasia verdadeira do livro, e que lhe dá o gosto especial, é justamente o que ele tem de antigo, isto é, a fantasia feminina de sempre: o príncipe encantado rico, bonito e inalcançável, que Anastassia quer atrair para si, e nos seus próprios termos. O que faz da história um jogo fluido e envolvente.
Fifty Shades não é nenhuma obra prima, mas é uma leitura fácil e intrigante e nos leva a pensar um pouco sobre os relacionamentos. No livro, Anastassia luta para trazer o complicado milionário Grey para um relacionamento normal, e redimi-lo de um passado tortuoso ao qual ela associa sua dependência do fetiche sexual. No entanto, ao mesmo tempo em que ela o traz para o amor que o senso comum chamaria de normal, começa também a se sentir atraída pelos prazeres que no começo lhe causavam medo e repulsa. A autora não tem pressa em fazer essa passagem, na qual a Justine da era digital passou a ter a possibilidade de descortinar a beleza de um relacionamento em que prazeres e maltratos se confundem – de acordo com os novos tempos, de forma consensual.
A literatura erótica sempre existiu e encontrou no e-book a forma ideal de propagação para um velho conteúdo. Você pode ler Fifty Shades no ônibus ou no metrô sem que se desconfie qual é o objeto do seu interesse. Muita gente, inclusive no Brasil, um país onde o puritanismo é um inibidor da venda em massa desse tipo de obra, teria dificuldade de levar para casa um livro que tem na capa um par de algemas ou uma gravata com uma função igualmente sugestiva. Existem algumas coisas que nem mesmo o mundo contemporâneo mudou e que jamais vão mudar – incluindo as opções que as pessoas só fazem à vontade num ambiente privado.
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