segunda-feira, 28 de junho de 2010

Nunca como antes


Copa o Mundo é também um marco da vida da gente e de uma época. Lembramos das Copas pelas quais passamos e vemos como o tempo muda, como mudamos nós. É como um passeio afetivo pelo baú da memória das épocas e das nossas épocas.

A primeira Copa de que me lembro é a 1970. Eu tinha seis anos de idade, morava no apartamento térreo de um prédio na Liberdade, onde nasci. No final da Rua dos Estudantes, na vizinhança dos inferninhos, já na Baixada do Glicério, como chamava minha mãe, com rancor, que enchia d' água no verão, pelo transbordamento do Tamanduateí. Foi o último ano em que moramos lá, num tempo em que os coreanos começavam a invadir o bairro.

Nunca haverá outra Copa como a de 1970. Uma das razões era o time do Brasil, de futebol bonito, com Pelé no seu auge - nunca haverá outro Pelé. Mas houve mais, foi a primeira Copa que todos (ou muita gente, porque não havia tantos aparelhos como hoje em dia) podiam assistir pela televisão.
A transmissão ao vivo com imagem foi para a época uma revolução. Uma Nação eletrizada como se estivesse no México. Motivada pela maior campanha de propaganda da história. "90 milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração!" dizia a música que ficou na cabeça e quem viveu esse tempo não esquece (meu Deus, hoje já somos quase 200 milhões).
Lembro do Brasil já estar ganhando, a TV preto e branco de encontro a uma parede nua, minha tia Malfisa entrar em casa com um bando de amigos com cornetas, bandeiras e copos de cerveja dançando nas mãos. O jogo nem havia terminado, mas o Brasil ganhava com facilidade, caminhava para fazer os 4 a 1 na Itália em contrataques rápidos e fatais, o jogo parecia já garantido, tanto que eles já comemoravam. Foram embora no mesmo repente com que chegaram, cantando e dançando, como um bloco de carnaval.

Fim do jogo, saímos para a rua, como todo mundo - eu, papai e mamãe. São Paulo estava em festa. Os carros buzinavam num engarrafamento monumental. Lembro de apanharmos meus primos Rogério e Regina de carro; ele tinha seis anos mais que eu e ela era adolescente. Regina queria subir no capô do veículo, quase parado no tráfego que avançava lentamente - e ninguém reclamava. Papai a princípio negou, Regina ficou amuada.

Nunca haverá outra Copa no Brasil como a de 1970. O que a história não registra é aquela alegria delirante, que extravasava tanta coisa. Um momento de liberdade num país de repressão; um amor nacionalista que tinha algo de redenção; um sopro de confiança, esperança e transgressão, ainda que movidas pela ilusão do esporte.

Seguimos com a massa de veículos pela 23 de Maio, em direção ao Ibirapuera; lá foi Regina, vencedora com apoio de mamãe, para o capô do fusquinha cor de café com leite; eu via os brasileiros com o corpo para fora das janelas dos carros, agitando as bandeiras verde-amarelas, e a longa avenida rumo ao parque era como um rio de felicidade fluindo onde antes havia só sofrimento e medo; por um instante o Brasil tinha licença para tudo, o país estava em festa e éramos todos irmãos.
Sim, nunca haverá outra Copa como a de 1970.

*

Da Copa de 1974, lembro de um dia de jogo Brasil e Alemanha Oriental, em que jogamos de azul marinho; eu morava então na casa Verde, num sobrado de vila, perto da escola pública que frequentava, o claudicante Benito Tolosa. Embora a escola fosse ruim, naquele dia de jogo, talvez apenas para mostrar um rigor que não tinha, a aula estava confirmada, bem na hora do jogo, para nosso desencanto. E lá fui eu, forçado e emburrado, para a aula.

Porém, aquilo que poderia ter sido mais um dia de Copa do Mundo do jogo que não vimos (e naquele tempo não havia videotape assim fácil, era só domingo à noite, e jogo ao vivo, passava num canal só) acabou se tornando memorável. Porque choveu; o dia já começara cinzento, ranzinza, choroso; choveu e choveu forte. Quando cheguei à escola, uma caminhada que eu fazia à pé, apenas duas quadras, as goteiras nas salas de aula fluíam como duchas. E a antes irredutível diretora não teve remédio senão mandar todo mundo de volta para casa.

Lembro da minha felicidade, com os livros pendurados às costas, amarrados por elástico largo, dessas faixas que se prendem à cintura; pensava no acaso, no destino benfazejo, na leniência divina, e me perguntava se dali em diante seria sempre assim: os momentos de liberdade e alegria seriam apenas nas férias, ou na ruína dos compromissos; talvez aquilo fosse crescer, fosse a própria a vida, ou o resto da vida.

Mas isso foi só um segundo, porque logo cheguei em casa, para espanto de minha mãe, e pude assistir à vitória magra do Brasil, extraída a ferro e fogo e suor e sangue, 1 a zero com gol de falta de Rivelino, furando a barreira com ajuda de Jairzinho, que cavara um buraco entre os jogadores adversários para a bola passar, atirando-se ao chão na hora H.

Mais do que o jogo, porém, a memória dessa Copa é aquela, da volta para casa, o momento de liberdade inesperada, de encher o pulmão com o ar da vitória rebelde. E de pensar que não sabia como seria o futuro, mas que aquele seria um dos momentos mais felizes da minha vida, para sempre.


(segue...)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Um vergonhoso festival

O centroavante César Maluco conta que quando entrou no Palmeiras, lá pelos já longínquos anos da década de 1960, o time era tão elegante e aristocrático que, quando marcavam um gol, os jogadores se cumprimentavam com um aperto de mão.

O tempo elegante e aristocrático do futebol ficou longe. O maior evento do esporte no qual as crianças antigamente se espelhavam, onde estavam os nossos heróis de infância, não apenas ganhou expressão mais livre como evolui para um festival de mau comportamento.

Alguns exemplos lamentáveis desta Copa vieram, como era de se esperar, do nosso comandante. Dunga xingou todo mundo ao final da partida Brasil e Costa do Marfim. Que o Brasil tinha ganho - imaginem se perdesse. Xingou depois um jornalista como um cão raivoso na sala de imprensa. O time do Brasil tem muito pouca graça com um líder resmunga tanto e se comporta como um buldogue maleducado, sob a justificativa de que as críticas o impedem de trabalhar à vontade.

O espírito guerreiro de Dunga se traduz mal em campo. Vide o zagueiro brasileiro Lúcio, um ardoroso defensor da Pátria, desferindo um soco no cotovelo sabidamente machucado do atacante marfinense Drogba.

O consolo dos brasileiros é que ninguém se saiu pior nessa Copa que os franceses. Xingaram uns aos outros, fizeram motim, trocaram acusações de tibieza e, para completar, perderam em campo vergonhosamente. Foram eliminados por times tecnicamente mais fracos, porém de melhor têmpera.

Os bleus cobriram de lama todo um país que se orgulha de sua cultura e da sua educação, a ponto da ministra do esporte tomar um avião para a África do Sul, na esperança não de controlar a situação, já perdida, mas de salvar um pouco as aparências. O papelão francês foi mais que grosseria: foi um festival coletivo de mau-caratismo.
Nem o treinador se salvou do naufrágio moral. Ao se recusar a cumprimentar o técnico adversário ao fim do jogo, deixando no ar a mão estendida do nosso Parreira, que na vitória como na derrota é sempre o mesmo gentleman, o francês Domenech deixou claro que o vexame futebolístico e ético da França não se deveu apenas aos jogadores.

Dunga falou em entrevista, emocionado, da educação que lhe deu o pai, hoje doente, e da mãe, que é professora de história. Sabemos por ele mesmo que ser filho de professora o ajudou a amar a pátria e a ter aquela disciplina espartana, com a qual conduz sua vida e a seleção. Porém, essa criação não o ajudou muito com a língua portuguesa, que ele atropela com a mesma volúpia com que gostaria de destruir adversários e opositores, principalmente na imprensa. E também não colaborou para conservar a noção básica da educação de que ficar xingando e destratando todo mundo é feio. Os pais tentam, sabemos, mas não conseguem tudo.

Por seu comportamento inadequado, Dunga ensaiou em seguida um pedido de desculpas, dizendo que o povo brasileiro não tinha que saber de seus problemas pessoais. Não se trata disso. Ele poderia ter problemas e trazê-las a público de maneira mais digna. No entanto, não deixa de ser verdade que o público vê futebol pela beleza do jogo, pelos momentos heróicos e emocionantes do esporte, pelo amor à pátria. E gostaria de ver aqueles que representam um povo se comportando de acordo.

Se esta Copa serve de exemplo, é daquilo que não se deve fazer. O futebol não perdeu apenas muito da paixão, convertida numa vontade de ganhar a qualquer preço, por trás da qual está a verdadeira motivação que hoje move o esporte: a ganância por dinheiro. E, quando isso acontece, desaparece a noção indispensável de honradez.
*
O Brasil ganhou de pouco dos coreanos, venceu a Costa do Marfim na base da ferocidade e empatou melancolicamente com Portugal. No jogo em que precisou fazer substituições de um time já cheio de reservas, Dunga entrou com Grafite, Josué e Ramirez. Ficou clara a falta de imaginação d eum time comandado por um técnico que se deu ao luxo de deixar de convocar Neymar, Ganso e Ronaldinho Gaúcho. O erros em algum momento aparecem.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Um panteão de mármore frio


A morte do Nobel a quem faltava um pouco de amor

Sequer na morte o "L'Osservatore Romano", jornal oficial do Vaticano, perdoou José Saramago, falecido aos 87 anos em sua ilha espanhola. Expatriado voluntário, que não contava muita popularidade em seu país de origem, do qual se distanciou, ou foi por ele distanciado, ao despedir-se da vida o primeiro Nobel em língua portuguesa foi subtraído da benevolência devida às almas pela igreja católica. Em vez disso, a santa imprensa preferiu descontar sua ira contra o cadáver indefeso.

Com o irônico título "O grande (suposto) poder do narrador", o órgão de imprensa do Vaticano definiu Saramago como "um ideólogo antirreligioso, um homem e um intelectual que não admitia metafísica alguma, aprisionado até o fim em sua confiança profunda no materialismo histórico, o marxismo." E acrescentou, em outra passagem do texto obituário: "colocou-se com lucidez ao lado das ervas daninhas no trigal do Evangelho".

Sim, Saramago era ateu, e marxista. Como comunista convicto, defendeu o joio que vinha com o trigo: as atrocidades cometidas em nome dos bons ideais do comunismo. Para Saramago, como para todos os comunistas da velha cepa, os fins justificam os meios. Embora também condenasse muita coisa no mundo. "Ele dizia que perdia o sono só de pensar nas Cruzadas ou na Inquisição, esquecendo-se dos gulags, das perseguições, dos genocídios e dos samizdat (relatos de dissidentes da época soviética) culturais e religiosos", salienta o editorial.

O Vaticano usou com Saramago uma ironia que não se devia ter com os mortos e uma impiedade que não deveria combinar com a igreja. Também o Vaticano cometeu aí uma atrocidade, que é a de esquecer a função precípua delegada por Jesus: perdoar e compreender mesmo quem rejeita a doutrina ou o próximo. Porém, o editorial acerta quando detecta o que faltava, se não ao ser humano Saramago, ao menos ao romancista: um pouco de amor.

Como revela sua obra, Saramago era um intelectual brilhante. Seus romances são, como diria o velho bardo português, repletas de engenho e arte. Sua obra-prima, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que desgostou a Igreja muito compreensivelmente, nos introduz à ideia ao mesmo tempo marota e intelectualmente provocadora de que Jesus deve seu papel não a sua santidade, mas ao diabo. E nos coloca diante da importância e utiidade do Mal para o Bem – e a própria História.

O intelectual, porém, é o esgrimista da razão. Se aos romances de Saramago sobra inteligência, falta um pouco da sensibilidade, assim como ao homem Saramago faltava um pouco de vivacidade. A maioria de seus romances tem a mesma rica engenharia de linguagem, ideias e conceitos, mas são intelectuais demais. Um bom exemplo é o Ano da Morte de Ricardo Reis, que parte de um princípio instigante: o heterônimo de Fernando Pessoa volta a Lisboa para encontrar o poeta que é seu criador, como um personagem real. O resultado dessa bela ideia, porém, resulta numa filosofia arrastada, às vezes de uma chatice terrível.

Saramago escrevia como quem comprovava belas teses, mas não emocionava. Morava numa ilha não por acaso. No trato, era um senhor doce e educadíssimo, mas parecia manter uma certa distância olímpica do mundo. Como Jorge Luis Borges, que morreu amargurado, certo de que era “admirado, sem ser amado”, carecia daquele elemento fundamental que os escritores devem possuir: a necessidade não de demonstrar sabedoria, mas de se aproximar do outro.

Saramago teve seu Nobel, merecido pela qualidade de sua refinada obra. Porém, não teve seguidores apaixonados, como um Garcia Marquez, outro comunista de carteirinha, nem jamais os terá. O tempo tornará ainda mais frias as letras de quem as urdiu para falar ao cérebro, e não ao coração. Pois os tempos mudam, as ideias e convicções também - somente a essência humana permanece. Saramago morreu para entrar na glória, mas, como supõe a igreja, passará a um panteão de mármore frio, em lugar do Reino dos Céus.