Em dezembro de 2009, fui conhecer a então nova Livraria da Vila do Shopping Cidade Jardim, em São Paulo, e fiquei extasiado diante daquelas prateleiras cobertas de livros e, no centro, o auditório envidraçado que parecia flutuar entre as estantes, obra do arquiteto Isay Weinfeld.
– Ah! – exclamei, ao lado do proprietário da loja, Samuel Seibel. – Dá vontade até de escrever um livro aqui dentro!
Samuel olhou para mim, divertido, e provocou:
– Por quê não?
Surgiu então a ideia do “Escritor na Livraria”. Samuel reservou para mim uma mesa, ao lado do auditório, no amplo mezanino da loja; eu passaria ali um mês, numa espécie de reality show.
Escreveria um livro naquela mesa e meu computador estaria conectado a outra tela, voltada para o lado contrário. Assim, as pessoas que circulavam pela loja poderiam ver o que eu estava escrevendo: um livro sendo escrito em tempo real.
Escrever é por definição um trabalho solitário; gostei da ideia não apenas por fazer algo diferente, como pelo fato de que o processo de trabalho poderia contribuir para o romance que eu vinha justamente imaginando.
Na época, eu andava sob o efeito da leitura de Kafka, e de uma frase, que acreditava ter lido em algum lugar, talvez Kierkegaarde, segundo a qual a felicidade depende da incerteza. Claro, imagine se todo mundo soubesse como irá morrer: a condição para ser feliz é não saber.
Tinha de ser um livro curto, de impacto, um desafio para mim, autor de livros de fôlego; com aquela estranheza, simplicidade e força dos livros de Kafka.
O tema da incerteza ganharia força pelo método: eu permitiria que as pessoas pudessem ler e interferir durante o trabalho, de maneira que eu mesmo não saberia qual rumo a história tomaria.
Quando me instalei na livraria, eu sabia apenas duas coisas: o título, provisório (“Ensaio sobre a incerteza”), e a frase inicial (“Você quer mesmo saber?”). O título cairia ao longo do trabalho, mas a primeira frase persistiu.
Eu começava 11 horas da manhã e encerrava o trabalho por volta das 18:00, num expediente normal de trabalho, incluindo sábados. A pessoas passavam, primeiro, desconfiadas; aos poucos ganhavam coragem e vinham falar comigo, para entender o que estava acontecendo.
No final da tarde, o resultado do trabalho era publicado em um blog, pelo qual os clientes da loja poderiam continuar acompanhando diariamente o andamento da história.
Com o tempo, as pessoas começaram a participar e colaborar de verdade. Vinha, sentavam na minha frente, faziam perguntas, davam sugestões e contavam experiências próprias.
Assim, fiquei sabendo que o nome que eu havia escolhido para a cigana não podia ser o que estava lá no início; troquei-o para Rosa, que, conforme fiquei sabendo, é um nome cigano.
Surgiram jornalistas para gravar entrevistas, fotografar e escrever sobre o evento; eles também liam o que eu escrevia, faziam a crítica e comentavam sobre o que mudava na história.
Lembro especialmente de uma mulher, que sentou à minha frente e contou longamente sua história. Tinha nascido numa cidade ribeirinha do Amazonas, uma vila de pescadores, distante da civilização. Certa vez, quando tinha nove aos de idade, ciganos passaram por ali; uma cigana velha a tinha visto, lera sua mão e dissera que ela ainda seria muito rica e viveria na capital.
Para quem habitava as barrancas do rio, na beira da floresta, aquilo parecia absurdo. Na adolescência, porém, ela visitou Manaus para realizar um sonho de criança: conhecer o teatro Amazonas. Lá, encantou um rico médico carioca com quem rapidamente se casou; foi morar no Rio, teve filhos e há quarenta anos eles formavam uma família feliz. “Eu acredito em ciganas”, ela me disse, antes de ir embora.
O curso da obra ganhou outra interferência importante, que mudou o rumo da história. Naquela época, o noticiário começava a repercutir as denúncias sobre o médico Roger Abdelmassih, dono de uma célebre clínica de fertilização em São Paulo, acusado de violar suas pacientes.
O assunto ficou por dias nas conversas dentro da livraria. Um médico inspirado em Abdelmassih (o doutor Perez, ou o “Monstro”, como as vítimas de Abdelmassih o chamavam) foi incorporado à história. O dr. Jekyll da época deu um novo elemento ao romance.
No mês que passei na livraria, conheci seus funcionários, que gostavam muito do que faziam; era bom conversar com eles sobre música, livros e arte em geral; passeei pelo shopping de carrinho de golfe com Papai Noel, de quem me tornei amigo. Vi Paolla Oliveira pelada, sozinho na sala de cinema, numa tarde em que uma tempestade de verão apagou a luz do bairro e não pude trabalhar – o Cidade Jardim tinha gerador e, além dos elevadores, o cinema era a única coisa que funcionava.
Encerrei o trabalho no dia 24, véspera de Natal, como planejara, deixando o livro incompleto – para escrever em casa o trecho final, que as pessoas só poderiam ler quando fosse publicado.
Eu estava satisfeito. E cansado: não é fácil obter a concentração necessária para escrever, com gente em volta interrompendo a toda hora, embora eu, como jornalista treinado a escrever em redações com mais de uma centena de pessoas, e romancista trabalhando em casa com filho pequeno, soubesse lidar com a perturbação razoavelmente bem.
O evento foi um sucesso: promoveu a nova loja e cheguei a ser convidado para repetir a proeza numa livraria em Lisboa, a convite do Sapo – o maior portal da internet em Portugal, que queria transmitir a redação do livro em tempo real com uma câmera “24 horas”. Agradeci, mas recusei: repetir o feito, ainda mais longe da família, por trinta dias, seria demais.
Como as surpresas do destino do qual trata, A Linha da Vida ficou parado no estágio em que encerrei o trabalho na livraria, por um longo tempo. Em novembro de 2009, quase ao mesmo tempo em que começava o meu reality show literário, recebi um convite para ser diretor editorial da Saraiva, então a maior rede de livrarias e uma das maiores editoras do Brasil.
Em janeiro, ao assumir o cargo, com a responsabilidade de desenvolver as publicações de ficção e não ficção da editora, me considerei impedido de publicar o romance: como editor não queria publicar meus próprios livros, porque pareceria conflito de interesses, ou causaria estranheza nos autores de quem eu deveria cuidar em primeiro lugar; em outras editoras, passava a ser considerado concorrente.
O livro permaneceu dormindo. Passou para trás na minha lista de prioridades, mais tarde, quando voltei à vida de autor, concentrado em novos projetos. A Vila acabou fechando sua maravilhosa loja no shopping, talvez por ser tão maravilhosa que fugia um pouco à realidade comercial, sobretudo nestes novos tempos.
Só agora, numa janela entre trabalhos, resolvi revisitar o texto e concluí-lo. Dei-lhe um final, até agora inédito. E decidi publicá-lo como e-book, de acordo com sua história, precursora dos atuais livros virtuais.
O texto se manteve fiel aos propósitos originais: o tema, o tamanho, a busca pelo impacto. Mudou um pouco, contudo, sua direção; criado ao sabor dos acontecimentos, ganhou mais foco quando percebi, afinal, por quê havia me interessado pelo tema e pela história.
Está concluído A Linha da Vida, um breve romance com uma longa história: resta agradecer a todos os que com ele colaboraram, incluindo o Destino.
Juncal, agosto de 2019
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