quarta-feira, 17 de abril de 2024

Musk e o novo que é velho como o mundo

Elon Musk está demitindo 10% de seus funcionários. A Tesla não está vendendo seus carros elétricos como ele imaginava. Elon Musk também não está se vendendo como imaginava.

A intromissão de Musk na política brasileira, dizendo que não vai colaborar com a Justiça no inquérito das fake news, mostra que o novo, no mundo dos negócios, é na verdade bem velho. Em muitos sentidos.

Musk é velho como o mundo, primeiro, porque se mostra o empresário de faroeste, que só pensa nos seus interesses, e não nos países, ou nas pessoas.

Do tamanho que ele ficou, torna-se uma ameaça mundial. As megacorporações, do jeito que são hoje, acreditam que têm recursos e poder para confrontar os Estados nacionais. Especialmente os titubeantes, como o do Brasil.

São elementos imponderáveis da vida contemporânea. Empresários privados aventureiros que se metem em coisas antes reservadas ao poder público, como a corrida espacial, deixam perguntas. E quem regula o espaço? Nessa zona onde não há fronteira, como no mundo das corporações transnacionais, o que podem fazer? Resposta: algo que atende seus interesses, geralmente diferentes dos coletivos. 

Musk, o bilionário elétrico-digital, nesse aspecto, é também tão antigo quanto os velhos barões do petróleo  e da ferrovia. O discurso de que o carro elétrico vai salvar o mundo da poluição é uma enganação descarada. Não há nada mais mentiroso do que acreditar que o carro elétrico é ecológico. 

Para fazer funcionar carros e celulares com suas baterias, o engenho menos biodegradável já inventado pelo ser humano, é preciso uma quantidade enorme de minérios encontrados na superfície do planeta - os "terras raras". Por conta disso, extensas áreas de terra hoje são  revolvidas - em Araxá, Minas Gerais, por exemplo.

Por ser mais barato que comprar áreas continentais, empresas de 26 países hoje raspam o fundo do mar, com o objetivo de recolher lítio e outros elementos. Estão destruindo a flora e a fauna marinhas e com elas o crio, de onde vem a maior parte do oxigênio do planeta. Perto disso, destruir a Amazônia inteira não é nada.

E o que dizer de como ficaremos daqui oito anos, quando essas baterias veiculares se transformarem em lixo?

Quando as vendas de algo vão piorando, começam a vender para o Brasil como grande novidade. As vendas de elétricos balançam no exterior enquanto chegam por aqui como algo  sensacional. Muitos lançamentos de carros elétricos vêm sendo anunciados. Graças ao incentivo fiscal - nosso dinheiro - como ocorreu nos Estados Unidos.

Musk diz que é a favor da liberdade, como se seu negócio dependesse do livre mercado, e não do dinheirão que o Estado botou nele. No campo político, esqueceu também que o limite da liberdade é o direito - e a liberdade - do próximo. Não se pode fazer algo que coloca em risco o futuro do planeta, em qualquer área.

O mesmo se pode dizer das redes sociais, negócio onde ele entrou para enganar o público sem intermediários. A mídia digital vem sendo usada sistematicamente para espalhar mentiras, com finalidade eleitoral, de forma inescrupulosa, e proteger os interesses por trás dessas mentiras. São usadas, também, para patrulhar quem pensa diferente e constranger a opinião alheia - o contrário da liberdade.

Quem é Elon Musk? A resposta está bem clara. É mais uma raposa, travestida de benfeitor, dessas que querer tomar conta do galinheiro para fazer a festa. É temporário. Acabam levando chumbo do fazendeiro, antes de acabarem os ovos - e as galinhas.

domingo, 14 de abril de 2024

Decolonizando a decolonização

A convite da artista plástica Cynthia Loeb, passei pelo Cama de Gato, exposição dos artistas reunidos no condomínio de ateliers conhecido como Edifício Vera, no centro de São Paulo. No meio de muita coisa brilhante, lá encontrei o trabalho de Sérgio Adriano H - artista plástico que se dedica a rever, em forma de arte, a história do Brasil. Preocupa-se em denunciar a narrativa clássica sobre a negritude, a escravidão e o discurso histórico, feito da perspectiva do colonizador português.

Hoje há um forte movimento pela ideia da “decolonização”, palavra que ele aplica em muitas de suas obras. Em sua arte, Sérgio cola as páginas dos livros de história e as utiliza como tela, gravadas com essa palavra. Pinta de branco negros sendo castigados no pelourinho, nas gravuras históricas clássicas – uma forma de mudar a perspectiva e chocar quem vê a cena. Os negros de Debret se tornam brancos.

A “decolonização” – no sentido de extrair a perspectiva colonizadora – é uma preocupação para nós, jornalists e historiadores contemporâneos, que temos revisado a história do Brasil, como aprendemos nos livros escolares. Em A Conquista do Brasil (1500-1600), por exemplo, procuro mostrar a vida dos povos indígenas tal como era e destacar lideranças ignoradas pela historiografia oficial, como Aimberê, Cunhambebe e Piquerobi, muito mais importantes para a nossa história que Pedro Álvares Cabral.

No entanto, buscamos um equilíbrio, pois não dá para simplesmente jogar fora a informação dos jesuítas, detentores da narrativa sobre a história do Brasil na época. E que também escamoteavam portugueses como João Ramalho.

Não dá para embarcar na ideia dos “povos originários”. Como aponto em A Conquista do Brasil, os indígenas encontrados pelos europeus no território hoje do Brasil não estavam aqui há mais que 500 anos – terra que tinham conquistado de forma tão inclemente quanto o fizeram os portugueses, de quem se tornaram aliados contra os seus próprios inimigos.

A história, a meu ver, tem de ser contada pelos fatos, e os fatos dentro de seu contexto, não de pontos de vista que são narrativas contemporâneas. É preciso retratar a realidade com o máximo de informação objetiva. A história é o que é: ponto. 

A historiografia deve ser entendida da mesma forma, como parte da história. Colar páginas ou queimar livros pode valer como manifestação artística, uma forma de apontar injustiças e chamar a atenção para a igualdade de direitos. Porém, criar uma narrativa para se sobrepor a outras não é a melhor maneira de mudar alguma coisa.






Uma forma de obscurantismo não pode ser substituída por outra. Trata-se apenas de mudar privilégios, sem a promoção de uma real igualdade.

A arte faz seu papel, de chamar a atenção, chocar, abrir mentes. Porém, é preciso entender também os livros no seu contexto, considerá-los e preservar toda forma de história, em vez de queimá-la. Este é o único caminho: encarar a realidade, e não sepultá-la, de maneira a podermos mudá-la, de fato, para algo melhor.

domingo, 24 de março de 2024

A profissão proibida - 2

*

Entrei pela primeira vez na sala de aula do curso de Redação na metade do segundo semestre de 1982. O professor era Alberto Manente, um dos poucos que não eram apenas acadêmicos, mas profissionais atuantes - naquela época, repórter do Estadão. Como cheguei atrasado, fui passando discretamente pelo pessoal já sentado nas duas últimas fileiras do fundo. Achava que Manente nem sabia quem era eu, mas, ao me ver, deslizando entre as carteiras, parou a aula.

- Senhor Thales Guaracy - ele disse, perante a turma, em suspenso, galvanizada. - Que milagre a sua presença. O que houve hoje, faltou a namorada?

Desde que tinha voltado do Enecom em Florianópolis, namorando pela primeira vez na vida, aquilo tinha virado minha prioridade. Muitas vezes chegava na escola e, em vez de entrar em aula, deitava em algum pedaço de gramado para namorar. Os amigos assinavam por nós a  lista de presença, e assim eu ia levando.

Poucos na faculdade tinham namorada fixa. Na minha classe, éramos apenas dois: eu, e o William Bonermes, que então ainda não tinha inventado o sobrenome Bonner, e atendia (como até hoje, entre nós) pelo pelo apelido de Billy. Sujeito de relacionamentos longos, namorou uma colega da nossa turma até o último ano da Faculdade.

Eu queria aprender a escrever, claro, mas fazia isso de outras formas. Na hora do almoço, às vezes ia à casa de Marcelo Durst e me tornei amigo do pai dele, que admirava. Walter George Durst era então um dos dramaturgos mais quentes da TV Globo, depois de adaptar Gabriela, Cravo e Canela para a TV. Eu adorava tudo ali. 

Durst, pai, tinha na edícul da sua bela casa um escritório recheado de livros e cartazes de filmes da mulher, atriz de grande beleza, que adorava receber os amigos dosi filhos e nos servia a comida na cozinha. Depois, ia ao escritório de Durst conversar sobre escrever. Sentávamos em poltronas confortáveis e ele falava sobre a técnica da novela - muito do que penso hoje sobre escrever, aprendi ali.

Durst dizia que toda boa história de girava em torno de um conflito, o elemento essencial da novela. Como naquele tempo não havia o meio digital, e mesmo a pesquisa de opinião do Ibope não era algo tão sofisticado, ele fazia sua pesquisa pessoal sobre o que as pessoas estavam achando das novelas, de forma a orientar a direção das histórias. Para isso, ia toda semana à feira.

- Fico lá escutando o que as mulheres, principalmente, estão dizendo - me explicou.

Por alguma razão, provavelmente meu interesse por escrever, enquanto Marcelo preferia se dedicar à imagem, ele gostava de mim. Mais tarde, chegou a me convidar para integrar um núcleo de dramaturgia da TV Globo que estava formando em São Paulo. Cheguei a escrever para ele uma sinopse, que foi aprovada, para um seriado à tarde, com pequenos contos. 

Porém, nesse mesmo momento fui promovido a editor de Assuntos Nacionais em Veja, posição importante na revista, então o veículo nacional mais influente do país, em pleno processo de redemocratização. Tive de escolher entre escrever em Jornalismo e na TV - e não sei até hoje se certo ou errado, escolhi ficar em Veja.

Por conta de Marcelo, que era da mesma turma da minha namorada, andava mais com o pessoal da classe deles que da minha mesmo. Participávamos dos grandes eventos cívicos, em um momento de grande pulsação da história brasileira. Fomos juntos à grande manifestação do dia 16 de abril de 1984 no Vale do Anhangabaú: estávamos na ladeira gramada em frente ao Teatro Municipal, cuja inclinação oferecia uma arquibacada natural, no grande comício das Diretas-Já. 

Na passarela sob o viaduto do Chá, improvisada como palanque sobre a avenida, discursaram inflamadamente, diante da massa tão espremida que parecia um mar humano, políticos de todos os matizes e as celebridades da época. Osmar Santos, popular locutor esportivo, funcionou como mestre de cerimônias. Fafá de Belém, no auge da fama, conhecida pelos seios abundantes e a voz poderosa, cantou o hino nacional.

Discursaram as diferentes alas da chama Frente Ampla, que deu origem ao que se chamou de Nova República: Lula, Fernando Henrique, Mário Covas, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro (governador eleito de São Paulo e articulador do evento). Dali saíram os grandes personagens da redemocratização, alguns dos quais seriam os próximos presidentes da República.

Fiz naquela turma um grande amigo, Fábio, aluno de Rádio e TV, que produzia um radionovela satírica  veiculada na Rádio USP de madrugada e por isso chamava Pulga no Lençol. Convidou-me para participar e eu interpretava o papel do rei louco, que andava à noite berrando histericamente pelo palácio. 

Viajámos juntos, vivíamos na casa do H, que morava em uma república na avenida Rebouças, íamos ao cinema, a shows, sempre em bando. Parecia que estávamos vagabundeando, mas ali nos formávamos. Dessa turma sairia, por esses interesses, a mais importante crítica de cinema da imprensa, assim como um dos maiores diretores de fotografia de cinema do país da nossa geração, e assim por diante.

Eu só estava ali por ser o namorado da garota mais popular da turma, meio tímido e esquerdo, mas era bom estar entre eles, e ir à casa de R, minha namorada, porque era bem diferente da minha. Não podia levá-la para minha própria casa, porque minha mãe arranjara um pretexto qualquer para detestá-la, embora nunca a tivesse conhecido pessoalmente. Já eu, na casa dela, era muito bem tratado por seus pais e irmãos e via como era levar uma vida mais normal em família.

*
Foto: Teresa Pinheiro

Eu preferia estudar Ciências Sociais, que me davam estofo para escrever, e levava o curso de Jornalismo como podia, ainda mais quando as coisas ficaram mais difíceis de dinheiro.

Meu pai havia comprado um velho Chevette vermelho de minha tia Malfisa, quando completei 18 anos, para que eu pudesse ir à escola, em vez de tomar o interminável Vila Nilo. Porém, logo depois decidiu construir uma casa em Santana de Parnaíba e me tomou o veículo de volta. Vendeu-o e, com o dinheiro, comprou as portas da casa, ainda em obras.

Fiquei sem carro e dinheiro novamente até mesmo para tomar o ônibus. Disse a meu pai que tinha de trabalhar - e ele respondeu que não, que a escola era mais importante. Eu tinha de fazer alguma mágica, então, para me virar. E fiz.

Apelei, na época, para meu único capital: a juventude. Por conta do Marcelo Durst, cuja irmã, Ella, era fotógrafa de moda, R. havia começado a fazer fotos de publicidade para revistas - e começou a ganhar um dinheiro. Levava a sério a profissão, com requintes para mim admiráveis. Depois do banho, não esfregava a toalha no corpo, apenas tocava-o: assim preservava a pele. Eu achava aquilo desnecessário, para quem tinha 18 anos, mas não dizia nada. Por conta das fotos, ela fazia regularmente sessões de beleza num dermatologista para tirar do rosto cravos e espinhas.

Pensei que, se fizesse também fotos para publicidade, podia trabalhar apenas alguns dias por mês e continuar estudando. Só não sabia direito como começar. Havia um sujeito mais velho, que conheci no Palmeiras, onde ia tomar sol e me divertir na piscina. Pai de família, com três filhos, que gostava de se enturmar com garotões. Vivia me incentivando a entrar para a publicidade e se oferecia para me ajudar, provavelmente com segundas intenções. Quando lhe disse que estava pensando no assunto, ofereceu-me um  empréstimo de 200 dinheiros da época e com isso fazer um “book” – fotos para distribuir em agências e produtoras, que poderiam me dar trabalho. 

Aceitei, dizendo que o pagaria de volta em dinheiro, assim que recebesse o primeiro cachê. Ele ainda me deu o telefone de uma fotógrafa, Teresa Pinheiro, e fui bater no seu estúdio, no Jardim Paulistano. Ali, nas ruas arborizadas do bairro, fiz poses que hoje me fazem dar risada, umas vestindo camiseta e outras de terno e gravata. A fotógrafa me deu o contato de uma produtora de comerciais da Rede Globo. Liguei e ela me passou o endereço de um galpão na Barra Funda, com uma data e hora para eu  comparecer.

Era um teste para figurantes de um comercial das Casas Bahia. Quando cheguei, havia uma fila de candidatos  na escadaria que dava para o subsolo do galpão, onde uma banda tocava vezes repetidas o jingle das lojas. 

Ali, sentado na escada, conheci o Gérson Brenner, que esperava como eu, um lugar antes na fila, e mais tarde se tornaria ator da TV Globo. Era um sujeito extrovertido, carismático, cheio de vida, e nos encontramos muitas vezes depois, em situação semelhante, antes do tiro no assalto na rodovia Carvalho Pinto que o deixou com capacidades limitadas.

A produtora dos comerciais da TV Globo apareceu para anunciar ao pessoal da fila que as vagas estavam preenchidas e nos  dispensou, antes mesmo do teste. Quando me apresentei, logo percebeu que eu estava perdido por ali, era ingênuo e tímido, e me indicou uma agência de modelos, chamada Totem, especializada em comerciais de televisão. "Eles vão te ajudar", disse. 

Fui bater na porta da agência, com minhas fotos debaixo do braço. Depois de muito esperar, fui recebido por  H. e L., sócios da agência. Pediram que eu deixasse as fotos com eles.

- Quando aparecer algo, podemos te chamar.

A primeira vez foi desanimadora. Fui a um teste no estúdio do JR Duran, então um estrela da publicidade, no auge da fama, em uma casa na Avenida Pacaembu, perto do estádio de futebol. A fila para o teste dobrava o quarteirão. Depois de algum tempo ali sentado no meio fio, decidi ir embora - nem consegui me aproximar da porta de entrada.

Vejam como é a vida - nunca imaginaria, nessa época, que ainda seria fotografado por Duran, e mais, muitos anos depois, que o contrataria como fotógrafo, como editor de revistas como VIP e Playboy, e sua mulher, Alex, trabalharia comigo como produtora de ensaios de moda masculina. Fiz também um livro de Duran, como editor da Saraiva, e nos tornamos bons amigos.

*

Apesar daquela frustração inicial, persisti. Da segunda vez, foi melhor. Fiz figuração num comercial da Caixa Econômica Federal, algo para o qual não havia necessidade de qualquer talento especial, já que tinha apenas de andar na rua, no meio de uma pequena multidão de anônimos. Enquanto isso, um ator com dotes de ginasta olímpico dava saltos mortais múltiplos - o tamanho da alegria que devia ser ganhar na Loteria.

Caco (eu) e Luciana (Sandra), by JR
Foi para mim também como tirar a sorte grande. Com aquele dinheiro, o primeiro que ganhei, paguei o empréstimo que tomei para fazer as fotografias, conforme o prometido. Dispensei, porém, o convite do meu solícito apoiador, que me propôs um "jantar" para celebrar aquele pequeno sucesso.

Depois do filme da Loteria da Caixa, as coisas melhoraram. Para minha surpresa, começaram a aparecer testes, e com eles, trabalho. Alguém me ligava em casa, dava um endereço e horário do teste, eu tinha de estar lá. Quem tinha mais disponibilidade, era preferido. E eu dava um jeito na escola, pedindo aos amigos para assinar as listas de presença, de forma a pegar o maior número de testes possível.

As ligações vinham de repente - "vai em lugar tal". Muitas vezes eu nem sabia o que era - e caía em todo tipo de situação. Uma vez, me disseram já na van da produtora que estávamos indo para o Playcenter. Tenho labirintite com frequência e detesto montanha-russa. Já comecei a desconfiar do que se tratava.

 O Playcenter estava nessa época simplesmemte inaugurando a primeira montanha russa com um looping no Brasil. Me puseram na primeira fila do carrinho, com uma garota apavorada do meu ladoe uma câmera de cinema acomplada bem na frente. Perguntei ao diretor o que tinha de fazer.  “Faz cara de medo alegre”, me disse ele. Dei seis voltas completas naquilo, até ficarem satisfeitos com a nossa reação. Na última, já estava tão acostumado que poderia passar o dia inteiro fazendo aquelas piruetas.

Pouco depois, tive meus momentos de celebridade anônima, por conta de dois segundos em um comercial de pasta de dente, em que eu só falava uma palavra, na frente do espelho: “menta!” - com um sorriso na cara e uma escova de dentes na mão.

Para meu total constrangimento, aquilo pegou. Eu passava na rua, entrava na faculdade, ia a um bar, as pessoas olhavam na minha cara, riam e falavam: “menta”! “Menta” pra cá, pra lá, o dia inteiro.

Uma vez, quando eu estava num estúdio fazendo figuração para um comercial de cera de automóveis, vieram me perguntar se não queria fazer um teste para o comercial da Enciclopédia do Sexo. Fui até o segundo andar. O teste consistia em beijar uma mulher, ambos nus da cintura para a cima. Molecão, topei, é claro.

Naquelas coisas tinha muita mulher bonita, e calhou de fazer o teste da Enciclopédia com CP, então  a grande estrela dos comerciais de TV. Durante meia hora, meu trabalho foi beijar aquela mulher linda, até o diretor estar satisfeito. ("Não deixa aparecer a língua!" - ele dizia).

Anos depois, eu a revi por acaso, numa delegacia. Tinha sido assaltada. Falei com ela, mas acho que não me reconheceu (pudera!). Não passamos no teste, mas eu falava sempre dela, só para provocar LB, um amigo apaixonado por ela, seu admirador da TV, para fazer ele morrer de ciúme e inveja de mim.

*

Fiz um monte de comerciais – tirei inclusive a roupa na TV, num filme das cuecas Zorba, que felizmente ninguém sabe onde foi parar. Até que um dia fiz um teste para uma série de comerciais da Brastemp que resolveria minha vida. 

O teste, fiz com a atriz Giulia Gam, então uma adolescente, mas que já agia como uma estrela de cinema, com quem contracenei numa cozinha improvisada dentro de um estúdio. Repetimos a cena duas vezes: o diretor, Clemente, da Denison Propaganda, me pediu para ser um pouco menos histriônico. Nesse momento, entendi que ele já havia percebido que eu era capaz de fazer aquilo e não precisava mais exagerar para chamar sua atenção.

De fato, fiquei sabendo no dia seguinte que havia ganhado o "papel". Um mês depois, no dia da gravação, em vez de Giulia, que tinha desistido, segundo diziam para ir à Itália, encontrei em seu lugar Sandra Annenberg - depois célebre apresentadora de telejornal na TV Globo, minha amiga e, na época, atriz. 

Fizemos uma foto como os namorados para a campanha impressa, veiculada nas revistas. O fotógrafo era o J.R. Duran. Eu, que da primeira vez nem tinha passado pela porta do seu estúdio, me senti triunfante. A mãe de Sandra guardou um recorte do anúncio, com a filha sentada no meu colo, me espremendo em um sofá. Coisas de mãe (dos outros). Sandra me deu uma cópia disso, divertida, muitos anos depois.

No filme para a TV, eu fazia o papel do namorado, Caco. Tomava um balde de água na cabeça, traquinagem do irmãozinho menor da namorada, para na sequência poderem demonstrar mostrar as virtudes da nova secadora Brastemp. Minha roupa molhada rodava na secadora quando naquele justo momento entrava o pai da namorada e me flagrava vestindo apenas o robe de chambre que lhe pertencia. 

Uma historinha picaresca, cuja encenação, para ficar do jeito pretendido por Clemente, tive que repetir muitas vezes. O balde caía de cima de uma porta quando eu entrava, eu tomava aquele banho e, num outro recinto da casa de mentira dentro do estúdio, uma passadeira esquentava a ferro as mudas de roupa para eu poder tomar outro banho. Lembro, no intervalo dos muitos banhos de água fria que tive de levar, do diretor olhando as muitas plantas do cenário e dizendo: "minha homenagem ao Walter Hugo Khouri", que abusava dos efeitos florais na sua filmografia.

O contrato com a Brastemp foi uma beleza. Pediam exclusividade, então eu fiquei um ano inteiro ganhando um salário mensal, durante a vigência da campanha, para não trabalhar em outro comercial.  Com o dinheiro, pude comprar meu primeiro carro - um Fiat 147 branco -e, com as parcelas mensais da exclusividade, podia completar o curso sem precisar mais trabalhar.

A Brastemp ainda ofereceu aos atores um presente, que podiam escolher, entres os produtos que fabricava. Perguntei a minha mãe se ela queria uma geladeira, uma máquina de lavar roupa ou uma lava-louça. Ela escolheu a lava-louça, que não tinha, até porque era novidade, na época. Não acreditou muito que aquilo era verdade, até ver aquela caixa enorme entrando dentro de casa.

Ao final daquele ano, quando eu estava para me formar, e o contrato de exclusividade por terminar, H., que eu não via há mais de um ano, me chamou na agência Totem. Disse que L., seu sócio, tinha dado um calote na praça e desaparecido com o dinheiro de todo mundo.

Sabia que eu estava me formando em jornalismo e precisava de um favor. Queria que eu escrevesse por ele uma carta ao mercado, dizendo que nada tinha com aquele calote, continuava e precisava trabalhar.

Escrevi a carta. Ele me agradeceu e perguntou, uma vez que o contrato da Brastemp estava terminando, se eu queria voltar à agência. Eu lhe disse então exatamente as seguintes palavras:

- Obrigado, mas essa carta foi a primeira coisa que eu escrevi profissionalmente. É o que vou fazer. Agora, sou jornalista.

Agora sou jornalista. É a frase que, desde então, eu repito com orgulho.

*
No final da faculdade, um dia, R me ligou em casa, chorando. Fabio, em Ilhabela, tinha bebido muito, entrara na água e morrera afogado.

Foi a primeira vez que vi uma pessoa morta. Lembro de meu amigo inexplicavelmente imóvel, com as narinas tampadas com algodão, no velório. Era difícil imaginar Fábio sem vida. Ele, que se vestia de Indiana Jones para um filme da faculdade (e parecia mesmo o Harrison Ford). Ele, o otimista incorrigível. (Uma vez, rodando para a casa de uma amiga no interior em um velho Landau emprestado de um tio, na hora do abastecimento observei que só a tinta da pintura estava segurando a lataria sobre a roda, carcomida pela ferrugem. "Boa essa tinta, não?" - ele respondeu). 

Fábio, para mim, era o melhor de nós. A constatação da fragilidade da vida caiu em mim como um raio. Todo o bando estava também morrendo de tristeza. R me chamou para ir a um lugar, casa de alguém, para falar de Fábio, lembrar de Fábio, consolar-se uns aos outros. Eu disse que não ia. E não fui.

Podem ter pensado que eu não era amigo, deles ou de Fábio, mas o fato é que eu simplesmente não conseguia lidar com aquilo - ou só podia lidar sozinho. Afastei-me de R, afastei-me da turma, caí numa espécie de limbo.

A morte de Fábio fechou trágica e simbolicamente um ciclo: o fim da faculdade e talvez da melhor fase de todas, em que tudo é aventura. Nela, descobri o que queria fazer, o amor, o sexo, enfim, a vida. E descobri também a morte.

Depois disso, nunca mais fui aquele inocente cabeludo que foi se dissolvendo pelo resto da minha vida. Mas, de certa forma, ele ainda está em mim, assim como a lembrança do Fábio e de todos aqueles momentos que, de certa forma, moldaram aquilo que eu fui depois - e ainda sou.

sábado, 16 de março de 2024

A busca das almas mais sensíveis

Ela é casada e mora em outra cidade. Ama o marido, embora diga que ama "também a ele, F". Ele já deixou dois noivados, o último a pretexto da doença - tem tuberculose, algo, naquela época, fatal.

Tem tudo para dar errado, mas Kafka se apega a essa relação, por um motivo: aquela mulher 13 anos mais nova, que mal viu, uma só vez, está traduzindo um conto seu para o tcheco. Ao fazer dela as palavras dele, se estabelece a ponte.

E ela o traduz tão bem. Neste mundo em que ninguém se interessa realmente pelo outro, ou se importa, ela é capaz de entender, olhar por dentro. E essa relação de trabalho de repente se apresenta como uma estreita possibilidade de amor - e isto vale todos os esforços do mundo.

Em cartas a Milena, que reúne as cartas de Kafka a Milena Jesenská, entre 1920 e 1923 - correspondência incompleta, pois não se conhece as respostas dela -, Kafka aparentemente monologa em busca de amor no mundo inóspito.

Esse é o sentido não apenas das cartas, como de sua psique, traduzida em sua obra, expressão e busca das almas mais sensíveis, o que lhe custou também, provavelmente, a saúde.

Kafka é comumente interpretado como uma espécie de mestre do absurdo - o sujeito que se transforma em barata de A metamorfose, ou perseguido por um sistema tão perversamente sem sentido que ganhou justamente o nome de "kafkiano". 

Milena de fato o conheceu bem. Escreveu, de Kafka, que "ele via o mundo cheio de demônios invisíveis que aniquilavam e despedaçavam pessoas indefesas". Esse é o verdadeiro sentido de toda a sua obra - e das aflições pessoais que o mantinham solitário.

Com certa psicologismo, pode-se entender que a solidão de Kafka vem de certo sentimento de abandono, que manifesta sobretudo em sua Carta ao Pai, outra obra epistolar, em que fala sobre ser constantemente desaprovado desde a infância. O amor então se torna um prenúncio do sofrimento.

Suas cartas, como seus livros, são um rico manancial para os analistas, extremamente contemporâneo, numa época em que, apesar da extrema facilidade de comunicação, as pessoas se isolam cada vez mais e a solidão se torna uma epidemia social.

Kafka é, também, um bom exemplo para quem consegue quebrar esse isolamento por meio de um talento artístico, como uma ponte para superar o medo do outro - isto é, de ver seu amor  novamente traído.

A arte - no caso dele, a literária - é a grande válvula de escape para as tristezas inconsoláveis e as pessoas que facilmente se magoam, encontrando, como alternativa à solidão, um campo salvador (ou misericordioso) para a solidariedade.

quarta-feira, 13 de março de 2024

A profissão proibida - 1

Eu tinha 17 anos e era ainda madrugada, quarta-feira, 27 de janeiro de 1982, quando levantei, desci pé ante pé as escadas do sobrado da casa de meus pais e saí, de mansinho, andando pela rua ainda escura até a Praça Centenário, na Casa Verde, onde havia uma banca de jornal.

O Estadão chegava às 5 da manhã e, na praça deserta, havia apenas a luz da banca e o jornaleiro. Tão logo passou o caminhão, comprei um exemplar do Estadão. 

Sentado no banco de cimento da praça, abri eletrizado a lista de aprovados no exame da Fuvest, para o curso de Jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da USP. Corri os olhos pela lista, nervos à flor da pele e, com alívio, mais que alegria, vi meu nome ali. 

Voltei para casa; no caminho joguei o jornal no lixo, entrei fechando a porta tão silenciosamente como tinha saído, me enfiei debaixo das cobertas e, sem falar nada a ninguém, quando começava a clarear o dia, voltei a dormir.

*
Não podia comemorar aquele meu grande sucesso, como tantas vezes depois, por uma razão. Minha mãe, Dona Marlene, tinha um amor do qual ninguém duvidava, mas era daqueles amores de mãe autoritários e possessivos - e ela não admitia que eu fosse fazer Jornalismo. 

"Profissão de pobre", dizia. Meu pai era jornalista. Não éramos pobres, nem de longe. Eu tivera escola o bastante para passar no vestibular em duas faculdades públicas, ambas na melhor universidades - desde o ano anterior, estudava Ciências Sociais na USP. E, muito embora eu não tivesse dinheiro no bolso, nunca tinha me faltado realmente nada importante.

Minha mãe não se incomodava com aquela crueldade implícita de desdenhar da profissão do marido, muito embora com a profissão proibia ele pagasse a maior parte das despesas da família. É que dona Marlene tinha grandes aspirações e seus próprios planos para o filho mais velho.

Estes variavam, mas o principal deles era me fazer casar com a Maria Pia Matarazzo, muito mais velha que eu, mas herdeira solteira da fortuna dos Matarazzo - o que ela me propôs várias vezes, muito seriamente. Hoje dou risada, e me vejo discutindo esse assunto com ela em outra vida, mas naquele tempo era um inferno.

Eu já cursava Ciências Sociais na USP, o que me fazia ler, trazia conhecimento, uma visão mais compreensiva da sociedade - uma forma de desenvolver conhecimento, análise, visão. Porém, essa era apenas a base para o que eu queria fazer de verdade, que era escrever. 

 Além de campo para o exercício das ideias, o Jornalismo dava experiência de vida, por meio da reportagem, e sobretudo a prática diária da escrita, que me permitira, afinal, fazer o que eu queria: viver escrevendo. Não adiantava explicar nada disso a minha mãe. Como em muitos outros momentos da minha vida, ao entrar na Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP, eu estava feliz como nunca - mas guardava essa satisfação comigo.

*
Não me recordo ao certo quando minha mãe soube que, além da faculdade à tarde, eu passaria a ir à USP também pela manhã. Mas eu estava lá, no primeiro dia de aula, depois de tomar muito cedo o Vila Nilo, ônibus que cumpria o trajeto mais longo da cidade, passando pela Casa Verde e atravessando São Paulo até chegar duas horas e meia depois à entrada da Cidade Universitária, no Butantã. 

A ECA ficava num paralelepípedo de cimento, suspenso próximo da reitoria, com um jardim e um lago na frente e, na entrada, uma grande mesa de aço escovado, dessas de açougue, onde os estudantes sentavam ou deixavam suas mochilas, à espera do sinal.

Aquilo estava apinhado de gente e, apesar de já estudar na USP, eu estava maravilhado - aquela gente era a minha gente, afinal. E ali, de fato, fiz muitos amigos e conheci gente com quem passei a conviver a vida inteira e que se tornou importante no mundo das comunicações, numa era de grandes mudanças, não apenas para a comunicação como do Brasil e do mundo.

Eu não estava, no fundo, muito interessado em estudar. Fazendo o curso à tarde, em Ciências Sociais, já estudava muito. Para mim, o mais importante era o diploma, que me permitiria mais tarde trabalhar em um jornal ou revista. Logo no primeiro dia, me enturmei com o pessoal do segundo ano. 

ECA era um mundo à parte. Nos dois primeiros anos, juntavam-se os alunos dos diferentes cursos - Jornalismo, Marketing (onde estava o Billy), Rádio e TV, Teatro. As classes eram maiores e por isso era mais divertido. Nossa primeira aula prática era fazer um cartaz numa velha linotipo que ficava no piso térreo do caixote da Faculdade. Fui eu que escrevi o texto de quatro linhas que mais parecia uma estrofe, montamos as letras de chumbo e rodamos aquela geringonça, na época já uma velharia de museu. Dizia: "Nada a dizer/num mundo onde/ninguém ouve/e ninguém lê"

Todos os dias, uma turma se voluntariava para levar até o primeiro andar, por uma longa e penosa escadaria, o Marcelo Rubens Paiva, que ainda não havia publicado Feliz Ano Velho, e, com sua cadeira de rodas, não conseguia chegar lá sozinho, numa época em que ninguém pensava em acessibilidade. 

Todo dia, três ou quatro de nós o levámos no braço escada acima, junto com o seu acompanhante permanente, cujo nome eu não sabia - só o chamavam pelo apelido de Neguinho. Até que certo dia perderam o pé e todo mundo caiu lá do alto de cambulhada. 

Marcelo passou uma temporada no hospital e, na volta, a direção, por conta dele, mudou provisoriamente o primeiro ano e depois em definitivo o Jornalismo para o edifício ao lado, uma construção térrea, com salas envidraçadas que, por esta razão, chamavam de Aquário.

Não queríamos saber da politica estudantil, viciada nas receitas da esquerda, tão velhas quanto o autoritarismo do regime militar. No primeiro ano, resolvemos organizar uma chapa apolítica, com a finalidade de promover festas, shows, eventos culturais - e desalojar do Centro Acadêmico as chamadas "tendências", correntes partidárias presentes na política estudantil.

Havia na escola um único membro do PCB - João Carlos de Oliveira, o Cao, que estava na escola fazia 7 anos e se tornou quase um estudante profissional. Teimava em querer apoiar a nossa chapa, contra a da Libelu, ligada ao PT, embora recusássemos seu apoio, que mais prejudicava que ajudava, uma vez que não queríamos associação com legenda alguma.

- Mas eu quero apoiar, não há nada que vocês possam fazer para me impedir - dizia ele. 

A chapa chamava ACordaEca, com múltiplos sentidos. O presidente do Centro Acadêmico seria Marcelo Durst, meu colega de classe nas Ciências Sociais, um ano à frente na ECA, onde entrara para cursar Cinema. Durst me propôs ser o diretor cultural; Nem sabia o que estava arrumando e não imaginava também que iríamos ganhar.

AcorDaEca teve seus momentos. Fiz uma festa para arrecadar fundos num dos prédio do Aquário que foi um sucesso - tão grade que se tornou um problema. Começou a a chegar gente estranha à escola e pressenti que a festa ficaria barra pesada por volta da meia noite, quando fui embora, porque esse era o horário limite que meu pai (por causa de minha mãe) me deixava voltar para casa.

Quando voltei, no dia seguinte, limpar a sujeira da festa não foi mole. Ninguém explicava como, um carro que estava no estacionamento da rua amanheceu  dentro do lago em frente à escola.

Quando entrei na escola, a USP andava pichada com a frase "Almeida vem aí". Ninguém sabia quem era o Almeida. Era propaganda: Almeida tratava-se do jornal do Jornalismo, feito pelo CA. Liquidamos aquilo, que tinha viés político. Porém, tínhamos de mandar representantes para os eventos estudantis, que eram só política. AcorDaEca não era política, mas a escola tinha de ser representada. 

O primeiro foi o Coneb - Congresso Nacional das Entidades de Base, em Belo Horizonte.  Durst me entregou cinco mangos do caixa do CA, o que não dava para fazer uma única refeição no Crusp, e passagem de ônibus para Belo Horizonte, sede do Congresso.

- Mas eu diretor cultural - reclamei.

- Não tem mais ninguém pra fazer isso.

Eu não tinha dinheiro de meu para fazer a viagem. Precisei me virar. Desembarquei do ônibus depois de 20 horas de viagem e passei cinco dias  do jeito que podia: sem gastar um tostão furado. Comia de graça no bandejão do congresso. Com não tinha dinheiro  para ir dos alojamentos ao ginásio onde se realizavam os debates, passei a circular de carona com os estudantes de Goiânia, que tinham ido num ônibus fretado.

Eu mal assistia ao Congresso: estava ali para fazer presença. Pegava o ônibus e dormia com a delegação goiana, no chão, em sacos de dormir, dentro de uma sala de aula do Colégio Renault, cercado por um grande e belo jardim arborizado.

Certa noite, saí daquele amontoado de gente, por volta da meia noite, e fui tomar ar no jardim do colégio. O jardim estava silencioso e iluminado pela lua. Súbito, percebi um vulto me seguindo. Uma garota saíra do dormitório improvisado e vinha atrás de mim. Vou chamá-la de G, porque a esta altura deve ser uma senhora bem comportada.

Passamos boa parte da madrugada brincando de esconder, olhando a noite enluarada enrolados num cobertor e  namorando no gramado à luz do luar. A certa altura, porém, G disse que precisava voltar para o dormitório improvisado na sala de aula. Quando sugeri que ela ficasse comigo ali fora, no cobertor, disse que precisava mesmo voltar.

- Meu namorado está lá dentro - explicou.

Aquela inesperada e tardia revelação dificultou minha vida com a delegação goiana. Tive que passar a evitar G quando se encontrava perto do namorado. Felizmente, o congresso já se encaminhava para o final. Eu não voltava de Belo Horizonte sem nada: tinha uma história para contar.

*

Depois do Coneb, foi o Enecom - Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação -, que se realizava aquele ano em Florianópolis. Dessa vez foi mais gente, ou melhor, praticamente todo mundo.

Logo percebi que muitas coisas aconteceriam quando, já no ônibus, uma colega loura de olhos azuis abriu a minha braguilha e enfiou a mão dentro da minha calça, no silêncio do trajeto noturno. Quando chegamos a Florianópolis, e pelos dias seguintes, porém, quase não a vi mais. Era uma daquelas coisas que aconteciam, somente, e depois ninguém falava mais.

Cada sala de aula da Faculdade de Jornalismo virava dormitório de uma delegação. Na primeira noite, dentro do meu saco de dormir, acordei com uma mão passeando pelo meu baixo ventre. 

Quando fui olhar, era um sujeito que eu nunca tinha visto e continuou me importunando, mesmo depois que reclamei. Deixei o saco ali e fui dormir em outro lugar. 

No dia seguinte, em cima do meu saco de dormir, havia uma poça de vinho,  que exalava um cheiro nauseante. Andei querendo saber quem era o estranho que dormia com a nossa delegação e ninguém o conhecia. Diziam que podia ser um "rato" - isto é, um policial à paisana, infiltrado entre os estudantes, para nos espionar.

Dali em diante, passei a dormir cada noite no meio de uma delegação diferente. Na verdade, não dormia quase nada.

De dia, eram os debates. Desde o primeiro dia, fiquei fascinado por X, uma estudante que para mim já era uma mulher. Eminência da delegação de Belém, era conhecida por todos do movimento estudantil, de edições anteriores de eventos como aquele, e presidia as mesas mais importantes, colocando ordem nos debates.

A delegação de Belém, à qual ela pertencia, tinha as mulheres mais bonitas do congresso (e possivelmente do mundo). Isso incluía CS, afiada, inteligente e combativa, bela e esguia como uma náiade, e que mais tarde faria muito sucesso como repórter e correspondente da TV Globo, muito amiga de X.

Porém, eu estava hipnotizado mesmo por X, carismática,  com seu imponente cabelão anelado, nome de imperadora, voz meio rouca e possante, autoridade indiscutível por trás dos óculos de fundo de garrafa - conjunto para um irresistível desafio.

Havia por perto também uma garota da ECA que estava um ano na minha frente, a mais popular da classe, e que parecia ter simpatizado comigo desde o primeiro dia da escola, e no futuro teria também bastante destaque como apresentadora de telejornal numa importante rede de TV. Eu nem imaginava que dava bola para mim, nem quando certa noite me deu seu chapéu de palha, ao estilo dos caçadores africanos, e sua echarpe cor de rosa, para poder ficar livre e ir a uma festa dançar. Levei e usei o chapéu e a echarpe a uma mesa presidida por X e fiz questão de participar da discussão travestido daquele jeito.

- Não apenas apare e assim como ainda pede a palavra  - disse X - vamos ouvir a Greta Garbo.

E passou a me chamar assim.

Certa noite, na minha rotina das noites itinerantes, penetrei de mansinho na sala de aula onde dormia o mar de gente que era a delegação de Belém. Achei X no escuro e me aninhei ao lado dela. Aos poucos, fui chegando. Ela me deixou dar alguns beijos por todos os lugares que procurei e se divertiu comigo um pouco, até me mandar embora, desdenhosa:

- Agora chega, Greta.

Às vezes, eu saia com a turma mais velha, da classe de Durst, que estava lá com o propósito declarado de fazer turismo. Certa noite, fui à cidade com eles, para variar a comida barata e monótona do  bandejão do Congresso. Comemos num restaurante macrobiótico com cheiro de sabão e  brincamos ao lado, numa cidade miniatura, feita para crianças.

Uma tarde, fomos para a praia da Joaquina, com um vento furioso, areia entrando nos ouvidos e um.mar turbulento. Para meu espanto, apareceu o Rato - e sumiu por algum tempo no meio das dunas. Quando olhei, um de nossos colegas tinha sumido junto.

Depois de mergulhar e rolar pelo areal como selvagens, nos encolhemos numa bolha humana para esquentar o corpo e nos proteger  do vento até chegar o ônibus, já alta noite. Nessa hora, somente, a dupla desaparecida no areal reapareceu.

Juntos nos divertimos, nos entusiasmamos e sofremos. No penúltimo dia, a mesa de debates foi ocupada por um televisor daqueles da época, de tubo, e assistimos à anticlimática derrota do Brasil para a Itália na Copa da Espanha, no dia 5 de julho de 1982. A tristeza de perder, quando todos sabiam que tínhamos o melhor time do mundo, se misturou ao clima de Woodstock em que a gente vivia; debatíamos ideias e ações para tirar o Brasil da ditadura e da miséria, e de repente aquela frustração era um duro golpe na esperança.

Acabou o jogo e fomos para o gramado da universidade jogar uma pelada. Joguei como nunca na vida, descalço, como se purgasse a tristeza com o suor, e quisesse mostrar a mim mesmo do que um brasileiro era capaz. Quando a noite caiu, já no escuro, e quase sem ver a bola, continuamos jogando, até a exaustão.

O congresso em Florianópolis fazia a gente sentir que estava mudando o mundo - e mudou realmente muita coisa,  a começar por mim. Na noite anterior à da partida, quando eu vasculhava a mochila, e todos os outros já tinham saído para o jantar, R - a última a sair - virou-se e, de longe, me chamou.

Já tinham apagado a luz da sala de aula, de maneira que ela era quase uma silhueta na porta, contra a luz do corredor. 

- Você volta comigo amanhã no ônibus, não é?

Aquela pergunta, que era um convite, ficou rodando na minha cabeça até a noite seguinte. Eu não sabia o que aconteceria, duvidando que aquilo fosse verdade, ou suspeitando que na hora nada iria  acontecer. Eu, que nada esperava, e passara o Congresso olhando para todos os lados, sem querer olhar para aquele, me vi em terrível expectativa.

Quando entramos no ônibus, R veio e sentou ao meu lado. Foi quase mágica. O ônibus saiu e passamos a noite aos beijos, namorando. R dormiu no meu colo e, 17 horas de viagem depois, quando chegamos, tudo na vida tinha mudado.

(SEGUE NA PARTE 2)

sábado, 9 de março de 2024

Ainda estamos mudando o mundo

A gente era muito duro, como se supõe que sejam os estudantes de Ciências Sociais da FFLCH, centro de saber da USP, fundado com as bençãos do antropólogo francês Levi-Strauss, onde lecionaram, entre outros, gente tão politicamente diversa como Fernando Henrique Cardoso e Oliveiros Ferreira.

A gente era duro, mas se divertia muito, especialmente eu e Marcos, meu amigo mais próximo da Faculdade, e que seguiu carreira acadêmica, chegando a chefe de departamento de Sociologia na escola onde estudamos.

Naquele tempo, a gente queria ler Foucalt, ver todos os filmes de arte e encher a cara de caipirinha nas festas, muitas das quais Marcos promovia na casa dele, uma república de estudantes durangos, onde não havia quase móveis, localizada perto  da Marginal, do lado oposto ao da Cidade Universitária. Como todo mundo morava ali vindo do interior, era o lugar ideal, porque a gente se divertia sem gastar quase nada, e sem ter que dar satisfação a  pais castradores, que já não podiam nos impedir de fazer qualquer coisa.

Numa dessas festas, por causa do barulho em altas horas, os vizinhos chamaram a polícia. Lembro de duas colegas, Margareth e Monica, me segurando tão discretamente quanto possível contra a geladeira, para me fazer ficar parado em pé, quando os oficiais entraram pela cozinha. Provavelmente graças a elas não acordei no dia seguinte na delegacia.

Não lembro de mais nada da festa, só de levantar na tarde do dia seguinte dentro de um quarto cheio de gente meio pelada, ainda dormindo. E de sair para a rua, passando pela porta aberta da sala, onde um disco de vinil rodava sozinho na vitrola, com a agulha correndo naquele trecho final onde não tem mais música alguma.

Quando casou Denise, a amiga rica da turma, arrumei o carro do meu pai emprestado e fui, com Marcos, buscar Flávia, outra colega, num casarão do Morumbi. Ela saiu metida num casaco de pele que deixou o banco do passageiro espetado de pelos como um ouriço. Lembro de descer voando a ladeira que dá na marginal, da porta do Corcel abrindo na curva e de, com uma mão ao volante, cruzando com o corpo o banco do passageiro, recuperar a porta e evitar que Flavia, dentro daquela bola peluda, fosse cuspida para fora do veículo. (A gente andava em velocidade, sim, e cinto de segurança era só um estorvo que a gente empurrava para sentar.)

Pobres, famintos e sem educação, atacamos o repasto no luxuoso bufê da festa do casamento, tão logo chegamos. Estávamos já empanturrados quando, para nossa surpresa, abriram portas que a gente nem tinha visto, onde ainda estava para ser servido, à francesa, o jantar.

Eu ia da Casa Verde para a USP no Vila Nilo, a linha mais longa e demorada de ônibus da cidade de São Paulo. Preferia pegar os lotados, pois ia pendurado do lado de fora - assim, descia sem pagar a passagem. Na USP, tomava o Circular, ônibus gratuito que levava da entrada para as faculdades dentro do campus, mas a gente preferia pegar carona, que saía de um ponto informal, na calçada oposta à do Rei das Batidas - bar célebre pela presença dos estudantes que planejavam como mudar o mundo enquanto sorviam sua célebre batida de morango. 

A gente viajava muito - e sem dinheiro, o que era quase um milagre. Eu e Marcos passamos um carnaval em Paraty, onde fui encontrar secretamente uma mulher casada. Como a cidade já estava lotada, e não tínhamos dinheiro, dormimos debaixo da escada de um hotel que estava fechado, em obras, no meio de um monte de entulho.

Líamos A Regra do Método Sociológico, de Durkhein, no primeiro ano, e íamos ao cinema. Vimos tudo o que dava. Na Mostra Internacional de Cinema, com sessões às vezes no meio da tarde, assistimos todo tipo de filme maluco, como Koyaanisqatsi, em sua estreia - um filme sem diálogos,  apenas paisagens grandiloquentes, aceleradas sob música de orquestra, retumbante sucesso de público e crítica, e prenúncio das preocupações sobre a preservação do planeta, então um tema inexistente.

No Cineclube Bixiga, na rua 13 de Maio, vimos todos os filmes de arte que podíamos, como os de Buñuel - Bela da Tarde, Viridiana, etc. Vimos filmes que ninguém via, na plateia quase vazia - como Limite, do Mário Peixoto, um filme mudo, com horas de duração, um clássico quase desconhecido da cinematografia brasileira. A bilheteira do cinema era a Simone Mateos, filha do Raul, o livreiro comunista que tinha uma banquinha na faculdade, e era minha colega de classe também no curso de Jornalismo, da ECA.

Primórdios da era digital, o Cineclube, além de passar todos os filmes que não entravam em grande circuito, tinha uma simpática placa de leds na bilheteria. A gente escolhia onde sentar e o led verde ficava vermelho. Algo impensável nos outros cinemas, onde não havia lugar marcado.

Eu e Marcos lemos O Capital nas aulas da Elisabete Lobo, e nos especializamos em Metateoria, a ciência que estuda a ciência como método de conhecimento, com o professor Jeremias e uns cachorros vadios que andavam pelas salas de aula. Jogávamos pingue-pongue no centro acadêmico e quando sobrava algum dinheiro almoçávamos na Biologia, porque lá estudavam as garotas mais bonitas (e tinha comida macrobiótica).

Certo dia, no xerox (sim, a gente copiava os capítulos dos livros que tínhamos de ler, mas era em papel), um sujeito de barba, um ou dois anos na nossa frente, disse: "Amanhã nós vamos roubar um banco".

Todo mundo já deve ter feito essa brincadeira um dia, de maneira que rimos e fomos para a sala de aula. Só que, para nosso espanto, dois dias depois, estava lá o colega estampado na primeira página da Folha de S. Paulo. O título era algo como "aluno de Ciências Sociais preso em tentativa de assalto" -  numa agência do Bradesco ao lado da Cidade Universitária. 

Foi um alvoroço - menos pela prisão do estudante da escola, do que por um detalhe. O sujeito tinha ido assaltar o banco com uma camiseta, com a qual saiu na foto da autuação, feita pela polícia, e reproduzida na primeira página dos jornais, estampada com a estrela e a sigla do PT. 

Estávamos sempre em algum tipo de crise. Uma hora, tínhamos de ocupar a reitoria, em protesto contra o autoritarismo. Outra hora, a ocupação era do Crusp, o restaurante onde dava para encher o bandejão pagando uns trocados. Lembro de um dia ficar sentado de cócoras no chão, em uma ocupação da reitoria, ao lado de uma parede de vidro, separado da polícia armada para a guerra do outro lado por aquela fina película transparente. Dava para sentir dali o bafo dos policiais, prontos para a ação.

Era o fim da ditadura militar e a maioria de nós não queria saber de esquerda ou direita, só de retomar a normalidade democrática, trabalhar pelo desenvolvimento e sermos felizes para sempre. Fomos com a multidão no comício das Diretas-Já e havia um clima de euforia com o futuro que se construía, misturado à energia da juventude. Não apenas queríamos mudar o mundo: o mundo estava mudando, e éramos a história viva e em ação.

Havia, também, a tragédia. Uma vez, ao chegar à Universidade, vindo pela marginal, avistei um sujeito que se enforcara, pulando da ponte da Rebouças, e cujo corpo balançava sobre o rio Pinheiros. Surpresa ainda maior foi, ao chegar à faculdade, saber que ele estudava lá.  Surgiu uma onda de remorso coletiva contra a falta de interesse pelo semelhante, a ponto de ninguém saber que alguém estava a ponto de se suicidar. Como tudo, aquilo virou tema de debate.

A insensibilidade para com o outro, ou a sensibilidade despertada quando é tarde demais, foi uma lição mais importante para mim que o estudo de Maquiavel e Tocqueville. Entender a sociedade, como objeto científico, pressupõe antes de mais nada o reconhecimento da importância do outro e da força da coletividade, para todos nós.

É um tema fundamental ainda hoje, em que as pessoas estão cada vez mais solitárias, apesar da exposição a que estão submetidas pelas redes sociais - talvez porque não exista solidão maior do que a de estar no meio de uma multidão.

Entendi na escola que a insensibilidade pelo drama do indivíduo aumenta quando a sociedade inteira está à deriva. E hoje nós, agora mais velhos, ainda nos penitenciamos: procuramos saber o que fizemos de errado, afinal, para o mundo caminhar de volta ao autoritarismo e ao desentendimento.

As Ciências Sociais foram muito importantes para mim. Para escrever, é preciso ter o que. O curso me ajudou a pensar, a entender os movimentos históricos e coletivos, a aprender com o diferente. 

Política me deu estofo para cobrir essa área, como repórter e editor de veículos como Veja. Sociologia me ajudou a entender que a sociedade tem um movimento próprio, que pode ser estudado pela observação científica, como elementos químicos ou corpos celestes. 

Antropologia me deu fundamentos para aceitar como válido todo tipo de vida humana e a perspectiva de cada um sobre si mesmo. Enriqueceu minha visita a aldeias indígenas e o meu entendimento dos povos originários - o que me ajudou, por exemplo, a escrever o que talvez seja a parte mais fascinante do meu primeiro livro de história, A Conquista do Brasil, que já teve pelo menos cinco reimpressões.

Em Jornalismo, essa minha formação sempre orientou o que escrevi sobre a sociedade brasileira, a política e o desenvolvimento do país. Como repórter, embora tenha prazer em conhecer as pessoas, nunca deixei de ser muito tímido. Preferia estar na redação, como nos livros, escrevendo (como se diz no jargão da profissão, sou um "fechador").

Exercitei-me na tarefa de identificar o importante e fazê-lo se tornar interessante. Para isso, foi fundamental o capital instalado pelo conhecimento das Ciências Sociais, que utilizo para buscar ao mesmo tempo a visão ampla (o contexto) e profunda (o insight).

Hoje posso dizer que participei ativamente de mudanças importantes no Brasil, especialmente o restabelecimento do estado de direito, a redemocratização e  a estabilização econômica. O país melhorou muito, inquestionavelmente, em relação a si mesmo e perante o mundo. Por essa razão, acredito que minha geração produziu para si mesma (e, esperávamos, para nossos filhos e netos) um certo oásis de paz e prosperidade na agitada história brasileira.

As coisas, porém, estão mudando, dentro de um movimento global de concentração de renda e empobrecimento. Velhos desafios parecem estar de volta, como uma erva daninha.

Para mim, isso significa que ainda há o que fazer. E ainda saímos, eu e Marcos, para ir ao cinema, discutir essas coisas e planejar outra vez o mundo. O que envelhece é só o corpo. Ainda somos meninos - e andamos pensando em dar uma festa.

domingo, 3 de março de 2024

Tognolli e um certo senso de justiça


Claudio Julio Tognolli tinha um Chevette meio desconjuntado, e ia me dando uma carona no campus da USP, ao mesmo tempo em que filosofava, porque tinha saído fazia pouco tempo do RPM, onde tocava guitarra - e de repente a banda estava fazendo o maior sucesso, enquanto ele, meu colega de classe, estava ali de meu motorista. Mas não perdia o bom humor.


- Sabe, a gente tem três chances na vida - ele disse. - A primeira, a gente nem sabe que perdeu. A segunda, a gente perde por incompetência. A terceira, não pode perder. O difícil é saber que oportunidade foi esta que eu perdi: se foi a primeira, a segunda ou a última.


Com pouco mais de 18 anos, eu era ainda mais duro do que ele, mas achava que havia toda uma vida de oportunidades pela frente para todos nós, uma geração que saiu daquela escola com as mesmas aspirações (e teve muito sucesso).


O Paulo Ricardo, do RPM, que era mais velho, e estava em algum ano mais adiante, eu só conhecia de jogar futebol no gramado em frente à escola - já ia pouco à aula. Mas eu, Tog e muitos outros convivemos, por amizade e também pelos encontros da profissão.


Depois dos dois anos básicos, em que todos estudávamos juntos, a turma foi dividida nos cursos específicos - o William Bonner, por exemplo, foi para o marketing (só faria jornalismo muito tempo depois). Mesmo no Jornalismo, a gente se dividia - algumas matérias eram optativas e tinham poucos alunos, como Matemática da Comunicação, onde nos inscrevemos só o Marcelo Rubens Paiva e eu. Mas todo mundo se encontrava na entrada, onde sentávamos num mesa de açougue, de aço inoxidável, antes das aulas, e íamos às festas juntos. A partir de certa altura, passamos também a trabalhar juntos, na Editora Abril e outros veículos que pegavam quase turmas inteiras da ECA para as redações.


Tog sempre foi músico, mas em vez do RPM escolheu a imprensa, e não qualquer imprensa. Queria fazer jornalismo investigativo, especialmente na área policial, por causa de um senso de justiça muito grande, que vinha de um coração do mesmo tamanho. 


Sempre a mil, vivia caçando bandidos, esquemas, traficâncias. Desde logo viu a interseção entre a bandidagem pura e simples e a política, o que o levou a enfrentar gente poderosa. Era corajoso e agia sempre como se nada tivesse a perder. Ironizou os riscos da profissão, usando no lançamento de uma coletânea de histórias em 1978 (Mídia, Máfias e Rock'n'roll) uma fotografia na qual apontava um revólver para a propria cabeça.


Arriscava o pescoço sem medo, razão pela qual se manteve íntegro, mesmo num ambiente altamente tóxico e perigoso, onde sempre tem alguém tentando aliciar a imprensa para acobertar a sujeirada, em vez de saneá-la, ou se dispõe a tirar o jornalista do caminho, quando necessário.


Arrumou inúmeras polêmicas, pela disposição de expor a verdade, custasse  que custasse. Arrumou processos variados, como um movido pela JBS, por uma reportagem na qual denunciava que o juiz Sergio Moro teria sido subcontratado pela empresa, por meio de um escritório de advocacia chamado Warde. Levou também paulada de todo lado quando publicou em 2017 a tomografia da primeira dama Marisa Letícia, quando ela se encontrava hospitalizada por conta do AVC.


Era eclético, escrevendo, falando no rádio ou mesmo na TV. Original, inventivo, inquieto, incansável - fez reportagens em mais de 30 países, por vezes infiltrado em torcidas violentas de futebol, organizações criminosas e seitas radicais. Professor de Jornalismo na escola em que nos formamos, procurava passar adiante esse bastão, ou esse espírito, de estar sempre investigando, questionando, e nunca desistir: enfrentar e apresentar a verdade a qualquer custo. 


Cultivava muitas maluquices, como seu fanatismo pelo professor Timothy Leary, que entrevistou ainda  no começo de carreira e de quem se tornou uma espécie de "discípulo". Lembre-se, Leary era um defensor do uso do LSD no tratamento psiquiátrico, e que resolveu fazer de sua morte uma espécie de espetáculo público, depois de publicar um livro em que propunha uma nova visão da morte. 


Tinha na verdade dificuldade de lidar com a morte e estava sempre querendo ajudar alguém. Quando eu era editor de ficção e não ficção da Saraiva, apareceu com a ideia de lançarmos um livro sobre o Roy Cicala, da Record Plant, que tinha sido a maior gravadora de discos americana, de Jimmi Hendrix a John Lennon.


Tog andava com Roy para cima e para baixo. Queria registrar a história dele, não só por ser relevante para a história da música, como para seu levantar seu astral, pois Roy tinha vindo para o Brasil por causa de uma filha brasileira e estava com sérios problemas de saúde. Morreu, de fato, logo depois do livro - que publicamos pelo selo Benvirá, com o título A Porta Mágica, referência ao hábito dos artistas americanos de passarem a mão na porta de entrada da gravadora, depois de Hendrix espalhar a lenda de que aquilo dava sorte.


Por trás da obsessão do jornalista, estava aquele coração. Acho que ele o usou tanto que o gastou ao longo da vida. Virou o seu ponto fraco. Acabou internado, esteve às portas da morte e salvou-se por milagre, embora dependesse ainda de um transplante.


Fui visitá-lo num hospital, perto da cidade de Embu-Guaçu, na companhia dos jornalistas Hugo Studart e Simone Souto Maior, que levou para ele escondido um sanduíche de mortadela. Acho que gostou mais da mortadela do que da nossa presença, depois de dois meses de comida hospitalar.


Recentemente, estava muito feliz por ter ganhado um "coração novinho", como ele mesmo descreveu pelo Instagram. Ter trocado de coração, porém, foi algo que sua mente, mais que seu corpo, provavelmente, acabou não aceitando.


Este domingo, perdi um amigo e o jornalismo brasileiro um de seus mais importantes samurais. Não há mais uma vida de oportunidades pela frente - e a última ele acaba de perder. Mas há uma lista de realizações, e um exemplo de vida que eu registro, para que todos possam se lembrar.