sexta-feira, 24 de março de 2017

Anita e as mulheres

Uma das histórias mais impressionantes da vida de Anita Garibaldi é a da sua decisão de abandonar os filhos com desconhecidos pescadores na costa de Nice, para seguir até Roma, onde se encontrava o marido. Não apenas porque a viagem seria cheia de perigos e ela estava, na prática, indo ao encontro da guerra. Foi um desafio para mim quando escrevia "Anita", romance que está sendo lançado agora pela Editora Record. Eu não entendia exatamente aquilo: como uma mãe podia abandonar os filhos. Com desconhecidos. E para juntar-se ao marido.


Para as feministas de hoje, as pessoas que discutem o "empoderamento" da mulher, seus direitos e problemas na sociedade contemporânea, Anita é um tema muito atual.

Para ela, naquela situação, não adiantava ficar com os filhos - estar ao lado do marido, e na guerra, era mais importante. Caso perdessem a guerra, seriam todos mortos. Certamente os austríacos não deixariam vivos os filhos de Garibaldi. E ela não podia deixar as crianças com alguém conhecido, rastro que os inimigos saberiam seguir. Precisava deixá-los com alguém sem qualquer relação com a família.

Era uma decisão duríssima. Pode ser paradoxal, mas foi pensando nos filhos, em salvá-los, que ela os abandonou à própria sorte. O maior perigo, no fim das contas, era eles estarem com a mãe. O tempo mostrou que tinha razão.

Obrigado a entrar na pele dessa mulher, fiz um exercício que me levou a ver as mulheres de uma forma diferente. Entendi, a partir do exemplo de Anita, muita coisa que vi das mulheres ao longo da vida.

Quem mais que uma mãe pode estar 100% com os filhos? No entanto, é difícil definir o que é 100%.

Aprendi, olhando pelos olhos de Anita, que a ausência também pode ser uma forma de amor extremo. E que as coisas se misturam. Assim como Anita pensava nos filhos, é verdade também que ela desejava ir para a guerra. Depois de anos em Montevidéu, na maior parte dos quais ela cuidou das crianças ainda pequenas, estava cansada da vida doméstica. No Uruguai, tomara a decisão de levar os filhos ao front de guerra. Ela, tanto quanto Garibaldi, precisava da liberdade. Da luta. Independentemente das crianças.

De Nice, grávida, ela foi para a guerra pelos filhos, é verdade. Foi pelo marido. Mas acho que foi mais, no fim das contas, por si própria.

Garibaldi teve muitas mulheres, mas casou-se com Anita porque ela era como ele, capaz de levar uma vida com a sua, e não se conformava em ser de outra forma. E a entendia, porque também ele tinha o espírito indomável da liberdade. Era isso que fazia de ambos verdadeiros revolucionários. Fazia deles quem eram.

Casou-se com ela porque eram iguais.

Garibaldi é o maior heroi da história italiana, e acredito que sua trajetória é a mais impressionante, inacreditável e quase inverossímil da história universal. Mas acredito que, para ele, Anita era ainda maior.

Anita me fez pensar sobre a coragem, a maternidade e sobre o amor. Melhor, me fez sentir.  Essa é, afinal, a tarefa do romance. Não basta sabermos uma coisa. É preciso senti-la. Ao final, não estamos apenas conscientes, mas transformados por viver uma experiência .

Anita para mim ainda é uma personagem transformadora, para homens e mulheres. Escrevi Anita, escolhi Anita, porque precisava. E isso me ajudou. Saí do livro diferente do que entrei. É a aventura que proponho ao seu leitor.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Um encontro em Assis

É uma noite luminosa, não só porque as abóbadas pintadas de azul cobalto têm estrelas douradas, como pelo facho divino que entra pelas janelas do templo gótico. Caminho sobre o mármore da Basílica de São Francisco, em Assis, a Assisi dos italianos, e sinto a presença dela.

Ali ela esteve, viu aquelas estrelas idílicas; viu a tumba do santo que nasceu naquela cidade, sob a sombra da fortaleza destruída pelo povo oprimido, reconstruída pela força do Papa, no tempo em que este era também um senhor feudal, com poderes temporais como os dos reis terrenos, como jamais foi Jesus.

O santo também rebelado: contra o pai, rico tecelão, que decidiu se vestir como um asceta, em trajes de retalho, como o que vemos na "sala das relíquias"; contra a igreja, cujo sacerdócio rejeitou, para fundar sua própria ordem. O santo que criou uma legião de despossuídos para peregrinar pelo mundo propagando a fé católica. Inclusive pelo mundo muçulmano, que a igreja católica então combatia com a espada.

Pela roupa, Francisco se tornou símbolo de despojamento e simplicidade, que transformou "franciscano" em adjetivo. Pelo propósito, associou-se à paz e à fraternidade. Provavelmente por isso, passou a ser representado na companhia das pombas brancas, pássaros e animais silvestres, porque associamos a paz à natureza selvagem, não ao ser humano, concupiscente e belicoso.

Há quinze anos, minha mãe esteve diante do santo, da sua tumba de pedra sobre pedras, e do seu legado; caminhou pelas mesmas ruas, na cidade luminosa de vielas medievais, com seu templo romano, transformado em igreja. Ali ela foi feliz: entendi, ou melhor, senti o que ela sentiu diante da história. E sua identificação com aquele santo. Como ele, minha mãe acreditava nas pessoas, na capacidade de mudança, no poder transformador da bondade e do amor pelo próximo; acreditava, como Francisco, no ser humano.

Ela, professora, certamente venerou aqueles restos, assim como seu significado. Rezou pela mudança da Humanidade, ela que me ensinou no padre-nosso a pedir "pelas criancinhas"; certamente rezou por mim e pela minha mudança. 

Iluminou-se com a vista deslumbrante da cidade, tendo aos pés a colcha de retalhos verdes que se estende até as montanhas nevadas. Ali os romanos instalaram sua fortaleza, depois sua cidade, antes de ser território da fé, e da felicidade de minha mãe, contagiada por tamanha beleza.

Assisi tinha e ainda tem tudo o que ela gostava. As alamedas bem cuidadas, com vasos de flores na escada das casas; os nichos pintados nas paredes, com imagens de santos; os monges franciscanos com seus longos hábitos; os alegres grupos de estudantes circulando nos cafés e nas praças, as vielas imprecisas onde de repente avistamos o vale e o além entre paredes de pedra.

Um lugar da de elevação do homem e do espírito, onde minha mãe encontrou alegria, encontrou amizade, encontrou paz. De todo o tempo em que ela andou pela Itália, quatro meses distante, ela me falava mais de Assisi. 

Lá ficava a casinha do amigo, talvez namorado, que ela tinha puderes de definir como tal. Da casa desse homem, que não sei quem é, ela dizia ver a catedral; falava da cidade, da luz, e que era o único lugar onde ela pensou, realmente, em ficar para nunca voltar.

Hoje ela está ainda mais distante, porém, nunca me pareceu tão perto. Ando pela nave central da Basílica, rumo à saída; sinto a presença de minha mãe, como se ela tivesse me levado até ali. Ela sempre quis que eu visse a vida pelos olhos dela, e ali estava: eu via Assisi por seus olhos, e vi a vida também. Foi como uma mensagem, soprada do além. 

Não havia apenas amargura, o rancor, a dor dos tempos de briga. Era uma mensagem também de paz: dizia estar bem, e assim eu pude ver também o que havia de bom: eu sua alegria, sua boa-fé, seu amor. E isso me conforta o coração.

Minha mãe de rancores e mágoas, de brigas ferozes, tanto quanto de doçura e amor: penso que ela é que havia me levado até ali, pela mão, como mãe e professora, como sempre foi. Levou o filho invisivelmente até Assisi, para que Assisi falasse por ela. 

E eu, que nunca aceitei ver as coisas como ela via, faço em Assisi o que nunca pude, quando isso significava ser eu mesmo, reafirmar o que queria, diante de minha mãe. Em Assisi eu vejo pelos olhos dela, me rendo, baixo as armas, como numa comunhão.

Por ela, ou melhor, para entender as mulheres, as mães, sua luta, mesmo que ás vezes pareça contra os filhos, escrevi Anita, que está saindo agora nas livrarias. Minha mãe tem me falado por muitas vias: pelo olhos de Anita hoje eu vejo as mulheres, eu entendo, eu perdoo, e sou obrigado a também pedir perdão, pelos tempos de incompreensão.

Saio da Basílica chorando; não de tristeza, e sim de alegria por um encontro há muito esperado; choro de amor, de saudade, de felicidade com uma antes impossível conciliação. A cidade sob o sol radioso do inverno, tão perto do céu, me fez agradecer a vida, a vida que ela me deu; choro por estar vivo, e por ela me dar o caminho, me ensinar o caminho, até hoje. Choro por tê-la ajudado a chegar a Assisi, e de gratidão, por poder segui-la até ali.

Minha mulher me dá um abraço; ela, que é mulher, filha, e também mãe, é calorosa, sem nada perguntar. Mais tarde, quando vamos embora, no carro, ela me pergunta se ainda guardo mágoa de minha mãe. Não, respondo eu, não tenho mais por quê. 

Pena que só sabemos essas coisas quando é tarde demais; mas sei que de alguma forma converso com ela. Assisi não foi um lugar, foi um encontro. Ela está bem, eu disse, cessou a tempestade; é a única coisa que faltava para eu baixar também a guarda; agora eu posso descansar.
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terça-feira, 21 de março de 2017

Um bilionário de meia furada

Era 1986 e o bilionário americano David Rockefeller, então presidente do banco Chase Manhattan, resolveu visitar o MAM, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, durante uma passagem por São Paulo. Eu, então aos 22 anos, entusiasmado e inexperiente repórter da seção de Nacional do jornal Gazeta Mercantil, fui destacado para tentar arrancar dele uma entrevista, se tivesse a oportunidade. E tinha que ter, porque, caso contrário, estava frito. Repórteres sem sorte não duram muito no emprego.

Esperei Rockefeller na marquise do parque, perto da entrada do museu, ao lado de um verdadeiro batalhão de outros jornalistas - avisados, assim como meu jornal, pela assessoria de imprensa do museu. Lá veio Rockefeller, num terno escuro, com sua cara de americano mais que americano, os cabelos grudados à cabeça com gel, nariz afilado, passo de lorde, sem se assustar nem um pouco com os jornalistas brasileiros, ao contrário. Para minha surpresa, fui eu o único a lhe fazer perguntas, por uma razão muito simples: era também o único a arranhar alguma coisa de inglês.

Surpreso com tanta gente na sua frente, mas um único interlocutor, ele me perguntou se eu tinha aprendido a falar a língua nos Estados Unidos. Respondi que não conhecia o país: o que sabia de inglês tinha vindo de um mero curso intensivo no Cel-lep. Ele pareceu um pouco desapontado. Explicou que estava ali para ver o Museu porque sua família tinha contribuído com grande parte do acervo e queria ver como estavam as coisas. Eu, porém, não estava muito interessado em arte. Num jornal de negócios, só queria fazer perguntas sobre economia.

Enquanto conversávamos, caminhando, reparei que um fotógrafo da Folha de São Paulo ia rolando no chão, ao nosso lado, feito um cachorro amestrado. Fiz de conta que não vi. Rockefeller também. Quando o banqueiro entrou no museu, fui perguntar o que tinha dado no fotógrafo.

- Você não viu? - ele disse. - O homem está com uma meia furada! Eu tinha que fazer a foto!

Eu não pude publicar a foto - mas não deixei de publicar, no texto, aquele episódio anedótico.

Como herdeiro de um dos maiores impérios de negócios dos Estados Unidos, Rockefeller representava bem a aristocracia americana. Seu bisavô, o lendário John Rockefeller, fizera fortuna com petróleo e ganhara tanto dinheiro que no final a maior empresa do grupo, com os passar dos anos, se tornara o banco. Isso não impedia Rockefeller de conversar normalmente com um repórter brasileiro quase monoglota nem andar de meia furada.

Ontem, deu nos jornais a notícia de que David Rockefeller morreu, aos 101 anos de idade. Era o último neto vivo do fundador da companhia. Os Estados Unidos hoje são outros, os negócios também, e com ele vai embora o último remanescente de toda uma geração empresarial que eu vi passar e ajudar a construir o mundo como o vemos hoje, para o bem e para o mal. Rockefeller era amigo do secretário de Estado Henry Kissinger e a influência do seu banco, ou melhor, do capital americano, era tamanha que sua importância equivalia à de um chefe de Estado.

Assim como os homens de calibre, o jornalismo hoje em dia também tem um peso muito menor no mundo que no passado. E funciona muito diferente. É raro um repórter fazer plantão em qualquer lugar à espera de uma entrevista. Em geral o entrevistado já emite suas opiniões num blog pessoal e a imprensa digital copia aquilo e cola. Por fim, eu mudei. Já fui vezes sem conta aos Estados Unidos. Morei um ano em Nova York e conheço o país de cabo a rabo. Fui o primeiro editor da Forbes no Brasil, consultor do Discovery Channel e dirigi o Grupo Playboy na Editora Abril, o que sempre me manteve em contato direto com americanos. Jamais, porém, procurei Rockefeller, como ele me convidou a fazer. Talvez devesse ter ido vê-lo. Agora, é tarde demais.

Não sou do tipo saudosista, que vai dizer que antigamente era melhor. Mas essa pequena notícia sobre a morte de Rockefeller num canto qualquer do espaço virtual me lembra que era, pelo menos, mais divertido.