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terça-feira, 30 de junho de 2009

O coelho cor de rosa


O amor que damos não é o amor que os outros recebem

Hoje Guinho estava queixoso no café da manhã. Fazendo biquinho, no colo da mãe, reclamava:
- O meu coelho cor de rosa fugiu!

Guinho tem dois anos e meio. Estava realmente sentido, com aqueles olhos meiguinhos e voz chorosa. A mãe observou:

- Mas, filho, você não tem nenhum coelho cor de rosa!
- Tenho, sim! – reclamou ele, fazendo bico. – Ele estava sentado aqui na cadeira da cozinha. Eu fui ablaçar ele... E ele fugiu de mim!

Maíde, a babá, percebeu que ele havia tido um sonho. Crianças de dois anos e meio sonham. Coisas que para ela têm algum significado. Mais do que isso, coisas que para elas também são reais. Para Guinho, sonho não tem diferença de lembrança. Para ele, o sonho realmente aconteceu.

Talvez Guinho, que vive num mundo meio de sonho, tenha transferido para sua vida no sono algo que também acontece com ele durante o dia. Os cachorros, por exemplo, que ele adora, fogem dele como o diabo da cruz. Um bom exemplo é o Aramis.
Na casa de minha irmã, onde vive o cachorro que foi de minha mãe, Guinho e o priminho Theo vivem atrás o bichinho, um cocker spaniel sossegadão, que vive arrastando as orelhas. Querem abraçá-lo, beijá-lo, enchê-lo da carinhos. Mas isso significa também pular em cima dele, puxar-lhe o rabo, com uma insistência tão massacrante que Aramis, prevenido, trata de fugir deles quando se aproximam.

Guinho quer dar seu amor ao bichinho, mas é um amor sufocante. E não entende Aramis: se sua intenção é das melhores (carinho), por quê o bicho o rejeita, fugindo dessa maneira?
Cedo Guinho descobriu algo de que muitos de nós nem mais tarde fazemos conta: o amor que damos não é o amor que os outros recebem. Por vezes, empregamos os nossos melhores esforços, e de maneira sincera. Acreditamos amar muito. Porém, esse amor muitas vezes não supre as necessidades dos outros. O que fazemos não é o que os outros precisam. Pior, há amores que incomodam, invadem, machucam. Fazem com que os outros se afastem de nós.
Todo ser amado tem seus momentos de coelho cor de rosa. E todo aquele que ama tem momentos como o de Guinho, porque, como em seu sonho, de alguma forma se sente rejeitado no amor, sobretudo quando o ente querido se afasta. O amado se sente incompreeendido, e quem ama também. Quando o coelho cor de rosa foge, nos sentimos duas vezes mais tristes: pela incompreensão e pelo abandono.

O amor é o sentimento essencial do ser humano, porque é o que nos dá segurança desde a infância e faz com que enfrentemos o mundo. Crianças pequenas que temem a ausência dos pais ou sofrem com a falta de amor tendem a se tornar muito sensíveis. Ela amadurecem quando aprendem que os pais são pessoas diferenets e conseguem se sentir seguras mesmo quando elas estão longe ou não têm o seu amparo.

Com o tempo, substituímos a presença dos pais por uma rpesença simbólica, como se eles estivessem dentro de nós. Dependemos menos dos outros ao introjetarmos esse amor. É uma preparação necessária, não apenas para lidar com as frutrações da vida, sobretudo as amorosos, como a própria perda futura dos entes queridos. Eu, que perdi minha mãe há seis meses, gosto de pensar que de alguma forma ela está comigo; é um sentimento comfortador.
Existem crianças mais sensíveis, que não conseguem se livrar nunca desse sentimento de perda. Não conseguem proteger a si mesmas dos sentimentos de perda, rejeição, abandono. Cada vez que são rejeitadas pelo coelho rosa, sentem-se solitárias, vazias, abandonadas. No limite, transformam-se em adultos fronteiriços, com tendência para a depressão e até mesmo o suicídio.

Como os artistas em geral, romancistas são normalmente mais sensíveis. Aumentamos um pouco os sentimentos, ou estamos menos protegidos deles do que outras pessoas que lidam com a vida de maneira mais automática. Refletimos mais porque sentimos mais e tentamos investigar as origens do que nos afeta, porque nos afeta muito. Muitos romancistas fazem do próprio trabalho não apenas entretenimento para os outros, como uma maneira de lidar com seus próprios sentimentos.


Meu filho recebe amor, tem a presença da família e é muito bem resolvido. Mas não está imune à regra geral de que o amor que damos não é o que os outros recebem. O que escrevemos não é também exatamente aquilo que os outros lêem; o ponto de vista de cada um faz com que os outros reinterpretem nossas intenções, sentimentos e até mesmo nossas razões segundo sua própria perspectiva.


Intuitivamente, Guinho descobriu que, por mais esforço que façamos para nos aproximar dos outros, eles não nos verão como nós mesmos nos vemos, mas somente como o que representamos para eles. E, na medida em que nossas necessidades, desejos e vontades interferem na vida alheia, cada indivíduo ao nosso redor se reserva o direito de se proteger de nós de alguma forma – até mesmo do amor.


É essa a sensação da solidão inevitável que carregamos, uns melhor, outros nem tanto, ao longo de toda a vida.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

O jogo do contente


Por que a sinceridade nunca entra em moda

Demorei a descobrir o jogo do contente.


Demorei a descobrir, não. Na verdade, sempre relutei a aceitá-lo, entendê-lo ou usá-lo, e mesmo a respeitar quem o utiliza.


Para quem não sabe do que estou falando, fazer o jogo do contente é sempre dizer que está tudo ótimo, mesmo quando as coisas vão mal. Contar vantagem, mesmo quando se está por baixo. Exibir um ótimo retrato da vida, mesmo quando a realidade não confere.


Quem consagrou a definição do “jogo do contente” foi a escritora americana Eleanor Hodman Porter, em seu romance Polyanna, lançado em 1912. Polyanna, por sinal, se tornou um adjetivo para todas aquelas pessoas que fingem que estão sempre bem. Sobretudo quando as coisas não são bem assim.



O jogo do contente serve para todo tipo de situação. A vida no trabalho. O casamento. A saúde. Não se trata de uma visão otimista do mundo, mas uma forma de jamais acusar os golpes. E, sobretudo, de manter o status quo, isto é, deixar as coisas como estão, por comodismo, conveniência, ou outros fatores que parecem mais importantes que os nossos sentimentos, a nossa vontade e a nossa própria felicidade.



O jogo do contente não é apenas uma maneira de enganar os outros. É também uma forma de enganarmos a nós mesmos. A vida é uma eterna convivência com problemas. Ele se propõe a nos ajudar a conviver melhor com os problemas que não podem ser resolvidos. E oferece uma saída mais fácil para poder desfrutar das coisas boas que muitas vezes estão misturadas à ruins.


Eu sempre fui a favor do realismo, da honestidade, da franqueza. Nunca procurei acobertar problemas e deixá-los para lá. Meu método sempre foi o de resolver o que estava ruim. Mesmo coisas pequenas. E, para resolver, não se pode perder o realismo. A clareza começa por não esconder os problemas de nós mesmos. Este é o primeiro passo para enfrentá-los. Para mim, a recusa do jogo do contente sempre foi motivo para enfrentamentos, crises e separações. Mesmo assim, nunca cedi.

Muita gente acredita que o jogo do contente é uma forma de maturidade. De aceitar o fato de que existem coisas que não podem ser resolvidas. Assim, a melhor maneira de enfrentá-las seria simplesmente acomodar as coisas. Fazer de conta que está tudo bem. O jogo do contente é uma forma de flexibilidade. Sem isto, o mundo certamente teria mais conflitos. Mas eu me pergunto se ele seria pior. Eu me pergunto se o jogo do contente é uma forma de maturidade, entendida como o final das ilusões, ou uma aceitação da nossa derrota.

Não podemos subestimar ninguém. As pessoas não deixam de enfrentar as dificuldades por fraqueza, mas muitas vezes pela compreensão de que há barreiras acima de suas forças. Elas precisam inventar uma realidade melhor si mesmas, de forma a aceitá-la. Sepultar as ilusões é muito difícil. É uma derrota para toda a vida. Nesse caso, o autoengano é a única maneira de felicidade. A realidade não muda, mas assim se pode aceitá-la melhor. É a felicidade possível.


Olhe ao seu redor e verá metade da Humanidade fingindo que está tudo bem, enquanto a outra finge que está acreditando. O jogo do contente está em toda parte. E assim se tece a teia da hipocrisia social. No fundo, porém, a nossa realidade não faz muita diferença para os outros. Por quê revelar problemas, mostrar as dificuldades, quando ninguém de fato pode ajudar? O jogo do contente resolve tudo. Os problemas continuam a não ser resolvidos. Mas mostramos para os outros uma face muito melhor.

Como o palhaço no circo, quem faz o jogo do contente exibe na face muitas vezes o riso depois de chorar no camarim. É difícil viver com as frustrações secretas; e eu me pergunto se aceitá-las e mantê-las só para nós é mesmo a maneira mais sábia de lidar com o que ela nos oferece ou o primeiro passo para a desistência da vida.

Cada um escolhe a resposta que preferir. E ela será válida. Hoje vejo que meu preconceito contra o jogo do contente sempre foi também uma certa falta de respeito. O jogo do contente para mim sempre foi falsidade, enganação, uma mistificação absurda da realidade, uma forma de deplorável de cinismo. Mas compreendo agora, tardiamente (como tudo), que é uma opção tão justificável quanto as outras.


Ainda sou a favor da honestidade, da franqueza, do enfrentamento direto de problemas. Mas reconheço o peso de estar sempre lutando contra o mundo. Reconheço que meu jeito levou a muitos confrontos não apenas incapazes de produzir soluções reais, como me fez perder muito do que havia de bom nos relacionamentos e no trabalho.

E mais: descobri como a busca pela verdade pode ser malvista. Porque quem faz o jogo do contente não gosta daqueles que vivem atrás da verdade. Eles não querem a verdade. Preferem quem faz o mesmo jogo. Dessa forma, não se sentem tão medíocres, ou derrotados. Sentem-se não infelizes, mas apenas iguais aos outros. Sentem-se simplesmente humanos.


É por isso que a sinceridade nunca entrou na moda. Os integrantes do jogo do contente são a quinta coluna da verdade. Em silêncio procuram desbaratá-la, assim como os “tolos” que insistem em trazê-la à tona. São aqueles chatos incapazes de entender que a derrota é inevitável. E que deveriam viver a vida de um jeito mais leve, em vez de ficar mexendo onde não se deve.

Ainda tenho dificuldade de fazer o jogo do contente, mas sou mais tolerante com ele. Pode ser a idade, ou a visão mais madura dos sonhos de juventude, aqueles que nos fazem acreditar que podemos tudo. Ou pode ser a aceitação também de algumas derrotas. Quem faz o jogo do contente já abandonou os sonhos; tenta fazer parecer melhor aquilo que sabe que nunca irá melhorar.


Eu sempre me recusei a desistir dos sonhos, de tentar uma vida melhor, de acreditar que a vida comporta todas as nossas realizações pessoais. Eu semprer achei que não se deve desistir jamais. Mas o espectro das derrotas sempre está lá, à nossa espreita, como a carpideira à espera do próximo enterro. Atrás dela, estão todos os rendidos que desejam ver também a nossa rendição. E os anjos de asas negras que vivem a nos lembrar como desistir é sempre mais fácil.

sábado, 13 de junho de 2009

Uma vida que não acaba



Fui assistir “Viver sem Tempos Mortos”, monólogo de Fernanda Montenegro, montado sobre textos de Simone de Beauvoir, expoente do existencialismo e ícone da revolução do comportamento dos anos 1960. Um espetáculo forte, graças à interpretação de Fernanda, com os cabelos presos, a roupa presbiteriana e as mãos torturadas que reproduzem muito bem o estilo da célebre filósofa francesa. Com a energia contida e sóbria de sua personagem, sentada numa cadeira negra num cenário negro, Fernanda tira qualquer distração e destaca o poder de suas palavras.

Fernanda nos faz lembrar as idéias de Simone, cujo conteúdo filosófico não invalida certa beleza poética e uma dureza pragmática. (“O homem não é nada, até fazer de si mesmo alguma coisa”). Por meio de Fernanda, vemos Simone narrar a própria vida, seus amores, seus dilemas e convicções. Há muito sobre seu relacionamento com Sartre, um amor para o qual foi atraída pela inteligência daquele pensador “baixinho e feio”, mas que exercia sobre ela magnetismo irresistível graças “às palavras”, com as quais preparava até mesmo o sexo, e algo para ela essencial: ele a tratava como igual.

Por trás da vida de Simone, há essa preocupação essenciale obsessiva. Inteligência brilhante, ela assustava os homens e julgava que jamais teria um relacionamento comum para os padrões da época, nos quais a mulher tinha de se submeter à vontade masculina. Adepta do amor livre, mesmo quando desfrutava de outros homens sentia-se à vontade apenas no relacionamento com Sartre, cuja mente era tão privilegiada que podia dispensar a competição.

Mesmo quando viviam um casamento “aberto”, ou mais tarde, quando deixaram de ter relações sexuais, eles mantiveram uma cumplicidade rara, que durou pelo tempo de suas vidas, importante a ponto de fazer Simone, na noite da morte de Sartre, dormir com seu cadáver, gangrenado e coberto de escaras. Estiveram, assim, juntos por uma última noite, no leito de morte de Sartre, antes que seu corpo fosse levado por uma multidão ao cemitério.

Simone se tornou mais conhecida por livros como o “Segundo Sexo”, obras que marcaram o feminismo e o período de emancipação da mulher, assim como pelo seu relacionamento com Sartre. Tal qual ele, que lutou na segunda grande guerra, foi ativista da resistência francesa e tinha uma influência política importante na França e mesmo fora dela, ela era uma intelectual de ação. Sua filosofia se caracterizava por ser mais que o simples pensamento: era uma afirmação de que as idéias só têm importância quando se transformam em prática – aí, têm capacidade de mudar o mundo.

Engajada na vida e na política, num tempo em que as mulheres apenas adquiriam o direito ao voto, Simone dizia que sua a emancipação política do “segundo sexo” não se dava apenas pela participação nas urnas, mas em todas as áreas da vida – no igual direito ao trabalho, à participação nos sindicatos e em todas as formas de vida social.

Simone fazia da filosofia a sua vida, intelectual de seu tempo, participativa e ao mesmo tempo sensível. Como Sartre, era uma ensaísta lúcida e ousada, mas utilizava também a literatura como meio de expressão para suas idéias filosóficas, o que melhorava ambas as coisas – a filosofia e a ficção.

Além de Os Mandarins, original pelo estilo – é na verdade um grande diálogo -, Simone deveria ser lembrada por outro romance que, a meu ver, é sua melhor obra. Pérola da ficção existencialista, ao lado de O Estrangeiro, de Camus, e A Idade da Razão, de Sartre, o romance Todos Os Homens São Mortais conta a história de uma moça que conhece, como hóspede no mesmo hotel onde se encontra, um homem imortal. Ali, ele lhe conta sua longa, aventuresca e intrigante história. Sequiosa de vida, a moça pede ao Imortal que ele ao menos se lembre dela para sempre – uma maneira de fazê-la também não morrer.

São tantos os anos e pessoas que com ele cruzaram em sua interminável existência, porém, que nem mesmo a lembrança é possível. Épocas, datas, nomes, tudo vai perdendo importância. Para o Imortal, a vida segue como uma sequência dolorosa de perdas de entes queridos, que ao longo do tempo vai se transformando numa sucessão tediosa de rostos, numa repetição das mesmas coisas. Em vez de um privilégio invejável por qualquer ser humano, a imortalidade se transforma numa verdadeira maldição.

Simone diz em Todos os Homens São Mortais que a morte dá sentido à vida. Não fosse finita, a vida se perderia. Com seu Imortal, ela ilustra com clareza não apenas a importância da morte, como o fato de que vida e morte são a mesma coisa: dois lados da mesma moeda. Vivemos com a morte, mas com a morte podemos também viver. E ao morrer, ato final, Simone também fez de sua vida e sua obra algo ainda vivo nos dias de hoje.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Pensar é perigoso


Reflexos na vida cotidiana desse hábito revolucionário


Quando eu levantava algumas dúvidas sobre a vida e questionava nosso relacionamento, minha primeira mulher olhava para mim, com seus olhos cinzentos, e dizia, com uma ponta de desdém: “Você pensa demais”.


Levei algum tempo para entender o que ela queria dizer. Só hoje percebo melhor o alcance e as consequências do fato de que minha vida é pensar. Pensar, mas não apenas pensar: pensar para a ação.

Por pensar demais, deixei para trás uma porção de simplificações – a começar pelas da minha ex-mulher. Hoje entendo que por trás da crítica ao intelectual, interpretado como um mero e inútil criador de caso, havia algo mais. Melhor do que eu, minha ex-mulher intuía algo bem concreto. Pensar é perigoso. No fundo, creio é que ela tinha medo disso.

Pensar é perigoso porque o indivíduo que pensa se abre a possibilidades. Analisa, compara, estuda mudanças, novos caminhos. E é mais perigoso ainda quando quem pensa levar a sério o resultado do seu pensamento, transformando idéias e sentimentos em atitudes muito práticas.


Quem pensa - e age em função dessa força inquietante - é uma perturbação para quem precisa de segurança, sobretudo aqueles que dependem ou estão ligados a nós de forma permanente, como supostamente deve ser o casamento. Pensar é um hábito revolucionário. É o princípio das revoluções, das políticas às mais pessoais.

Um romancista é um pensador, um indivíduo sempre nômade, que analisa e explora possibilidades. Na pele de seus personagens, fala coisas diferentes do que diria na vida normal, passa por outras experiências e testa suas consequências num empirismo imaginário.

Não se trata apenas de fantasia. A ficção é invenção, mas a emoção colocada nos personagens é real, assim como os problemas da vida que os envolvem. Como um ator que se transforma em assassino, estuprador, vigarista, ou travesti, o romancista vive diversas vidas e procura encontrar o que há dentro dele algo que torne verossímil a sua criação.

Essa experiência pode ser perturbadora, não apenas para quem cria, como para aqueles à sua volta. A maioria das pessoas não quer ver destruído o mundo organizado a duras penas no qual elas se sentem mais seguras, confortáveis e por vezes mais felizes. A idéia de que é melhor não saber para nao ter que mudar é um padrão de muita gente.

Para os mais conservadores, a sensação é de que nunca se conhece realmente o indivíduo que pensa. Porque quem pensa pode sempre mudar, quebrar regras, subverter os padrões. Não se sabe exatamente em que mundo ele está ou a que tipo de ação suas divagações podem levar. O pensador é uma encarnação de variáveis.

Pensar – isto é, admitir mudanças – não significa que faremos coisas contra o bom senso, que mudaremos mesmo, ou que estaremos em mudança permanente. Mas pensar, em si, é uma forma de trair, pela simples aceitação das alternativas.

Existe uma diferença entre pensar e fazer, ou pensar e ser. Não há nada melhor do que pensar e não mudar, o que seria uma escolha mais consciente pela estabilidade, mas a natureza do pensador assusta, assim como onde seu pensamento pode parar.

Um exemplo. Há pessoas que leram meus romances e já me disseram coisas do tipo: “Como você pôde pensar naquilo, é tão cruel!” Como se alguém capaz de pensar em uma situação onde a crueldade se manifesta de maneira chocante faça parte de quem a criou.

Romancistas tiram da realidade a maior parte das coisas que não conhecem, não sentem ou não lhe pertencem, como um empréstimo. Eles não são seus personagens, elementos construídos para fazer sentido em si mesmos. Porém, a partir do momento em que aquilo foi recriado dentro de um livro, passou também a pertencer ao seu criador. E a simples ligação da criatura com seu criador, o fato de um ter saído do outro, já é suficiente para assustar outras pessoas.

A mente inquisitiva não pode ser vista apenas como uma ameaça que carregamos ao entes queridos e pessoas próximas. A mudança é também o que nos faz melhorar, criar coisas boas e atrair para as pessoas de que gostamos algo melhor – inclusive de nós mesmos.

Por trás das boas mudanças do mundo, desde as revoluções libertárias aos grandes engenhos, há uma história do pensamento e de pensadores que utilizaram sua inquietação permanente para fazer o mundo melhor. Isso funciona também no microcosmo onde vivemos. Um pensador procura, antes de tudo, se tornar um ser humano melhor. E isso faz com que todos os que estão à sua volta, de uma forma ou outra, acabem por se beneficiar.


Quem não aceita o pensamento escamoteia o fato de que a vida é mutante. E, na tentativa conservadora ou amedrontada de congelar no tempo, renuncia à vida.